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Cassirer: A CRISE NO CONHECIMENTO DO HOMEM SOBRE SI MESMO

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

Só existe, portanto, uma forma de abordarmos o segredo da natureza humana: a religião. Ela nos mostra que existe dualidade no homem — o homem antes e depois da queda; estava destinado à mais alta glória, mas foi destronado. Com a queda perdeu o poder e perverteram-se-lhe a razão e a vontade. Compreendida em seu sentido filosófico, no sentido de Sócrates, Epicteto   e Marco Aurélio, a máxima clássica "Conhece-te a ti mesmo" é, portanto, não só ineficaz mas também enganosa e errônea. O homem não pode confiar em si mesmo nem ouvir de si para si. Tem que guardar silêncio próprio a fim de ouvir uma voz superior e mais verdadeira. "Que será feito, então, de ti, ó homem! que indagas qual é tua verdadeira condição por meio de tua razão natural?. . . Conhece, pois, homem soberbo, que paradoxo és para ti mesmo. Humilha-te, razão impotente; emudece, natureza imbecil; aprende que o homem sobrepuja infinitamente o homem, e ouve de teu amo tua verdadeira condição, que ignoras. Ouve a Deus" (Pensées, cap. X, seç. 1).

O que aqui se expõe não pretende ser uma solução teórica do problema do homem. A religião não pode oferecê-la, e tem sido sempre acusada, por seus adversários, de obscura e incompreensível. Mas a censura se converte no mais alto louvor quando consideramos seu verdadeiro objetivo. A religião não pode ser clara e racional; conta-nos uma história obscura e sombria: a história do pecado e da queda do homem. Revela um fato para o qual não há explicação racional possível. Não podemos explicar o pecado do homem, pois não foi produzido nem exigido por nenhuma causa natural. Nem podemos explicar sua salvação, dependente de um ato inescrutável da graça divina. É dada e negada livremente; não há ação nem mérito humano que possam merecê-la. A religião, portanto, nunca pretende esclarecer o mistério do homem, apenas o confirma e aprofunda. O Deus de que ela fala é um Deus absconditus, um Deus oculto; por isso, até sua imagem, o homem, não pode deixar de ser mistério. O homem é também um homo absconditus. A religião não é "teoria" de Deus e do homem e das suas relações mútuas. A única resposta que recebemos da religião é que é vontade de Deus ocultar-se. "Então, estando Deus oculto, nenhuma religião que não nos diga que Deus está oculto é verdadeira; e nenhuma religião que não ofereça razão para isto é instrutiva. A nossa faz tudo isto: Vere tu es Deus absconditus (Idem, cap. XII, seç. 5). ... Pois a natureza é tal que, em toda a parte, indica um Deus perdido, tanto no homem quanto fora do homem" (Idem, cap. XIII, seç. 3). Por conseguinte, a religião, por assim dizer, é uma lógica do absurdo; pois só assim consegue entender a absurdeza, a contradição interior, o ser quimérico do homem. "Nada, por certo, nos impressiona tão rudemente quanto esta doutrina; e, todavia, sem este mistério, o mais incompreensível de todos, somos incompreensíveis para nós mesmos. O nó de nossa condição se retorce e remoinha nesse abismo; de sorte que o homem é mais inconcebível sem este mistério que este mistério é inconcebível para o homem" (Idem, cap. X, seç. 1).


Ver online : Ernst Cassirer