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Yates Agostinho Hermetismo

domingo 31 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

Frances Yates  Giordano Bruno   e a Tradição Hermética
Excertos da tradução de Yolanda Steidel de Toledo

Agostinho, porém, era mais difícil para um mago da Renascença que desejasse permanecer cristão. Na Civitate Dei, emite uma severa condenação do que escrevera "Hermes, o egípcio, chamado Trismegisto", a respeito dos ídolos, baseado na passagem do Asclépio, que ele cita por extenso, sobre o ritual egípcio em que se animavam as estátuas de seus deuses por meios mágicos, atraindo espíritos para dentro delas. [1] Agostinho não se serviu de um texto grego do Asclépio, como fizera Lactâncio, mas da mesma tradução latina utilizada por nós e que deve, portanto, ser tão antiga quanto o século IV. [2] Como antes mencionamos, essa tradução era habitualmente atribuída a Apuleio   de Madaura.

O contexto em que Agostinho condenou a passagem idólatra do Asclépio é importante. Ele ataca a magia em geral e, em particular, o parecer de Apuleio de Madaura [3] sobre os espíritos ou daemones
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Agostinho considerou Apuleio um platônico, e o atacou pelas suas opiniões a respeito dos espíritos etéreos ou daemones, intermediários entre os deuses e os homens, que descreve em sua obra sobre o "demônio" de Sócrates  . Agostinho considerou isso uma impiedade, não por descrer de espíritos etéreos ou demônios, mas por achar que são maus espíritos ou diabos. Prosseguiu atacando Hermes Trismegisto por ter louvado os egípcios a propósito da magia graças à qual atraíam os espíritos, ou demônios, para dentro das estátuas de seus deuses, animando-as desta forma e transformando-as em deuses. Citou literalmente a passagem do Asclépio a respeito da criação dos deuses. Explicou depois a profecia segundo a qual a religião egípcia terminaria, e comentou o lamento pelo seu fim, o qual interpretou como uma profecia do fim da idolatria graças ao advento do cristianismo. Também aqui Hermes Trismegisto foi tido como um profeta do advento do cristianismo, mas todo o apreço por esse fato lhe foi retirado pela declaração de Agostinho, de que essa presciência do futuro lhe fora dada pelos demônios que reverenciava.

"Hermes profetizou esses fatos na qualidade de confederado do Diabo, suprimindo a evidência do nome cristão e predizendo com uma triste insinuação que disso proviria a ruína de toda a superstição idólatra: visto ser Hermes um daqueles que (como diz o apóstolo) ’conhecendo bem Deus, não O glorificavam como Deus, nem Lhe agradeciam, mas envaideciam-se em sua imaginação, sendo seu tolo coração cheio de trevas.. .’ " [4]

Todavia, continua Agostinho, "este Hermes muito diz de Deus conforme a verdade", embora o houvesse cegado sua admiração pela idolatria egípcia, e o Diabo lhe houvesse inspirado sua profecia do passamento desta. Em contrapartida, ele cita um verdadeiro profeta como Isaías, que disse: "Os ídolos do Egito serão movidos perante Sua face, e o coração dos egípcios se derreterá no meio dela". [5]

Agostinho nada diz, em absoluto, sobre a menção do "Filho de Deus", e toda a sua visão do assunto talvez seja, em parte, uma réplica à glorificação feita de Hermes como profeta gentio, por Lactâncio.

Os pareceres de Agostinho sobre Hermes apresentaram, naturalmente, dificuldades para os admiradores dos escritos herméticos da Renascença. Abriam-se-lhes vários caminhos. Um deles era afirmar que a passagem idólatra do Asclépio era uma interpolação feita na tradução latina pelo mago Apuleio, e não se achava no original grego de Hermes, já perdido. Foi este o procedimento adotado por diversos hermetistas do século XVI, como veremos mais tarde. Para os magos da Renascença, porém, a magia do Asclépio era a parte mais atraente dos escritos herméticos. Mas como haveria um mago cristão de contornar Agostinho? Marsílio Ficino   o fez, citando a condenação de Agostinho e depois desconsiderando-a, ainda que timidamente, pela sua prática da magia. Giordano Bruno tomaria o caminho mais usado de sustentar que a religião mágica egípcia, uma religião do mundo, era não só a mais antiga, como a única religião verdadeira, a qual tanto o judaísmo como o cristianismo haviam corrompido e obscurecido.

Existe outra passagem sobre Hermes Trismegisto no De civitate Dei, mas separada em larga medida da que se refere à idolatria egípcia, e num contexto muito diferente. Agostinho afirmava a antiguidade da língua hebraica, dizendo que os profetas e filósofos hebreus eram muito mais antigos que qualquer filósofo gentio, e que a sabedoria dos patriarcas precedera a egípcia.

"Em que consistia essa sua bela sabedoria? Em nada, na verdade, a não ser na astronomia e em outras ciências, que parecem exercitar a finura de espírito, mais do que elevar os conhecimentos. Quanto à moralidade, ela não floresceu no Egito até o tempo de Trismegisto, que viveu muito antes dos filósofos e sábios da Grécia, mas depois de Abraão, Isaque, Jacó, José e Moisés; porquanto, no tempo em que nasceu Moisés, era vivo Atlas, irmão de Prometeu, um grande astrônomo, que foi avô pelo lado materno do mais velho Mercúrio, que gerou o pai deste Trismegisto." [6]

Agostinho confirmou assim, com o peso de sua grande autoridade, a extrema antiguidade de Hermes Trismegisto, que vivera "muito antes dos sábios e filósofos da Grécia". E, pelo fato de lhe conceder essa curiosa genealogia, que o situa três gerações depois de um contemporâneo de Moisés, Agostinho levantou uma questão que viria a ser muito debatida, concernente às épocas em que teriam vivido Moisés e Hermes. Seria Hermes um pouco posterior a Moisés, não obstante ser anterior aos gregos, como afirmava Agostinho? Seria Hermes contemporâneo ou anterior a Moisés? Todas essas opiniões foram mantidas pelos hermetistas e magos. A necessidade de situar Hermes em relação a Moisés foi estimulada pelas afinidades com o Gênesis, que certamente impressionaram todos os leitores do Pimandro hermético.


Notas FOOTNOTEAREA() /


[1Agostinho, De civ. Dei, VIII, xxiii-xxvi. Ele cita do Asclépio, 23-24-37; ver C. h., II, págs. 325 e segs.

[2C. h., II, pág. 259.

[3De civ. Dei, VIII, xiii-xxii.

[4De civ. Dei, xxiii, citado na tradução inglesa de John Healey A citação é de Romanos, I, xxi.

[5Isaías, XIX, 1

[6De civ. Dei, XVIII, xxix; citado na tradução de Healey.