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Cassirer: A CRISE NO CONHECIMENTO DO HOMEM SOBRE SI MESMO

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

Aqui podemos entender um dos traços mais característicos da filosofia antropológica, que não é, como outros ramos da investigação filosófica, um lento e contínuo desenvolvimento de ideias gerais. Até na história da lógica, da metafísica e da filosofia natural encontramos as mais acerbas oposições. História que pode ser descrita, em termos hegelianos, como um processo dialético em que cada tese é seguida por sua antítese. Não obstante, existe uma coerência interior, uma ordem lógica, clara, que liga as diferentes etapas do processo dialético. A filosofia antropológica, por outro lado, apresenta um caráter totalmente diverso. Se quisermos apreender-lhe o significado e sua verdadeira importância, precisamos escolher não o estilo épico de descrição, mas o dramático. Pois defrontamos, não um pacífico desenvolvimento de conceitos e teorias, senão um embate entre forças espirituais em conflito. A história da filosofia antropológica está cheia das mais profundas paixões e emoções humanas. Não se ocupa de um problema teórico isolado, por mais geral que seja seu âmbito; nela está em jogo todo o destino do homem, clamando por uma decisão final. Este caráter do problema encontrou sua expressão mais clara na obra de Agostinho, que se situa na fronteira entre duas épocas. Vivendo no quarto século da era cristã, cresceu na tradição filosófica grega e foi sobretudo o sistema neoplatônico que marcou toda sua filosofia. Por outro lado, porém, é o pioneiro do pensamento medieval; é o fundador da filosofia medieval e da dogmática cristã. Nas Confissões podemos seguir, passo a passo, seu caminhar da filosofia grega para a revelação cristã. De acordo com ele, toda a filosofia anterior ao advento de Cristo estava sujeita a um erro fundamental e se achava infestada por uma mesma heresia. O poder da razão era exaltado como o mais alto poder do homem. Mas o que o homem nunca poderia saber, enquanto não fosse iluminado por uma revelação divina especial, é que a própria razão é uma das coisas mais discutíveis e ambíguas do mundo. A razão não pode mostrar-nos o caminho para a claridade, a verdade e a sabedoria. Ela mesma é obscura em seu significado e sua origem está envolta em mistério — mistério que só a revelação cristã é capaz de solucionar! Para Agostinho, a razão não tem uma natureza simples e única, senão dupla e dividida. O homem foi criado à imagem de Deus; e no estado original, em que se viu, ao sair das mãos de Deus, era igual ao seu arquétipo. Porém, tudo se perdeu pela queda de Adão. A partir desse momento se obscureceu todo o poder original da razão, que, sozinha, entregue às suas próprias faculdades, jamais encontrará o caminho de volta. Não pode reconstruir-se nem retornar, por suas próprias forças, à pura essência anterior. Esta reforma só será possível, pela ajuda sobrenatural e poder da graça divina. É a nova antropologia, no entender de Agostinho, a que se mantém em todos os grandes sistemas de pensamento medieval. Mesmo Tomás de Aquino  , discípulo de Aristóteles, que volta às fontes da filosofia grega, não se atreve a desviar-se deste dogma fundamental. Concede à razão humana um poder muito maior do que Agostinho; mas está convencido de que a razão não pode utilizar-se corretamente desses poderes se não for guiada e iluminada pela graça de Deus. Aqui chegamos a uma completa inversão de todos os valores sustentados pela filosofia grega. O que outrora parecia ser o mais alto privilégio do homem revela-se agora o seu perigo e tentação; o que constituía seu orgulho, agora se converte em sua mais profunda humilhação. O preceito estóico, segundo o qual o homem precisa obedecer e reverenciar seu princípio interior, o daemon que traz consigo, agora se reputa perigosa idolatria.


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