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Cassirer: A CRISE NO CONHECIMENTO DO HOMEM SOBRE SI MESMO

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

Tal era a convicção de que compartiam cientistas e filósofos do século XIX. Mas o que se tornou ainda mais importante para a história geral das ideias e para o desenvolvimento do pensamento filosófico não foram os fatos empíricos da evolução, mas a interpretação teórica destes fatos. Esta interpretação não era determinada, num sentido sem ambiguidades, pela própria prova empírica, mas por certos princípios fundamentais que tinham um caráter metafísico positivo. Embora raras vezes reconhecido, o modelo metafísico do pensamento evolutivo era uma força motivadora latente. Num sentido filosófico geral, a teoria da evolução não era, de maneira alguma, uma conquista recente. Recebera sua expressão clássica na psicologia de Aristóteles e na sua visão geral da vida orgânica. A distinção característica e fundamental, entre a versão aristotélica e a versão moderna da evolução, consistia no fato de que Aristóteles lhe dava uma interpretação formal, ao passo que os modernos tentavam apresentar uma interpretação material. Aristóteles estava convencido de que, para compreender o plano geral da natureza, as origens da vida, as formas inferiores precisavam ser interpretadas à luz das formas superiores. Em sua metafísica, em sua definição da alma como "a primeira realização de um corpo natural potencialmente dotado de vida", a vida orgânica é concebida e interpretada em termos de vida humana; seu caráter teleológico se projeta em todo o domínio dos fenômenos naturais. Na teoria moderna, inverte-se a ordem: as causas finais de Aristóteles são caracterizadas como mero " asylum ignorantiae". Um dos principais escopos da obra de Darwin foi libertar o pensamento moderno da ilusão das causas finais. Precisamos buscar compreender a estrutura da natureza orgânica somente pelas causas materiais, pois, do contrário, não poderemos compreendê-la. Mas as causas materiais na terminologia aristotélica, são causas "acidentais". Aristóteles sustentou enfaticamente a impossibilidade de se compreender os fenômenos da vida por estas causas acidentais. A teoria moderna aceita o desafio. Os pensadores modernos sustentaram que, depois de inúmeras e baldadas tentativas anteriores, conseguiram explicar, claramente, a vida orgânica como simples produto de câmbio As mudanças acidentais que ocorrem na vida de todo organismo são suficientes para explicar a gradativa transformação que nos conduz, das formas mais simples de vida encontradas num protozoário, às formas mais elevadas e complicadas. Uma das mais notáveis expressões desse ponto de vista oferece-nos o próprio Darwin, em geral tão reticente no que concerne às suas concepções filosóficas. "Não somente as várias raças domésticas", observa Darwin no final do seu livro, The Variation of Animals and Plants under Domestication.

mas os gêneros e ordens mais distintos dentro da mesma grande classe — por exemplo, mamíferos, pássaros, répteis e peixes — são todos descendentes do mesmo progenitor comum, e precisamos admitir que toda a vasta quantidade de diferenças entre estas formas surgiu, em primeiro lugar, da simples variabilidade. A consideração do assunto por esse prisma é suficiente para deixar-nos perplexos. Mas nosso assombro diminuirá se refletirmos que um número quase infinito de seres, durante um lapso quase infinito de tempo, teve amiúde toda sua organização plástica em certo grau, e que cada ligeira modificação de estrutura, que de algum modo era benéfica, em condições excessivamente complexas de vida, se preservou, enquanto que toda modificação nociva foi rigorosamente destruída. E a acumulação, processada durante tão longo tempo, de variações benéficas terá infalivelmente conduzido a estruturas tão diversificadas, tão formosamente adaptadas a várias finalidades e tão excelentemente coordenadas como vemos nas plantas e animais que nos cercam. Por isso falei em seleção como a força suprema, quer aplicada pelo homem à formação de raças domésticas, quer aplicada pela natureza à produção de espécies... Se um arquiteto decidisse erguer um nobre e amplo edifício, sem o emprego da pedra lavrada, escolhendo, entre os fragmentos esparsos na base de um precipício, pedras em forma de cunha para seus arcos, pedras alongadas para seus dintéis e pedras achatadas para seu telhado, nós lhe admiraríamos a habilidade e o consideraríamos como a força suprema. Pois bem, os fragmentos de pedra, julgados indispensáveis pelo arquiteto, estão para o edifício por ele construído como estão as flutuantes variações dos seres orgânicos para as variadas e admiráveis estruturas finalmente adquiridas pelos seus descendentes modificados. (Darwin, The Variation of Animals and Plants under Domestication, Nova Iorque, D. Appleton & Co., 1897, II, cap. XXVIII, pp. 425 e seguintes)


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