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Cassirer: A CRISE NO CONHECIMENTO DO HOMEM SOBRE SI MESMO

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

O mesmo princípio vale para a evolução geral do pensamento filosófico. Em suas primeiras fases, a filosofia grega parece exclusivamente interessada pelo universo físico. A cosmologia predomina claramente sobre todos os outros ramos da investigação filosófica. Não obstante, o que caracteriza a profundidade e a amplitude do espírito grego é o fato de quase todo pensador grego representar, ao mesmo tempo, um novo tipo geral de pensamento. Além da filosofia física da Escola de Mileto, os pitagóricos descobriram uma filosofia matemática, enquanto os pensadores eleáticos são os primeiros a conceber o ideal de uma filosofia lógica. Encontra-se nas fronteiras entre o pensamento cosmológico e o antropológico. Embora ainda fale como filósofo natural e pertença aos "antigos fisiologistas", está convencido de que é impossível penetrar segredo da natureza sem haver estudado o segredo do homem. Precisamos satisfazer à exigência da introspecção se quisermos aprender a realidade e compreender-lhe o significado. (Por isso foi possível a Heráclito   caracterizar toda sua filosofia em duas palavras: edixesamem emeoton ("Procurei por mim mesmo" - Fragmento 101, em Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker  , editado por W. Krantz - 5a edição, Berlim, 1934 -, I, 173). Mas embora fosse, em certo sentido, inerente à primitiva filosofia grega, esta nova tendência do pensamento só atingiu a maturidade na época de Sócrates  . Assim, o problema do homem é o marco divisório entre o pensamento socrático e pré-socrático. Sócrates jamais ataca nem critica as teorias dos seus predecessores. Não tenciona introduzir uma nova doutrina filosófica. Nele, porém, todos os antigos problemas são vistos dentro de uma nova luz, por se referirem a um novo centro intelectual. Os problemas gregos da filosofia natural e da metafísica são repentinamente eclipsados por uma nova questão, que parece, daí por diante, absorver todo o interesse teórico do homem. Em Sócrates já não encontramos uma teoria independente da natureza nem uma teoria lógica independente; muito menos uma teoria ética, coerente e sistemática — no sentido de se ter desenvolvido em sistemas éticos posteriores. Só resta uma pergunta: Que é o homem? Sócrates mantém e defende sempre o ideal de uma verdade objetiva, absoluta, universal. Mas o único universo que conhece, e ao qual se referem todas suas indagações, é o universo do homem. Sua filosofia — se alguma possuir — é estritamente antropológica. Num dos diálogos de Platão, descreve-se Sócrates conversando com seu discípulo Fedro  . Passeiam e, em breve, chegam a um ponto fora das portas de Atenas. Sócrates se extasia com a beleza do lugar. Delicia-se com a paisagem, que não cessa de elogiar. Porém Fedro o interrompe. Admira-se de que Sócrates proceda como um estrangeiro acompanhado de um guia, que lhe mostra os sítios mais aprazíveis. "Nunca cruzais a fronteira?" pergunta ele. Sócrates responde simbolicamente: "É verdade, meu bom amigo, e espero que me desculparás quando ouvires o motivo, isto é, que sou um amante do conhecimento e os homens que habitam na cidade são meus mestres, e não as árvores, nem o campo". (Platão, Fedro 230A, tradução de Jowett  )


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