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Cassirer: A CRISE NO CONHECIMENTO DO HOMEM SOBRE SI MESMO

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

O que aprendemos com o exemplo de Pascal é que, no princípio dos tempos modernos, ainda se sentia em toda a sua força o velho problema. Até depois do aparecimento do Discours de la méthode de Descartes, o espírito moderno ainda lutava com as mesmas dificuldades. Achava-se dividido entre duas soluções inteiramente incompatíveis. Mas, ao mesmo tempo, começa um lento desenvolvimento intelectual, através do qual a pergunta: Que é o homem? se transforma e, por assim dizer, se eleva a um nível superior. Neste ponto, o importante não é tanto o descobrimento de fatos novos quanto o descobrimento de um novo instrumento do pensamento. Agora, pela primeira vez, o espírito científico, no sentido moderno da palavra, entra em cena. Procura-se uma teoria geral do homem baseada em observações empíricas e em princípios lógicos gerais. O primeiro postulado desse espírito novo e científico foi a eliminação de todas as barreiras artificiais que, até então, haviam separado o mundo humano do resto da natureza. Para compreender a ordem das coisas humanas precisamos começar com um estudo da ordem cósmica. E esta ordem cósmica surge agora a uma luz inteiramente nova. A nova cosmologia, o sistema heliocêntrico introduzido na obra de Copérnico, é a única base sólida e científica para uma nova antropologia.

Nem a metafísica clássica nem a religião e a teologia medievais estavam preparadas para esta tarefa. Ambos corpos de doutrina, embora diferentes nos métodos e propósitos, fundam-se num princípio comum. Ambos concebem o universo como uma ordem hierárquica, em que o homem ocupa o supremo lugar. Na filosofia estóica e na teologia cristã descrevia-se o homem como o fim do universo. As duas doutrinas estavam convencidas de que existe uma providência geral, que governa o mundo e o destino do homem. Este conceito é uma das pressuposições básicas do pensamento estóico e cristão (sobre o conceito estóico de providência - pronoia -, veja, por exemplo, Marco Aurélio, op. cit., Livro II, par. 3). Tudo isto é repentinamente posto em dúvida pela nova cosmologia. A pretensão do homem de ser o centro do universo perdeu sua razão de ser. O homem está colocado num espaço infinito em que seu ser parece resumir-se num ponto de fuga isolado. Está cercado de um universo mudo, de um mundo hermético para seus sentimentos religiosos e para suas mais profundas necessidades morais.

É compreensível, e até necessária, que a primeira reação à nova concepção do mundo fosse apenas negativa — uma reação de dúvida e temor. Nem mesmo os maiores pensadores puderam libertar-se deste sentimento. "Le silence éternel de ces espaces infinis m’effraye", diz Pascal (Pascal, op. cit., cap. XXV, seç. 18). O sistema copernicano tornou-se um dos mais vigorosos instrumentos do agnos-ticismo e ceticismo filosóficos que se desenvolveram no século XVI. Em sua crítica da razão humana, Montaigne emprega os conhecidos e tradicionais argumentos dos sistemas de ceticismo grego. Acrescenta-lhes, porém, uma nova arma, que, em suas mãos, se revela poderosíssima e de suma importância. Nada melhor para nos humilhar e quebrar o orgulho da razão humana que uma visão sem preconceitos do universo físico. Que o homem, diz ele num trecho famoso de sua Apologie de Raimond Sebond, me faça compreender, pela força da sua razão, sobre que alicerces construiu as grandes vantagens que julga ter sobre as outras criaturas. Quem o fez acreditar que esse admirável movimento da abóbada celeste, a luz eterna das luminárias que giram tão alto sobre sua cabeça, os maravilhosos e terríveis movimentos do oceano infinito foram estabelecidos e continuam há tantos séculos para seu serviço e conveniência? Pode-se imaginar alguma coisa mais ridícula do que esta miserável e desgraçada criatura, que nem sequer é dona de si mesma, exposta às injúrias de todas as coisas, intitular-se senhora e imperatriz do mundo, do qual não tem o poder de conhecer a menor parte, quanto mais de governar o todo? (Montaigne, Essais, II, cap. XII. Tradução inglesa de William Hazlitt, The Works of Michael de Montaigne, 2a edição, Londres, 1845, p. 205)


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