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Cassirer: A CRISE NO CONHECIMENTO DO HOMEM SOBRE SI MESMO

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

Entretanto, quando estudamos os diálogos socráticos de Platão, em parte alguma encontramos uma solução direta para o novo problema. Sócrates nos dá uma análise detalhada e meticulosa das qualidades individuais e virtudes humanas. Procura determinar e definir a natureza destas qualidades: bondade, justiça, temperança, coragem e assim por diante, sem nunca se arriscar a definir o homem. Como explicar esta aparente deficiência? Teria Sócrates adotado deliberadamente um abordo indireto — que lhe permitisse apenas arranhar a superfície do problema sem jamais lhe penetrar as profundezas e o verdadeiro âmago? Neste ponto, mais do que em qualquer outro, deveríamos desconfiar da ironia socrática. É precisamente a resposta negativa de Sócrates que projeta nova e inesperada luz sobre a questão e nos proporciona uma visão positiva de sua concepção do homem. Não podemos descobrir a natureza do homem da mesma maneira pela qual podemos desvendar a natureza das coisas físicas. Estas podem ser descritas em termos de suas propriedades objetivas, mas o homem só pode ser descrito e definido em termos de sua consciência, fato que origina um problema inteiramente novo, insolúvel por nossos métodos usuais de investigação. Aqui se revelaram ineficazes e inadequadas a observação empírica e a análise lógica no sentido em que estes termos foram empregados na filosofia pré-socrática; pois só convivendo com seres humanos é que teremos a visão do caráter do homem. Para compreendê-lo, precisamos efetivamente defrontá-lo face a face. Por isto, o traço distintivo da filosofia socrática não é um novo conteúdo objetivo, mas nova manifestação e função do pensamento. Até então concebida como monólogo intelectual, a filosofia transforma-se em diálogo. Só por meio do pensamento dialogai ou dialético podemos abordar o conhecimento da natureza humana. Antes disto teria sido possível imaginar a verdade como coisa já estabelecida, que poderia ser entendida por um esforço do pensador individual e prontamente revelada a outros. Mas Sócrates já não endossava este ponto de vista. É tão impossível — diz Platão na República   — implantar a verdade na alma de um homem quanto dar a visão a um cego de nascença. Por sua natureza, a verdade é filha do pensamento dialético. Só pode ser obtida, por conseguinte, pela constante cooperação dos assuntos em mútua interrogação e resposta. Não tem, portanto, nenhuma semelhança com um objeto empírico, precisando ser compreendida como resultado de um ato social. Temos aqui a resposta, nova e indireta, à pergunta "Que é o homem?". Dizem que é a criatura que está em contínua procura de si mesmo — e que, em todos os momentos de sua existência, precisa escrutar as condições da mesma. Neste exame, nesta atitude crítica em relação à vida humana, está o verdadeiro valor da vida humana. "Uma vida que não é examinada", diz Sócrates, na Apologia, "não vale a pena ser vivida" (Platão, Apologia 37E, tradução de Jowett). Sintetizamos seu pensamento dizendo que ele define o homem como o ser que, a uma pergunta racional, pode dar uma resposta racional. Neste círculo estão compreendidos tanto seu conhecimento quanto sua moral. É por esta faculdade fundamental, por esta faculdade de dar uma resposta a si mesmo e aos outros, que o homem se torna um ser "responsável", um indivíduo moral.


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