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Cassirer: A CRISE NO CONHECIMENTO DO HOMEM SOBRE SI MESMO
quarta-feira 23 de março de 2022, por
Seria impraticável continuar descrevendo aqui o caráter desta nova antropologia, analisar-lhe os motivos fundamentais e acompanhar-lhe o desenvolvimento. Mas, para compreender seu sentido podemos optar por um caminho diferente e mais curto. No princípio dos tempos modernos surgiu um pensador que deu a esta antropologia novo impulso e esplendor. Na obra de Pascal encontrou ela sua última e, talvez, mais notável expressão. Pascal estava preparado para esta tarefa como nenhum outro escritor. Possuía um dom incomparável de elucidar as questões mais obscuras, de condensar e concentrar sistemas complexos e dispersos de pensamento. Nada parece impenetrável ao seu pensamento e à lucidez de seu estilo. Nele se unem todas as vantagens da literatura e da filosofia modernas, embora as utilize como armas contra o espírito moderno, o espírito de Descartes e sua filosofia. A primeira vista, Pascal parece aceitar todas as pressuposições do cartesianismo e da ciência moderna. Nada há na natureza capaz de resistir ao esforço da razão científica, pois nada existe que possa resistir à geometria. Foi curioso acontecimento na história das ideias que um dos maiores e mais profundos geômetras se convertesse em paladino extemporâneo da antropologia filosófica da Idade Média. Aos dezesseis anos, Pascal escreveu o tratado sobre seções cônicas, que abriu novo campo, rico e fecundo, ao pensamento geométrico. Não era ele apenas grande geômetra, mas filósofo; e, assim, não se contentava em absorver-se com problemas geométricos, desejando também compreender o verdadeiro uso, a extensão e os limites da geometria. Deste modo, viu-se levado a estabelecer a distinção fundamental entre o "espírito geométrico" e o "espírito agudo ou sutil". O espírito geométrico sobressai em todos os assuntos suscetíveis de uma análise perfeita — que podem ser divididos até seus primeiros elementos. (NOTA: Sobre a distinção entre l’esprit géométrique e l’esprit de finesse, compare o tratado de Pascal "De l’esprit géométrique" e Pensées de Pascal, editados por Charles Louandre, Paris, 1858, cap. IX, p. 231; nos trechos que se seguem cito a tradução inglesa de O. W. Wight, Nova Iorque, 1861) Parte de certos axiomas, extraindo deles inferências cuja verdade pode ser demonstrada por regras lógicas universais. A vantagem deste espírito consiste na clareza de seus princípios e na necessidade de suas deduções. Mas nem todos os objetos admitem tal tratamento. Existem coisas que, pela sua sutileza e infinita variedade, desafiam todas as tentativas de análise lógica. E se há alguma coisa no mundo que precisamos tratar desta segunda maneira, é o espírito do homem. O que caracteriza o homem é a riqueza e a sutileza, a variedade e a versatilidade de sua natureza. Por isto mesmo, a matemática nunca poderá vir a ser o instrumento de uma verdadeira doutrina do homem, de uma antropologia filosófica. É ridículo falar do homem como se se tratasse de uma proposição geométrica. Uma filosofia moral em termos de um sistema de geometria — uma Ethica more geométrico demonstrata — é para o espírito de Pascal um absurdo, um sonho filosófico. Nem a lógica ou a metafísica tradicionais estão em melhor posição para compreender e resolver o enigma do homem. Sua primeira e suprema lei é o princípio de contradição. O pensamento racional, o pensamento lógico e metafísico, só pode compreender os objetos que estão livres da contradição e possuem uma natureza e verdade coerentes. Entretanto, é precisamente esta homogeneidade que nunca encontramos no homem. Não é lícito ao filósofo construir um homem artificial; cumpre-lhe descrever um homem verdadeiro. Todas as chamadas definições do homem não serão mais do que mera especulação, enquanto não se basearem em nossa experiência sobre ele, dela tendo a confirmação. Não há outro caminho para se conhecer o homem a não ser o de compreender-lhe a vida e seu procedimento. Mas o que encontramos aqui desafia toda tentativa de inclusão numa fórmula única e simples. A contradição é o próprio elemento da existência humana. 0 homem não tem "natureza" — não é simples e homogêneo. É uma estranha mistura de ser e não-ser. Seu lugar fica entre estes dois pólos opostos.
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