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Cassirer: A CRISE NO CONHECIMENTO DO HOMEM SOBRE SI MESMO

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

Em 1754, Denis Diderot publicou uma série de aforismos intitulada Pensées sur l’interprétation de la nature. Neste ensaio declarava que a superioridade da matemática no domínio da ciência já não é incontestada. A matemática, asseverava, alcançou tão alto grau de perfeição que já não é possível nenhum progresso; daqui por diante, permanecerá estacionária.

Nous touchons au moment d’une grande révolution dans les sciences. Au penchant que les esprits me paroissent avoir à la morale, aux belles lettres, à l’histoire de la nature et à la physique expérimentale j’oserois presque assurer qu’avant qu’il soit cent ans on ne comptera pas trois grands géomètres en Europe. Cette science s’arrêtera tout court où l’auront laissé les Ber-nouilli, les Euler, les Maupertuis et les d’Alembert. Ils auront posés les colonnes d’Hercule, on n’ira point au delà (Diderot, Pensées sur l’interprétation de la nature, seç. 4; cf. secs. 17, 21).

Diderot é um dos grandes representantes da filosofia do iluminismo. Como editor da Encyclopédie se achava no verdadeiro centro de todos os grandes movimentos intelectuais de sua época. Ninguém teve uma perspectiva mais clara do desenvolvimento geral do pensamento científico nem uma percepção mais apurada de todas as tendências do século XVIII. E o que Diderot tem de mais característico e notável como representante de todos os ideais do iluminismo, é o fato de ter começado a duvidar deles, em sua validade absoluta. Espera que surja uma nova forma de ciência — de caráter mais concreto, apoiada antes na observação dos fatos que na presunção de princípios gerais. A seu ver, sobrestimamos em demasia nossos métodos lógicos e racionais. Sabemos comparar, organizar e sistematizar fatos conhecidos; mas não cultivamos os únicos métodos pelos quais nos seria possível descobrir novos fatos. Vivemos na ilusão de que o homem que não sabe contar sua fortuna não se acha em melhor situação que aquele que não tem fortuna alguma. Está próximo, todavia, o momento em que superaremos este preconceito e, então, teremos alcançado um ponto novo e culminante na história da ciência natural.

Cumpriu-se a profecia de Diderot? Acaso lhe confirmou o ponto de vista o desenvolvimento das ideias científicas no século XIX? Num ponto, sem dúvida, seu erro é patente. Sua expectativa de que o pensamento matemático se deteria, de que os grandes matemáticos do século XVIII haviam alcançado as Colunas de Hércules, revelou-se totalmente falsa. À constelação do século XVIII devemos agora juntar os nomes de Gauss, Riemann, Weierstrass, Poincaré. Por toda parte, na ciência do século XIX, encontramos com a marcha triunfal de novas ideias e conceitos matemáticos. Não obstante, a predição de Diderot continha um elemento de verdade, pois a inovação da estrutura intelectual do século XIX está no lugar que o pensamento matemático ocupa na hierarquia científica. Nova força principia a aparecer. O pensamento biológico precede o pensamento matemático. Na primeira metade do século XIX ainda existem metafísicos como Herbart e psicólogos como G. Th. Fechner, que alimentam a esperança de fundar uma psicologia matemática. Mas esses projetos se dissipam rapidamente após a publicação da obra de Darwin Sobre a Origem das Espécies. A partir deste momento parece definitivamente fixado o verdadeiro caráter da filosofia antropológica. Depois de um sem-número de tentativas infrutíferas, a filosofia do homem pisa, afinal, terreno firme. Já não precisamos entregar-nos a especulações vãs, pois não estamos à cata de uma definição geral da natureza ou da essência do homem. Nosso problema se resume em reunir as provas empíricas que a teoria geral da evolução colocou à nossa disposição, farta e ricamente.


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