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Cassirer: A CRISE NO CONHECIMENTO DO HOMEM SOBRE SI MESMO
quarta-feira 23 de março de 2022, por
Todos os homens, por natureza, desejam saber. Uma prova disto é o prazer que encontramos em nossos sentidos; pois, mesmo independentemente da sua utilidade, eles são amados por si próprios; e, acima de todos os outros, o sentido da vista: não só para ver nossas ações, mas também, quando nada fazemos, gostamos de ver a tudo o mais. A razão é que este sentido, principal entre todos, nos faz conhecer e traz à luz muitas diferenças entre as coisas. (Aristóteles, Metafísica, Livro A. 1 980 21. Tradução inglesa de W. D. Ross, The Works of Aristotle (Oxford, Clarendon Press, 1924), Vol. VIII.)
Esta passagem é altamente característica da concepção aristotélica do conhecimento em contraposição à concepção platônica. Um panegírico filosófico da vida sensorial do homem seria impossível na obra de Platão, que jamais compararia o desejo do conhecimento com o prazer que encontramos em nossos sentidos. Em Platão, a vida dos sentidos e a do intelecto estão separadas por vasto e intransponível abismo. O conhecimento e a verdade pertencem a uma ordem transcendental — ao domínio das ideias puras e eternas. O próprio Aristóteles está convencido de que o conhecimento científico não é possível apenas através do ato da percepção. Mas fala como um biologista quando nega a separação platônica entre o mundo ideal e o mundo empírica, Procura explicar o mundo ideal, o mundo do conhecimento, em termos de vida. Em ambos os domínios, de acordo com Aristóteles, encontramos a mesma continuidade ininterrupta. Tanto na natureza quanto no conhecimento humano, as formas mais elevadas evolvem-se das formas inferiores. A percepção dos sentidos, a memória, a experiência, a imaginação e a razão estão todas ligadas por um elo comum; são apenas estádios diferentes e diferentes expressões da mesma atividade fundamental, que atinge sua mais alta perfeição no homem mas que, de certo modo, é partilhada pelos animais e por todas as formas de vida orgânica.
Se adotássemos este ponto de vista biológico, teríamos de esperar que as primeiras etapas do conhecimento humano concernissem exclusivamente ao mundo externo. No tocante a todas as suas necessidades imediatas e interesses práticos, o homem depende do seu meio físico. Não pode viver sem se adaptar constantemente às condições do mundo circundante. Os passos iniciais para a sua vida intelectual e cultural podem ser descritos como atos que envolvem uma espécie de ajustamento mental ao meio imediato. Mas, à proporção que progride a cultura humana, não tardamos em tropeçar com uma tendência oposta da vida humana. Desde o despontar da consciência humana, encontramos uma visão introvertida da vida, que acompanha e complementa a extrovertida. Quanto mais longe seguirmos o desenvolvimento da cultura humana, a partir desses primórdios, tanto mais se evidenciará a visão introvertida. A curiosidade natural do homem principia, lentamente, a mudar de direção. Podemos estudar este paulatino desenvolvimento em quase todas as formas de sua vida cultural. Nas primeiras explicações mitológicas do universo encontramos sempre uma antropologia primitiva ao lado de uma cosmologia primitiva. O problema da origem do mundo está inextricavelmente entrelaçado com o da origem do homem. A religião não destrói estas primeiras explicações mitológicas. Pelo contrário, preserva a cosmologia e a antropologia mitológicas dando-lhes nova forma e nova profundidade. A partir desse momento, já não se concebe o conhecimento de si mesmo como um interesse meramente teórico. Não é simplesmente um tema de curiosidade ou especulação; passa a ser proclamado a obrigação fundamental do homem. Os grandes pensadores religiosos foram os primeiros a inculcar essa exigência moral. Em todas as formas superiores da vida religiosa, a máxima "Conhece-te a ti mesmo" é considerada como um imperativo categórico, lei religiosa e moral básica. Neste imperativo sentimos, por assim dizer, uma súbita inversão do primeiro instinto natural de conhecer — percebemos uma transposição de todos os valores. Na história de todas as religiões do mundo — judaísmo, budismo, confucionismo e cristianismo — podemos observar os passos individuais deste desenvolvimento.
Ver online : Ernst Cassirer