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Cassirer: A CRISE NO CONHECIMENTO DO HOMEM SOBRE SI MESMO

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

A exigência da interrogação de si mesmo aparece, portanto, não só no estoicismo mas, também, na concepção de Sócrates, como privilégio do homem e sua obrigação fundamental (Idem, Livro III, par. 6.). Mas esta obrigação é agora compreendida num sentido mais amplo; seus antecedentes não são apenas morais senão também universais e metafísicos. "Nunca deixes de fazer a ti mesmo esta pergunta e a te reperguntares assim: Que relação tenho eu com esta parte de mim que denominam a Razão governante (to hegemonikon)?" (Idem, Livro V, par. 11) Quem vive em harmonia com seu próprio eu, o seu daemon, vive em harmonia com o universo; pois tanto a ordem universal quanto a ordem pessoal não são mais do que expressões e manifestações diferentes de um princípio fundamental comum. O homem demonstra seu poder inerente de crítica, de julgamento e de discernimento ao conceber que, nessa correlação, o Eu, e não o Universo, representa o papel principal. Depois que o Eu conquista sua forma interior, essa forma permanece inalterável e imperturbável. "Depois de formada, a esfera continua redonda e autêntica" (Idem, Livro VIII, par. 41). Esta, por assim dizer, é a última palavra da filosofia grega — uma palavra que, mais uma vez, encerra e explica o espírito em que foi originalmente concebida. Esse espírito foi um espírito de julgamento, de discernimento crítico entre o Ser e o Não-Ser, entre a verdade e a ilusão, entre o bem e o mal. A vida em si mesma é mutável e flutuante, mas o verdadeiro valor da vida deve ser buscado numa ordem eterna, que não admite mudança. Não está no mundo de nossos sentidos, e é só pelo poder de nosso juízo que podemos compreender essa ordem. O juízo é o poder central do homem, a fonte comum da verdade e da moral. Pois é a única coisa em que o homem depende inteiramente de si mesmo; é livre, autônomo, auto-suficiente (Cfr. idem, Livro V, par. 14).

"Não te aflijas", diz Marco Aurélio, não sejas muito ansioso, mas sê teu próprio amo e olha para a vida como um homem, como ser humano, como cidadão, como criatura mortal. (...) As coisas não tocam a alma, porque são externas e permanecem imóveis, mas a nossa perturbação vem apenas daquele juízo que formamos em nós mesmos. Todas estas coisas, que vês, mudam imediatamente, e já não serão; e tem sempre em mente o número das mudanças que já presenciaste. O Universo — mutação, a Vida — afirmação. [NOTA: Livro IV, par. 3. O termo "afirmação" ou "julgamento" me parece uma expressão muito mais adequada do pensamento de Marco Aurélio do que "opinião", que encontro em todas as versões inglesas que consultei. "Opinião" (a platônica doxa) contém um elemento de incerteza e de mudança não pretendido por Marco Aurélio. Como termos equivalentes a opolepssis encontramos em Marco Aurélio krisis, krima, diakrisis. Cf. Livro III, par. 2; VI, par. 52; VIII, pars. 28, 47.]


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