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Cassirer: A CRISE NO CONHECIMENTO DO HOMEM SOBRE SI MESMO

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

O homem está sempre propenso a considerar o pequeno horizonte que o cerca como o centro do mundo e a fazer, de sua vida particular e privada, o modelo do universo, mas precisa renunciar a esta vã pretensão, a esta mesquinha e provinciana maneira de pensar e de julgar.

Quando as vinhas da nossa aldeia são destruídas pela geada, o vigário da paróquia logo conclui que a indignação de Deus se voltou contra toda a raça humana... E quem, ao ver nossas guerras civis, não brada que a máquina do mundo inteiro está desandando e que o dia do juízo final está próximo!... Mas quem figurar em sua imaginação, como num quadro, a grandiosa imagem de nossa mãe natureza, em toda sua majestade e esplendor; quem souber reconhecer em sua face uma variedade tão geral e constante, e que se veja a si mesmo, e não só a si mesmo mas a um reino inteiro, menor que um ponto de lápis, em comparação com o todo, será capaz de avaliar as coisas de acordo com seu verdadeiro valor e grandeza. (Idem, I, cap. XXV. Tradução inglesa, pp. 65 e seguintes)

Estas palavras de Montaigne nos fornecem a pista de todo o desenvolvimento subsequente da teoria moderna do homem. A filosofia moderna e a ciência moderna precisavam aceitar o desafio contido nessas palavras. Precisavam provar que, longe de enfraquecer ou dificultar o poder da razão humana, a nova cosmologia o estabelece e confirma. Tal foi a tarefa, combinando esforços, dos sistemas metafísicos dos séculos XVI e XVII, que seguem caminhos diferentes, mas todos se dirigem para a mesma meta. Esforçam-se, por assim dizer, para transformar em bênção a aparente maldição da nova cosmologia. Giordano Bruno   foi o primeiro pensador a pisar nesse caminho, que, em certo sentido, veio a ser o de toda a metafísica moderna. O que caracteriza sua filosofia é que nela o termo "infinito" muda de sentido. No pensamento clássico grego o infinito é um conceito negativo, é o que não tem limites ou o indeterminado. Sem limites nem forma, é, portanto, inacessível à razão humana, que vive no domínio das formas e nada mais compreende senão formas. Nesse sentido, o finito e o infinito, peras e apeiron, são, segundo declara Platão no Filebo  , os dois princípios fundamentais que se opõem necessariamente. Na doutrina de Bruno o infinito já não significa uma simples negação ou limitação. Pelo contrário, significa a incomensurável e inexaurível abundância de realidade e o poder ilimitado do intelecto humano. É neste sentido que Bruno compreende e interpreta a doutrina de Copérnico. A seu ver, foi esta doutrina o primeiro passo decisivo no sentido da auto-libertação do homem. O homem já não vive no mundo como prisioneiro encerrado dentro das estreitas muralhas de um universo físico finito. Pode atravessar os ares, rompendo todas as fronteiras imaginárias das esferas celestes, erguidas por uma metafísica e uma cosmologia falsas (sobre maiores detalhes veja Cassirer, Individuum und Kosmos in der Philosophie der Renaissance, Lipsia, 1927, pp. 197 e seguintes). O universo infinito não impõe limites à razão humana; ao contrário, é o seu grande incentivo. O intelecto humano toma consciência da própria infinidade medindo seus poderes pelo universo infinito.


Ver online : Ernst Cassirer