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Yates: Fama Fraternitatis

domingo 31 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

Frances Yates   — Manifestos Rosa-Cruzes

FAMA FRATERNITATIS
Embora a mais antiga e conhecida edição impressa do primeiro manifesto rosa-cruz, a Fama, não tenha aparecido senão em 1614, o documento estivera circulando em manuscrito antes dessa data, pois em 1612 foi publicada uma resposta ao mesmo, dada por um certo Adam Haselmayer. Ele afirma ter visto um manuscrito da Fama no Tirol em 1610, e consta ter sido visto também um manuscrito em Praga em 1613. A "resposta" de Haselmayer está reeditada no volume que contém a primeira edição impressa da Fama. Haselmayer inclui-se entre os "Cristãos das Igrejas Evangélicas", aclama com entusiasmo a sabedoria iluminista da Fama, e faz algumas observações violentamente antijesuíticas. Faz alusão à expectativa muito difundida de mudanças radicais após a morte do Imperador Rodolfo II, ocorrida em 1612. Esta "resposta" de Haselmayer, no final do volume que contém a primeira edição impressa da Fama, está relacionada com um prefácio no início do volume, onde se declara que os jesuítas capturaram Haselmayer devido à sua resposta favorável ao apelo da Fama, e fizeram com que ele fosse preso e acorrentado numa galera. Esse prefácio sugere que o manifesto rosa-cruz esteja apresentando uma alternativa para a Ordem Jesuíta, uma irmandade baseada de um modo mais real nos ensinamentos de Jesus. Tanto a resposta de Haselmayer como o prefácio sobre ele são muito obscuros, e — com tanta literatura rosa-cruz — não podemos, assim, ter certeza se tais documentos devam ser levados a sério. Entretanto, a intenção geral está clara, a de associar o primeiro manifesto rosa-cruz com a propaganda anti-jesuítica.

Esse ponto também está demonstrado muito claramente na epígrafe do volume que contém a Fama, e que pode ser traduzida da seguinte maneira:

Reforma Geral e Universal de todo o vasto mundo; juntamente com a Fama Fraternitatis da Louvável Fraternidade da Rosa-Cruz, escrita para todos os Soberanos Eruditos da Europa; também uma curta réplica enviada por Herr Haselmayer, pela qual foi preso pelos jesuítas e acorrentado numa galera.

Tornem isto manifesto e comuniquem a todos os corações sinceros. Impresso em Cassel por Wilhelm Wessel, 1614.

Essa epígrafe envolve todo o conteúdo do volume, o qual inclui um extrato de um escritor italiano relativo à reforma geral (a ser analisada num capítulo mais adiante), à Fama e à resposta de Haselmayer. Assim, o leitor da primeira edição da Fama a lê num contexto que evidencia a tendência anti-jesuítica do manifesto, que não é tão óbvia, de acordo com a Fama quando analisada em si mesma.

A Fama começa com um chamado de atenção emocionante — um toque de trombeta que deveria ecoar por toda a Alemanha, e daí irradiar-se através da Europa. Nesses últimos tempos, Deus nos revelara um conhecimento mais perfeito de seu Filho, Jesus Cristo, e da Natureza. Ele elevara os homens, dotara-os com grande sabedoria, para que restaurassem todas as artes e as tornassem perfeitas, para que o homem "pudesse compreender a sua própria nobreza, por que é chamado microcosmo, e até que ponto o seu conhecimento se estende pela Natureza". Se os eruditos se unissem, poderiam agora coligir do Livro da Natureza um método perfeito de todas as artes. Mas a difusão desta nova luz e da verdade é impedida por aqueles que não abdicarão de seus antigos caminhos, estando atados à autoridade limitada de Aristóteles   e Galeno.

Após o início da peroração, o leitor é apresentado ao misterioso Rosencreutz, fundador de "nossa Fraternidade" que por muito tempo trabalhou para essa reforma geral. O Irmão Rosencreutz, um "homem iluminado", fora um grande viajante, principalmente no Oriente, onde os homens sábios estão querendo transmitir seus conhecimentos. O mesmo deveria ser feito hoje na Alemanha, onde não existe escassez de homens eruditos, "mágicos, cabalistas, médicos e filósofos", que deveriam colaborar mutuamente. O viajante aprendeu a "Magia e a Cabala  " do Oriente, e soube como empregá-la para intensificar sua própria fé e ingressar na "harmonia do mundo inteiro, maravilhosamente marcada em todas as épocas".

O Irmão R. C. seguiu depois para a Espanha, a fim de lá revelar, bem como aos eruditos da Europa, aquilo que aprendera. Demonstrou como "todas as imperfeições da Igreja e toda a Philosophia Moralis" deviam ser corrigidas. Ele ordenou uma nova axiomata, pela qual todas as coisas deviam ser restauradas; todavia, foi escarnecido. Seus ouvintes receavam "que seus nomes importantes pudessem ser diminuídos, caso agora começassem a aprender, e reconhecessem seus inúmeros erros de tantos anos". Rosencreutz ficou muito decepcionado, uma vez que se prontificava a partilhar seus conhecimentos com os eruditos "se ao menos tivessem tentado escrever a axiomata, verdadeira e infalível, apartados de todas as faculdades, ciências, artes e de toda a natureza". Caso isto fosse feito, poder-se-ia formar uma sociedade na Europa, que enriqueceria os governantes com os seus conhecimentos e a todos aconselharia. Naqueles dias, o mundo estava prenhe de confusões, e esforçava-se por produzir homens que surgissem dessa nebulosidade. Um desses foi Teofrasto (Paracelso  ), que estava "bem assentado na harmonia supramencionada", embora não fosse "de nossa Fraternidade".

Enquanto isso, o Irmão R. C. voltara para a Alemanha, ciente das alterações vindouras e das controvérsias perigosas. (Segundo a Confessio, o Irmão R. C. nascera em 1378 e viveu 106 anos; portanto, supõe-se que sua vida e seu trabalho ocorreram nos séculos XIV e XV). Construiu uma casa, onde meditava sobre a sua filosofia, despendendo muito tempo com o estudo da matemática, e fez muitos instrumentos. Pôs-se a desejar a reforma ainda mais fervorosamente e a organizar os ajudantes, começando apenas com três. "Foi desse modo que começou a Fraternidade da Rosa-Cruz; primeiro, só com quatro pessoas, e por meio delas foi formada a linguagem e escrita mágica, com um grande dicionário, por eles ainda hoje usado diariamente para exaltar e glorificar a Deus."

O escritor da Fama continua então a relatar a história imaginária dessa Ordem imaginária, e que aqui sumariamos, porquanto o relato completo se acha no Apêndice. A Ordem cresceu em números. Possuíam um prédio como sede, a Casa do Espírito Santo. Sua atividade principal era a assistência aos doentes, mas também viajavam muito a fim de adquirir e difundir conhecimentos. Observavam seis preceitos, o primeiro dos quais era não ter outra profissão salvo aquela de tratar dos enfermos, e "a título gratuito". Não deviam usar qualquer hábito característico, porém vestir-se segundo a moda do país em que se encontravam. Deviam reunir-se uma vez por ano em sua Casa do Espírito Santo.

O primeiro da Fraternidade a morrer, faleceu na Inglaterra. Muitos outros Irmãos sucederam aos Irmãos originais, e recentemente a Irmandade, ou Fraternidade, adquiriu um novo sentido, através da descoberta da caverna abobadada, na qual o Irmão Rosencreutz foi enterrado. A porta para essa caverna foi milagrosamente achada, e ela simboliza a abertura de uma porta na Europa, por muitos imensamente desejada.

A descrição dessa caverna é uma característica fundamental da lenda sobre Rosencreutz. A luz solar jamais brilhava nela, contudo era iluminada por um sol interno. Em seus muros estavam gravados os nomes dos Irmãos e figuras geométricas; nela havia muitos tesouros, inclusive alguns dos trabalhos de Paracelso, sinetas maravilhosas, lanternas e "cantos artificiais". A Irmandade já possuía a sua "Rota" e "o Livro M.". O túmulo de Rosencreutz situava-se embaixo do altar da caverna.

A descoberta da caverna representa o sinal para a reforma geral; é a aurora precedendo o nascer do sol. "Sabemos... que agora haverá uma reforma geral, das coisas divinas e humanas, de acordo com nosso desejo e a expectativa de outros, pois é conveniente que antes do nascer do sol deva irromper a Aurora, ou alguma claridade ou luz divina no céu." A data na qual a caverna foi descoberta está indicada indiretamente como sendo 1604.

Esse documento muito singular, a Fama Fraternitatis, parece, portanto, relatar através da alegoria da caverna abobadada, a descoberta de uma nova, ou antes, recente e antiga filosofia, fundamentalmente alquímica e relacionada com a medicina e a cura, mas também interessada em números e geometria, e com a produção de prodígios mecânicos. Ela representa não apenas um adiantamento para a cultura, mas sobretudo uma iluminação de natureza religiosa e espiritual. Essa nova filosofia está prestes a ser revelada ao mundo e provocará uma reforma geral. Os agentes míticos de sua difusão são os Irmãos R. C. Estes constam como sendo cristãos alemães, piedosamente evangélicos. A sua fé religiosa parece intimamente associada com a sua filosofia alquímica, que. nada tem a ver com "a fabricação do ouro ímpia e execrável", pois as riquezas oferecidas pelo Pai Rosencreutz são espirituais; "ele não se rejubila por não poder fabricar ouro, mas sente-se satisfeito por ver o Céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo, e seu nome escrito no Livro da Vida".