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Yates: Repercussões dos Manifestos RC

domingo 31 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

Frances Yates   — Manifestos Rosa-Cruzes
Repercussão dos Manifestos
Na época, esses avisos despertaram um interesse exaltado, e muitos esforçaram-se por entrar em contato com os Irmãos R.C. por cartas, apelos impressos e panfletos. Uma torrente de trabalhos impressos irrompe desses manifestos, respondendo ao convite feito por aqueles que os escreveram, a fim de se comunicarem e cooperarem no trabalho da Ordem. Contudo, os apelos ficaram sem resposta. Os Irmãos — se existiam — pareciam invisíveis e impérvios às solicitações para se darem a conhecer. Este mistério não diminuiu o interesse pelos fabulosos Irmãos, mas ao contrário, intensificou-o.

Das várias escolas do pensamento sobre o mistério rosa-cruz, hoje em dia podemos certamente excluir os fundamentalistas, as pessoas que acreditam na verdade literal da história de Christian Rosencreutz e a sua Irmandade. A seguir, existem os motejadores, pessoas acreditando que tudo não passava de um embuste. A invisibilidade dos Irmãos, a sua aparente recusa de dar aos seus discípulos qualquer sinal de sua existência, naturalmente estimula tal opinião.

O leitor desses manifestos, meditando sobre os mesmos, surpreende-se pelo contraste entre a seriedade do estilo de sua mensagem religiosa e filosófica, e o caráter fantasioso com o qual a mensagem é apresentada. Um movimento religioso usando a alquimia   para intensificar a sua piedade evangélica e incluindo um extenso programa de pesquisa e reforma nas ciências, certamente representa um fenômeno interessante. Que as ciências sejam concebidas em termos hermético-cabalístico-renascentistas como relacionadas à "Magia" e à "Cabala  ", é natural para a época, e até para o milenarismo — que o novo alvorecer é concebido como um período de luz e adiantamento precedendo o fim do mundo — não é inconsistente com o modo de pensar evoluído daquela época. A Grande Reforma das ciências, de Francis Bacon  , tem um toque milenar, conforme Paolo Rossi   demonstrou [1]. A história de Christian Rosencreutz, de seus Irmãos R.C. e da abertura da caverna mágica contendo seu túmulo, não foi cogitada para ser considerada como textualmente verdadeira pelos idealizadores dos manifestos, que evidentemente estavam tirando proveito das lendas do tesouro enterrado, milagrosamente redescoberto, tão frequentes na tradição alquímica. Existe uma ampla evidência, nos próprios textos, de que a história era uma alegoria ou ficção. A abertura da porta da caverna abobadada, simboliza a abertura de uma porta na Europa. A caverna é iluminada por um sol interior, sugerindo que a entrada na mesma deveria representar uma experiência íntima, sendo igual à caverna através da qual brilha a luz, segundo o Amphitheatrum Sapientiae, de Khunrath.

Todavia, na época e desde então, muitos leitores ingênuos acreditaram literalmente na história. A mais recente ilustração crítica sobre o mistério rosa-cruz enfatizou que o próprio Johann Valentin   Andreae descreveu-o como fictício, como uma comédia, ou mesmo "uma pilhéria". Evidentemente Andreae encontrava-se por trás das cenas de todo esse movimento ao qual ele se refere com frequência em seus inúmeros trabalhos (outros que não o seu Chemical Wedding, que se situa quase como um terceiro manifesto rosa-cruz). A palavra latina por ele usada mais vezes, mencionando o movimento rosa-cruz, é ludibrium. Sobre os manifestos emprega expressões como "o ludibrium da Fama irreal", ou "o ludibrium da fictícia Irmandade rosa-cruz". Paul Arnold   traduziu ludibrium em francês, como "une farce" e declarou que o próprio Andreae nos comunicara que todo esse assunto era uma pilhéria [2]. Charles Webster julga que as frases sobre o ludibrium são "termos derrisórios" [3].

É verdade que por esses termos, Andreae estava tentando dissociar-se do mistério rosa-cruz — que na ocasião ele o descrevera como perigoso — embora eu não pense que essa seja toda a explicação do termo ludibrium. Um ludibrium podia ser uma peça teatral, uma ficção cômica, e — conforme será comentado mais detalhadamente num próximo capítulo — Andreae julgava o teatro como sendo uma influência moral e educativa. A dramaticidade do movimento rosa-cruz, conforme revelada nos comentários e alusões feitas por ele, é um dos aspectos mais fascinantes de todo esse assunto. Antecipo-me a mencionar isto aqui, a fim de sugerir que a Fama e a Confessio como um ludibrium, seja o que for que isso possa significar (e devemos manter nossas mentes esclarecidas sobre isso, até que o assunto seja mais estudado) estimula-nos a pensar que embora os idealizadores dos manifestos não tenham pretendido que a história de Christian Rosencreutz fosse considerada literalmente verdadeira, talvez pudesse ser verdade em algum outro sentido, que ela fosse uma divina comédia  , ou alguma apresentação de um complexo movimento religioso e filosófico, exercendo um domínio direto sobre os tempos.

Estamos numa situação mais firme do que a dos primeiros investigadores, por sabermos que a maior influência sobre eles foi a Monas hieroglyphica, de John Dee  . Esta foi a "mais secreta filosofia" por trás deles. A alegoria da abertura da caverna abobadada e a revelação das maravilhas nela contidas representariam a liberação de um novo influxo de influências que derivavam fundamentalmente e principalmente, embora não inteiramente, de Dee — o qual se encarregara de uma missão, na década dos mil quinhentos e oitenta, num ambiente conhecido por Christian de Anhalt, organizador do movimento para fazer de Frederico, o Eleitor Palatino, Rei da Boêmia. Creio que os manifestos representam os elementos místicos básicos na retaguarda desse movimento; um movimento intensamente religioso, hermético, mágico, alquímico e reformador, igual àquele que Dee propagara na Boêmia. Não devemos super-enfatizar esse aspecto dos manifestos, pois muitas outras influências poderiam também ter desempenhado aí sua parte; contudo, é de suma importância levarmos em consideração o movimento contemporâneo originado por Frederico com os manifestos, e o fato de que a influência de Dee sobre eles (do que não pode haver dúvidas) adapta-se à sugestão de que eles poderiam pertencer ao ambiente daquele movimento.

Essas hipóteses podem ser extraordinariamente rebatidas com uma outra evidência. Os inimigos do movimento podem fornecer-nos a mais valiosa informação, e é para eles que nos voltamos agora para uma orientação.


[1Paolo Rossi, Francis Bacon, From Magic to Science, Londres, 1968, pp. 128 e ss.

[2Paul Arnold, Histoire des Rose-Croix, Paris, 1935, p. 50.

[3Charles Webster, "Macaria: Samuel Hartlib and the Great Reformation", Acta Comeniana, 26 (1970), p. 149.