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Nietzsche (Obra) – Sujeito

segunda-feira 11 de setembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

A bela aparência do mundo do sonho, em cuja produção cada ser humano é um artista consumado, constitui a precondição de toda arte plástica, mas também, como veremos, de uma importante metade da poesia. Nós desfrutamos de uma compreensão imediata da figuração, todas as formas nos falam, não há nada que seja indiferente e inútil. Na mais elevada existência dessa realidade onírica temos ainda, todavia, a transluzente sensação de sua aparência: pelo menos tal é a minha experiência, em cujo favor poderia aduzir alguns testemunhos e passagens de poetas. O homem de propensão filosófica tem mesmo a premonição de que também sob essa realidade, na qual vivemos e somos, se encontra oculta uma outra, inteiramente diversa, que portanto também é uma aparência: e Schopenhauer   assinalou sem rodeios, como característica da aptidão filosófica, o dom de em certas ocasiões considerar os homens e todas as coisas como puros fantasmas ou imagens oníricas. Assim como o filósofo procede para com a realidade da existência [Dasein], do mesmo modo se comporta a pessoa suscetível ao artístico, em face da realidade do sonho; observa-o precisa e prazerosamente, pois a partir dessas imagens interpreta a vida e com base nessas ocorrências exercita-se para a vida. As imagens agradáveis e amistosas não são as únicas que o SUJEITO experimenta dentro de si com aquela onicompreensão, mas outrossim as sérias, sombrias, tristes, escuras, as súbitas inibições, as zombarias do acaso, as inquietas expectativas, em suma, toda a “divina comédia  ” da vida, com o seu Inferno, desfila à sua frente, não só como um jogo de sombras — pois a pessoa vive e sofre com tais cenas — mas tampouco sem aquela fugaz sensação da aparência; e talvez alguns, como eu, se lembrem de que, em meio aos perigos e sobressaltos dos sonhos, por vezes tomaram-se de coragem e conseguiram exclamar: “É um sonho! Quero continuar a sonhá-lo!”. Assim como também me contaram a respeito de pessoas que foram capazes de levar adiante a trama causal de um e mesmo sonho durante três ou mais noites consecutivas: são fatos que prestam testemunho preciso de que o nosso ser mais íntimo, o fundo comum a todos nós, colhe no sonho uma experiência de profundo prazer e jubilosa necessidade. Nietzsche   Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 1

O artista plástico, e simultaneamente o épico, seu parente, está mergulhado na pura contemplação das imagens. O músico dionisíaco, inteiramente isento de toda imagem, é ele próprio dor primordial e eco primordial desta. O gênio lírico sente brotar, da mística auto-alienação e estado de unidade, um mundo de imagens e de símiles, que tem coloração, causalidade e velocidade completamente diversas do mundo do artista plástico e do épico. Enquanto este último vive no meio dessas imagens, e somente nelas, com jubilosa satisfação e não se cansa de contemplá-las amorosamente em seus menores traços, enquanto até mesmo a imagem de Aquiles enraivecido é para ele apenas uma imagem cuja raivosa expressão desfruta com aquele seu prazer onírico na aparência — de tal modo que, graças a esse espelho da aparência, fica protegido da unificação e da fusão com suas figuras —, as imagens do poeta lírico, ao contrário, nada são exceto ele mesmo e como que tão-somente objetivações diversas de si próprio. Por essa razão, ele, como centro motor daquele mundo, precisa dizer “eu”: só que essa “eudade” [Ichheit] não é a mesma que a do homem empírico-real, desperto, mas sim a única “eudade” verdadeiramente existente [seiende] e eterna, em repouso no fundo das coisas, mediante cujas imagens refletidas o gênio lírico penetra com o olhar até o cerne do ser. Pensemos agora como ele, entre essas reproduções, avista também a si mesmo como não-gênio, isto é, seu “SUJEITO” [Subjekt], todo o tumulto de suas paixões e aspirações subjetivas dirigidas para uma determinada coisa que lhe parece real; se agora se nos afigurasse como se o gênio lírico e o não-gênio a ele vinculados fossem um só e como se o primeiro proferisse por si só aquela palavrinha “eu”, então essa aparência não poderia mais nos transviar, como sem dúvida transviou àqueles que tacharam de lírico o poeta subjetivo. Na verdade, Arquíloco, o homem apaixonadamente ardoroso, no amor e no ódio, é apenas uma visão do gênio, que já não é Arquíloco, porém o gênio universal, e exprime simbolicamente seu sofrimento primigênio naquele símile do homem Arquíloco: ao passo que aquele homem Arquíloco que deseja e quer subjetivamente não pode jamais e em parte alguma ser poeta. Mas nem é de modo algum necessário que o lírico veja diante de si apenas o fenômeno do homem Arquíloco como reflexo do eterno Ser; e a tragédia demonstra até que ponto o universo visionário do poeta lírico pode distanciar-se desse fenômeno que é de fato o que lhe está mais próximo. Nietzsche Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 5

Schopenhauer, que não ocultou a dificuldade oferecida pelo lírico para o exame filosófico da arte, julgou ter descoberto uma saída, mas eu não posso acompanhá-lo nessa senda, conquanto só a ele, em sua profunda metafísica da música, foi dado ter em mãos o meio pelo qual o referido óbice poderia ser definitivamente removido, ou seja, tal como eu, segundo o seu espírito e em sua honra, julguei havê-lo feito aqui. Ao contrário, ele caracteriza a natureza própria da canção lírica [Lied] do seguinte modo (Welt als Wille und Vorstellung I, p. 295): “É o SUJEITO da Vontade, ou seja, o próprio querer, que enche a consciência do cantante, amiúde como um querer liberto e satisfeito (alegria), com maior frequência porém como um querer inibido (luto), mas sempre como afeto, paixão, agitado estado de alma. Ao lado disso, no entanto, e concomitantemente, através do espetáculo da natureza circundante, o cantante toma consciência de si como SUJEITO do puro conhecer desprovido de vontade, cuja inabalável e bem-aventurada calma apresenta-se agora em contraste com a impulsão [Drang] do sempre limitado, e todavia sempre indigente querer: o sentimento desse contraste, desse jogo de alternância, é propriamente o que se exprime no conjunto da canção e o que em geral a condição lírica perfaz. Nesta, como que se acerca de nós o conhecer puro a fim de nos libertar do querer e de sua impulsão: seguimo-lo; contudo, só por alguns instantes: sempre de novo o querer, a lembrança de nossos fins pessoais, nos arranca da serena inspeção; mas também sempre de novo nos tira do querer a primeira bela cercania na qual se nos ofereça o puro conhecimento desprovido de vontade. Por isso, na canção e na disposição líricas andam em maravilhosa e desordenada mistura o querer (o interesse pessoal nos fins) e a pura contemplação da ambiência oferecida: relações entre ambos são procuradas e imaginadas; a disposição subjetiva, a afecção da vontade, comunicam à ambiência contemplada suas cores em reflexo e vice-versa: a canção autêntica é a expressão de todo esse estado de alma tão mesclado e dividido”. Nietzsche Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 5

Quem poderá deixar de reconhecer nessa descrição que a lírica é aí caracterizada como uma arte jamais perfeitamente realizada, como que sempre em salto e raramente chegando à meta, sim, como uma semi-arte, cuja essência consistiria em que o querer e a pura contemplação, isto é, o estado inestético e o estético, estivessem estranhamente misturados? Nós, de nossa parte, afirmamos antes que toda essa contraposição do subjetivo e do objetivo, segundo a qual, como se fora uma medida de valor, mesmo Schopenhauer ainda divide as artes, é em geral inadequada em estética, uma vez que o SUJEITO, o indivíduo que quer e que promove os seus escopos egoísticos, só pode ser pensado como adversário e não como origem da arte. Mas na medida em que o SUJEITO é um artista, ele já está liberto de sua vontade individual e tornou-se, por assim dizer, um medium através do qual o único SUJEITO verdadeiramente existente celebra a sua redenção na aparência. Pois, acima de tudo, para a nossa degradação e exaltação, uma coisa nos deve ficar clara, a de que toda a comédia da arte não é absolutamente representada por nossa causa, para a nossa melhoria e educação, tampouco que somos os efetivos criadores desse mundo da arte: mas devemos sim, por nós mesmos, aceitar que nós já somos, para o verdadeiro criador desse mundo, imagens e projeções artísticas, e que a nossa suprema dignidade temo-la no nosso significado de obras de arte — pois só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente —, enquanto, sem dúvida, a nossa consciência a respeito dessa nossa significação mal se distingue da consciência que têm, quanto à batalha representada, os guerreiros pintados em uma tela. Portanto, todo o nosso saber artístico é no fundo inteiramente ilusório, porque nós, como sabedores, não formamos uma só e idêntica coisa com aquele ser que, na qualidade de único criador e espectador dessa comédia da arte, prepara para si mesmo um eterno desfrute. Somente na medida em que o gênio, no ato da procriação artística, se funde com o artista primordial do mundo, é que ele sabe algo a respeito da perene essência da arte; pois naquele estado assemelha-se, miraculosamente, à estranha imagem do conto de fadas, que é capaz de revirar os olhos e contemplar-se a si mesma; agora ele é ao mesmo tempo SUJEITO e objeto, ao mesmo tempo poeta, ator e espectador. Nietzsche Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 5

Sobre os traços marcantes da ópera não se estende, portanto, de modo algum, aquela dor elegíaca de uma perda eterna, mas antes a serenojovialidade do eterno reencontrar, o cômodo prazer de um mundo idílico afetivo, o qual se pode imaginar a cada momento como efetivamente real: a cuja vista alguma vez se pressente, quiçá, que essa pretensa realidade não é senão um néscio brincar fantástico, a que todo homem capaz de medi-lo com a terrível seriedade da verdadeira natureza e compará-lo com as autênticas cenas primevas dos primórdios da humanidade deveria bradar com asco: Fora com o fantasma! Não obstante, enganar-nos-íamos se acreditássemos que seria possível, simplesmente com um grito enérgico, afugentar, como a um espectro, semelhante ser de brincadeira, que é a ópera. Quem quiser aniquilar a ópera terá de empreender a luta contra aquela serenojovialidade alexandrina que nela se expressa tão ingenuamente acerca de sua ideia favorita, sim, cuja autêntica forma de arte ela é. Mas o que se há de esperar para a própria arte, da atuação de uma forma artística cujas fontes primordiais não residem, de maneira nenhuma, no âmbito do estético, que, a bem dizer, se contrabandeou de uma esfera meio moral para o domínio artístico e que só aqui e acolá pôde alguma vez iludir sobre essa formação híbrida? De que seivas se nutre esse ser parasitário que é a ópera, se não são as da verdadeira arte? Não é de se presumir que, sob suas idílicas seduções, sob suas alexandrinas artes da lisonja, a suprema e, cumpre assim chamá-la, verdadeiramente séria tarefa da arte — livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o SUJEITO, graças ao bálsamo da aparência, do espasmo dos movimentos do querer — degenerará em vazia e dissipadora tendência ao divertimento? O que será das sempiternas verdades do dionisíaco e do apolíneo numa tal mistura de estilos, como eu a expus na essência do stilo rappresentativo, onde a música é considerada como serva, a palavra do texto como senhor, onde a música é comparada ao corpo e a palavra do texto à alma, onde, no melhor dos casos, o mais alto desígnio estará dirigido para uma pintura sonora transcritiva, similarmente ao que ocorreu outrora no novo ditirambo ático, onde a música é inteiramente alheada de sua verdadeira dignidade, a de ser espelho dionisíaco do mundo, de tal modo que só lhe resta, como escrava da aparência, arremedar a essência formal desta e, no jogo das linhas e proporções, provocar uma diversão externa? A uma consideração mais severa, essa funesta influência da ópera sobre a música coincide precisamente com o conjunto do desenvolvimento musical moderno; o otimismo espreitante na gênese da ópera e na essência da cultura por ela representada logrou, com angustiante rapidez, despir a música de sua destinação universal dionisíaca e imprimir-lhe um caráter divertidor, de jogo de formas: alteração com a qual só se deveria comparar, porventura, a metamorfose do homem esquiliano no homem serenojovial alexandrino. Nietzsche Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 19

Supondo que a verdade seja uma mulher — não seria bem fundada a suspeita de que todos os filósofos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres? De que a terrível seriedade, a desajeitada insistência com que até agora se aproximaram da verdade, foram meios inábeis e impróprios para conquistar uma dama? É certo que ela não se deixou conquistar — e hoje toda espécie de dogmatismo está de braços cruzados, triste e sem ânimo. Se é que ainda está em pé! Pois há os zombadores que afirmam que caiu, que todo dogmatismo está no chão, ou mesmo que está nas últimas. Falando seriamente, há boas razões para esperar que toda dogmatização em filosofia, não importando o ar solene e definitivo que tenha apresentado, não tenha sido mais que uma nobre infantilidade e coisa de iniciantes; e talvez esteja próximo o tempo em que se perceberá quão pouco bastava para constituir o alicerce das sublimes e absolutas construções filosofais que os dogmáticos ergueram — alguma superstição popular de um tempo imemorial (como a superstição da alma, que, como superstição do SUJEITO e do Eu, ainda hoje causa danos), talvez algum jogo de palavras, alguma sedução por parte da gramática, l ou temerária generalização de fatos muito estreitos, muito pessoais, demasiado humanos. A filosofia dos dogmáticos foi, temos esperança, apenas uma promessa através dos milênios: assim como em época anterior a astrologia, a cujo serviço talvez se tenha aplicado mais dinheiro, trabalho, paciência, perspicácia do que para qualquer ciência verdadeira até agora: a ela e suas pretensões “supraterrenas” deve-se o grande estilo da arquitetura na Ásia e no Egito. Parece que todas as coisas grandes, para se inscrever no coração da humanidade com suas eternas exigências, tiveram primeiro que vagar pela Terra como figuras monstruosas e apavorantes: uma tal caricatura foi a filosofia dogmática, a doutrina vedanta na Ásia e o platonismo   na Europa, por exemplo. Não sejamos ingratos para com eles, embora se deva admitir que o pior, mais persistente e perigoso dos erros até hoje foi um erro de dogmático: a invenção platônica do puro espírito e do bem em si. Mas agora que está superado, agora que a Europa respira novamente após o pesadelo, e pode ao menos gozar um sono mais sadio, somos nós, cuja tarefa é precisamente a vigília, os herdeiros de toda a força engendrada no combate a esse erro. Certamente significou pôr a verdade de ponta-cabeça e negar a perspectiva, a condição básica de toda vida, falar do espírito e do bem tal como fez Platão; sim, pode-se mesmo perguntar, como médico: “De onde vem essa enfermidade no mais belo rebento da Antiguidade, em Platão? O malvado Sócrates   o teria mesmo corrompido? Teria sido realmente Sócrates o corruptor da juventude? E teria então merecido a cicuta?”. — Mas a luta contra Platão, ou, para dizê-lo de modo mais simples e para o “povo”, a luta contra a pressão cristã-eclesiástica de milênios — pois cristianismo é platonismo para o “povo” — produziu na Europa uma magnífica tensão do espírito, como até então não havia na Terra: com um arco assim teso pode-se agora mirar nos alvos mais distantes. Sem dúvida o homem europeu sente essa tensão como uma miséria; e por duas vezes já se tentou em grande estilo distender o arco, a primeira com o jesuitismo, a segunda com a Ilustração democrática — a qual pôde realmente conseguir, com ajuda da liberdade de imprensa e da leitura de jornais, que o espírito não mais sentisse facilmente a si mesmo como “necessidade”! (Os alemães inventaram a pólvora — todo o respeito! —, mas ficaram novamente quites: inventaram a imprensa.) Mas nós, que não somos jesuítas, nem democratas, nem mesmo alemães o bastante, nós, bons europeus e espíritos livres, muito livres, nós ainda as temos, toda a necessidade do espírito e toda a tensão do seu arco! E talvez também a seta, a tarefa e, quem sabe? a meta… [Sils-Maria, Alta Engadina, Junho de 1885] Além do Bem e do Mal Prólogo O sinal

12. Quanto ao atomismo materialista, está entre as coisas mais bem refutadas que existem; e talvez não haja atualmente, entre os doutores da Europa, nenhum tão indouto a ponto de lhe conceder importância fora do uso diário e doméstico (como uma abreviação dos meios de expressão). Graças, antes de tudo, ao polonês Boscovich, que foi até agora, juntamente com o polonês Copérnico, o maior e mais vitorioso adversário da evidência. Pois enquanto Copérnico nos persuadiu a crer, contrariamente a todos os sentidos, que a Terra não está parada, Boscovich nos ensinou a abjurar a crença na última parte da Terra que permanecia firme, a crença na “substância”, na “matéria”, nesse resíduo e partícula da Terra, o átomo: o maior triunfo sobre os sentidos que até então se obteve na Terra. — Mas é preciso ir ainda mais longe e declarar guerra, uma implacável guerra de baionetas, também à “necessidade atomista”, que, assim como a mais decantada “necessidade metafísica”, continua vivendo uma perigosa sobrevida em regiões onde ninguém suspeita: é preciso inicialmente liquidar aquele outro e mais funesto atomismo, que o cristianismo ensinou melhor e por mais longo tempo, o atomismo da alma. Permita-se designar com esse termo a crença que vê a alma como algo indestrutível, eterno, indivisível, como uma mônada, um atomon : essa crença deve ser eliminada da ciência! Seja dito entre nós que não é necessário, absolutamente, livrar-se com isso da “alma” mesma, renunciando a uma das mais antigas e veneráveis hipóteses: como sói acontecer à inabilidade dos naturalistas, que mal tocam na “alma” e a perdem. Está aberto o caminho para novas versões e refinamentos da hipótese da alma: e conceitos como “alma mortal”, “alma como pluralidade do SUJEITO” e “alma como estrutura social dos impulsos e afetos” querem ter, de agora em diante, direitos de cidadania na ciência. Ao pôr um fim à superstição que até agora vicejou, com luxúria quase tropical, em torno à representação da alma, é como se o novo psicólogo se lançasse em um novo ermo e uma nova desconfiança — para os velhos psicólogos, as coisas talvez fossem mais cômodas e alegres; mas afinal ele vê que precisamente por isso está condenado também à invenção — e, quem sabe?, à descoberta. Além do Bem e do Mal I 12

16. Ainda há ingênuos observadores de si mesmos que acreditam existir “certezas imediatas”; por exemplo, “eu penso”, ou, como era superstição de Schopenhauer, “eu quero”: como se aqui o conhecimento apreendesse seu objeto puro e nu, como “coisa em si”, e nem de parte do SUJEITO nem de parte do objeto ocorresse uma falsificação. Repetirei mil vezes, porém, que “certeza imediata”, assim como “conhecimento absoluto” e “coisa em si”, envolve uma contradictio in adjecto [contradição no adjetivo]: deveríamos nos livrar, de uma vez por todas, da sedução das palavras! Que o povo acredite que conhecer é conhecer até o fim; o filósofo tem de dizer a si mesmo: se decomponho o processo que está expresso na proposição “eu penso”, obtenho uma série de afirmações temerárias, cuja fundamentação é difícil, talvez impossível — por exemplo, que sou eu que pensa, que tem de haver necessariamente um algo que pensa, que pensar é atividade e efeito de um ser que é pensado como causa, que existe um “Eu”, e finalmente que já está estabelecido o que designar como pensar — que eu sei o que é pensar. Pois se eu já não tivesse me decidido comigo a respeito, por qual medida julgaria que o que está acontecendo não é talvez “sentir”, ou “querer”? Em resumo, aquele “eu penso” pressupõe que eu compare meu estado momentâneo com outros estados que em mim conheço, para determinar o que ele é: devido a essa referência retrospectiva a um “saber” de outra parte, ele não tem para mim, de todo modo, nenhuma “certeza” imediata. — No lugar dessa “certeza imediata”, em que o povo pode crer, no caso presente, o filósofo depara com uma série de questões da metafísica, verdadeiras questões de consciência para o intelecto, que são: “De onde retiro o conceito de pensar? Por que acredito em causa e efeito? O que me dá o direito de falar de um Eu, e até mesmo de um Eu como causa, e por fim de um Eu como causa de pensamentos?” Quem, invocando uma espécie de intuição do conhecimento, se aventura a responder de pronto essas questões metafísicas, como faz aquele que diz: “eu penso, e sei que ao menos isso é verdadeiro, real e certo” — esse encontrará hoje à sua espera, num filósofo, um sorriso e dois pontos de interrogação. “Caro senhor”, dirá talvez o filósofo, “é improvável que o senhor não esteja errado; mas por que sempre a verdade?” — Além do Bem e do Mal I 16

17. Quanto à superstição dos lógicos, nunca me cansarei de sublinhar um pequeno fato que esses supersticiosos não admitem de bom grado — a saber, que um pensamento vem quando “ele” quer, e não quando “eu” quero; de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o SUJEITO “eu” é a condição do predicado “penso”. Isso pensa: mas que este “isso” seja precisamente o velho e decantado “eu” é, dito de maneira suave, apenas uma suposição, uma afirmação, e certamente não uma “certeza imediata”. E mesmo com “isso pensa” já se foi longe demais; já o “isso” contém uma interpretação do processo, não é parte do processo mesmo. Aqui se conclui segundo o hábito gramatical: “pensar é uma atividade, toda atividade requer um agente, logo —”. Mais ou menos segundo esse esquema o velho atomismo buscou, além da “força” que atua, o pedacinho de matéria onde ela fica e a partir do qual atua, o átomo; cérebros mais rigorosos aprenderam finalmente a passar sem esse “resíduo de Terra”, e talvez um dia nos habituemos, e os lógicos também, a passar sem o pequeno “isso” (a que se reduziu, volatizando-se, o velho e respeitável Eu). Além do Bem e do Mal I 17

20. Os conceitos filosóficos individuais não são algo fortuito e que se desenvolve por si, mas crescem em relação e em parentesco um com o outro; embora surjam de modo aparentemente repentino e arbitrário na história do pensamento, não deixam de pertencer a um sistema, assim como os membros da fauna de uma região terrestre — tudo isto se confirma também pelo fato de os mais diversos filósofos preencherem repetidamente um certo esquema básico de filosofias possíveis. À mercê de um encanto invisível, tornam a descrever sempre a mesma órbita: embora se sintam independentes uns dos outros com sua vontade crítica ou sistemática, algo neles os conduz, alguma coisa os impele numa ordem definida, um após o outro — precisamente aquela inata e sistemática afinidade entre os conceitos. O seu pensamento, na realidade, não é tanto descoberta quanto reconhecimento, relembrança; retorno a uma primeva, longínqua morada perfeita da alma, de onde os conceitos um dia brotaram — neste sentido, filosofar é um atavismo de primeiríssima ordem. O curioso ar de família de todo o filosofar indiano, grego e alemão tem uma explicação simples. Onde há parentesco linguístico é inevitável que, graças à comum filosofia da gramática — quero dizer, graças ao domínio e direção inconsciente das mesmas funções gramaticais —, tudo esteja predisposto para uma evolução e uma sequência similares dos sistemas filosóficos: do mesmo modo que o caminho parece interditado a certas possibilidades outras de interpretação do mundo. Filósofos do âmbito linguístico uralo-altaico (onde a noção de SUJEITO teve o desenvolvimento mais precário) com toda a probabilidade olharão “para dentro do mundo” de maneira diversa e se acharão em trilhas diferentes das dos indo-germanos ou muçulmanos: o encanto exercido por determinadas funções gramaticais é, em última instância, o encanto de condições raciais e juízos de valor fisiológicos. — Isto como resposta à superficialidade de Locke   no tocante à origem das ideias. Além do Bem e do Mal I 20

34. Não importando o ponto de vista filosófico em que nos situemos hoje: o caráter errôneo do mundo onde acreditamos viver é a coisa mais firme e segura que nosso olho ainda pode apreender: — para isso encontramos muitas e muitas razões, que gostariam de nos induzir a conjecturas sobre um enganador princípio na “essência das coisas”. Mas quem responsabiliza nosso próprio pensar, ou seja, “o espírito”, pela falsidade do mundo — uma honrada escapatória, a que recorre todo advocatus dei [advogado de Deus] consciente ou inconsciente: quem toma esse mundo, junto com espaço, tempo, forma, movimento, como uma falsa conclusão: esse alguém teria, quando menos, um bom motivo para aprender a suspeitar enfim de todo o pensamento: não teria ele nos pregado a maior peça até agora? e que garantia pode haver de que ele não continue fazendo o que sempre fez? Com toda a seriedade: a inocência dos pensadores tem algo tocante e que inspira reverência, que ainda hoje lhes permite se postar ante a consciência e lhe pedir respostas honestas para algumas questões: por exemplo, se ela é “real”, por que mantém o mundo exterior tão decididamente à distância, e outras perguntas assim. A crença em “certezas imediatas” é uma ingenuidade moral, que nos honra, a nós, filósofos: mas — não devemos ser homens “apenas morais”! Prescindindo da moral, essa crença é uma estupidez que nos honra muito pouco! Na vida civil, a suspeita sempre alerta pode ser tida como indício de “mau caráter”, e portanto uma falta de bom senso: aqui entre nós, além do mundo civil e seus Nãos e Sins, — o que nos impediria de não ter bom senso e dizer: o filósofo, como a criatura que sempre foi mais ludibriada na Terra, tem simplesmente direito ao “mau caráter”, — ele tem hoje o dever da desconfiança, do olhar oblíquo e malicioso a partir de abismos de suspeita. — Perdoem-me a brincadeira dessa caricatura e expressão sombria: pois eu mesmo aprendi há muito a pensar de outro modo, a avaliar de outra maneira o enganar e o ser enganado, e guardo ao menos alguns socos para a fúria cega com que os filósofos resistem a ser enganados. Por que não ? Não passa de um preconceito moral que a verdade tenha mais valor que a aparência; é inclusive a suposição mais mal demonstrada que já houve. Admita-se ao menos o seguinte: não existiria nenhuma vida, senão com base em avaliações e aparências perspectivas; e se alguém, com o virtuoso entusiasmo e a rudeza de tantos filósofos, quisesse abolir por inteiro o “mundo aparente”, bem, supondo que vocês pudessem fazê-lo — também da sua “verdade” não restaria nada! Sim, pois o que nos obriga a supor que há uma oposição essencial entre “verdadeiro” e “falso”? Não basta a suposição de graus de aparência, e como que sombras e tonalidades do aparente, mais claras e mais escuras, — diferentes valeurs [valores], para usar a linguagem dos pintores? Por que não poderia o mundo que nos concerne — ser uma ficção? E a quem faz a pergunta: “mas a ficção não requer um autor?” — não se poderia replicar: Por quê? Esse “requer” não pertenceria também à ficção? Não é permitido usar de alguma ironia em relação ao SUJEITO, como em relação ao predicado e objeto? O filósofo não poderia se erguer acima da credulidade na gramática? Todo o respeito às governantas: mas não seria tempo de a filosofia abjurar da fé das governantas? — Além do Bem e do Mal II 34

54. Que faz, no fundo, toda a filosofia moderna? Desde Descartes   — e antes apesar dele do que a partir do seu precedente — todos os filósofos têm feito um atentado contra o velho conceito de alma, sob a aparência de uma crítica ao conceito de SUJEITO e predicado — ou seja: um atentado contra o pressuposto fundamental da doutrina cristã. A filosofia moderna, sendo um ceticismo epistemológico, é, abertamente ou não, anticristã : embora, diga-se para ouvidos mais sutis, de maneira nenhuma antirreligiosa. Pois antigamente se acreditava na “alma”, assim como se acreditava na gramática e no SUJEITO gramatical: dizia-se que “eu” é condição, “penso” é predicado e condicionado — pensar é uma atividade, para a qual um SUJEITO tem que ser pensado como causa. Tentou-se então, com tenacidade e astúcia dignas de admiração, enxergar uma saída nessa teia — se não seria verdadeiro talvez o contrário: “penso”, condição; “eu”, condicionado; “eu” sendo uma síntese, feita pelo próprio pensar. Kant   queria demonstrar, no fundo, que a partir do SUJEITO o SUJEITO não pode ser pensado — e tampouco o objeto: a possibilidade de uma existência aparente do SUJEITO, da “alma”, pode não lhe ter sido estranha, pensamento este que, como filosofia vedanta, já houve uma vez na terra, com imenso poder. Além do Bem e do Mal III 54

O desconhecido mundo do “SUJEITO”. — O que é tão difícil para os homens compreenderem, dos mais remotos tempos até hoje, é sua ignorância sobre si mesmos! Não apenas em relação ao bem e ao mal, mas em relação a coisas muito mais essenciais! Continua existindo a antiquíssima ilusão de saber, saber com precisão em cada caso, como se produz a ação humana. Não só “Deus, que tudo vê”, não só o autor, que cogita seu ato — não, ninguém mais duvida que compreende o essencial no processo da ação de cada um. “Eu sei o que quero, o que fiz, sou livre e responsável por isso, torno o outro responsável, posso dar o nome de todas as possibilidades morais e todos os movimentos interiores que precedem um ato; vocês podem agir como quiserem — nisso eu compreendo a mim e a todos vocês!” — assim pensava antes cada um, assim pensam ainda quase todos. Sócrates e Platão, grandes questionadores e admiráveis inovadores nesse ponto, foram, porém, inofensivamente crédulos quanto àquele nefasto preconceito, àquele profundíssimo erro, segundo o qual “o conhecimento correto é necessariamente acompanhado da ação correta” — neste princípio foram herdeiros da loucura e presunção geral de que há um saber relativo à essência de um ato. “Seria terrível se a percepção da essência do ato correto não fosse acompanhada do ato correto” — eis a única prova que aqueles grandes acharam necessária para tal pensamento, o oposto pareceu-lhes impensável e louco — e, no entanto, esse oposto é justamente a realidade nua, diariamente e a cada instante demonstrada, desde tempos imemoriais! Não é justamente isso a “terrível” verdade: que o que se pode saber de uma ação não basta jamais para fazê-la, que a ponte do conhecimento ao ato não foi lançada nem uma vez até hoje? Os atos não são jamais aquilo que nos parecem ser! Despendemos tantos esforços para aprender que as coisas exteriores não são como nos parecem ser — pois bem! dá-se o mesmo com o mundo interior! As ações morais são, na verdade, “algo diferente” — mais não podemos dizer; e todos os atos são essencialmente desconhecidos. A crença geral era e é o oposto: temos o mais antigo realismo contra nós; até agora a humanidade pensou: “Uma ação é aquilo que nos parece ser”. (Relendo essas palavras, vem-me à lembrança uma passagem bastante precisa de Schopenhauer, que citarei como prova de que também ele, sem qualquer hesitação, foi e permaneceu ligado a esse realismo moral: “De fato, cada um de nós é um juiz competente e inteiramente moral, que conhece exatamente o bem e o mal, ao amar o bem e abominar o mal — cada qual é isso tudo, na medida em que não as suas ações, mas as alheias são investigadas, e ele tem apenas de aprovar ou desaprovar, enquanto o fardo da execução é levado por ombros alheios. Assim, cada qual pode perfeitamente assumir o lugar de Deus como confessor.”) Aurora LIVRO II 116

Erro de uma falsa causalidade. — Em todos os tempos as pessoas acreditaram saber o que é uma causa: mas de onde tiramos nosso saber, ou, mais precisamente, a crença de sabermos? Do âmbito dos famosos “fatos interiores”, dos quais nenhum, até hoje, demonstrou ser real. Acreditávamos ser nós mesmos causais no ato da vontade; aí pensávamos, ao menos, flagrar no ato a causalidade. Tampouco se duvidava que todos os antecedentia de uma ação, suas causas, deviam ser buscados na consciência e nela se achariam novamente, ao serem buscados — como “motivos”: de outro modo não se teria sido livre para fazê-la, responsável por ela. Afinal, quem discutiria que um pensamento é causado? Que o Eu causa o pensamento?… Desses três “fatos interiores”, com que parecia estar garantida a causalidade. O primeiro e mais convincente é o da vontade como causa; a concepção de uma consciência (“espírito”) como causa e, mais tarde, a do Eu (“SUJEITO”) como causa nasceram posteriormente, depois que a causalidade da vontade se firmou como dado, como algo empírico… Nesse meio-tempo refletimos melhor. Hoje não acreditamos em mais nenhuma palavra disso. O “mundo interior” é cheio de miragens e fogos-fátuos: a vontade é um deles. A vontade não move mais nada; portanto, também não explica mais nada — ela apenas acompanha eventos, também pode estar ausente. O que chamam de “motivo”: outro erro. Apenas um fenômeno superficial da consciência, um acessório do ato, que antes encobre os antecedentia de um ato do que os representa. E quanto ao Eu! Tornou-se uma fábula, uma ficção, um jogo de palavras: cessou inteiramente de pensar, de sentir e de querer!… Que resulta disso? Não há causas mentais absolutamente! Toda a sua suposta evidência empírica foi para o diabo! Eis o que resulta disso! — E havíamos cometido um belo abuso com essa “evidência empírica”, com base nela havíamos criado o mundo como um mundo de causas, um mundo de vontade, um mundo de espíritos. A mais antiga e mais duradoura psicologia estava atuando aqui, não fazia outra coisa: para ela, todo acontecer é um agir, todo agir é consequência de uma vontade, o mundo tornou-se-lhe uma multiplicidade de agentes, um agente (um “SUJEITO”) introduziu-se por trás de todo acontecer. O homem projetou fora de si os seus três “fatos interiores”, aquilo em que acreditava mais firmemente, a vontade, o espírito, o Eu — extraiu a noção de ser da noção de Eu, pondo as “coisas” como existentes à sua imagem, conforme sua noção do Eu como causa. É de admirar que depois encontrasse, nas coisas, apenas o que havia nelas colocado? — A coisa mesma, repetindo, a noção de coisa, [é] apenas um reflexo da crença no Eu como causa… E até mesmo o seu átomo, meus caros mecanicistas e físicos, quanto erro, quanta psicologia rudimentar permanece ainda em seu átomo! — Para não falar da “coisa em si”, do horrendum pudendum [horrível parte pudenda] dos metafísicos! O erro do espírito como causa confundido com a realidade! E tornado medida da realidade! E denominado Deus! — Crepúsculo dos Ídolos VI - OS QUATRO GRANDES ERROS 3

Emerson. — Muito mais esclarecido, errante, múltiplo, refinado do que Carlyle, sobretudo mais feliz… Alguém que instintivamente se nutre apenas de ambrosia, que deixa de lado o que é indigesto nas coisas. Comparado a Carlyle, um homem de gosto. — Carlyle, que dele muito gostava, dizia dele, porém: “Não nos dá o suficiente para morder”: o que pode ser dito com justiça, mas não em detrimento de Emerson. — Emerson tem a boa e espirituosa jovialidade que desencoraja toda seriedade; ele simplesmente não sabe quão velho já é e quão jovem ainda será — ele poderia dizer de si mesmo, citando Lope de Vega: “yo me sucedo a mí mismo”. Seu espírito sempre acha motivos para estar satisfeito e até mesmo agradecido; e às vezes roça a jovial transcendência daquele bom SUJEITO que voltou de um encontro amoroso tamquam re bene [como de uma coisa bem-feita]. “Ut desint vires”, disse agradecido, “tamen est laudanda voluptas” [Embora faltem as forças, é de louvar a volúpia, no entanto]. — Crepúsculo dos Ídolos IX INCURSÕES DE UM EXTEMPORÂNEO 13

— Mas voltemos atrás: o problema da outra origem do “bom”, do bom como concebido pelo homem do ressentimento, exige sua conclusão. — Que as ovelhas tenham rancor às grandes aves de rapina não surpreende: mas não é motivo para censurar às aves de rapina o fato de pegarem as ovelhinhas. E se as ovelhas dizem entre si: “essas aves de rapina são más; e quem for o menos possível ave de rapina, e sim o seu oposto, ovelha — este não deveria ser bom?”, não há o que objetar a esse modo de erigir um ideal, exceto talvez que as aves de rapina assistirão a isso com ar zombeteiro, e dirão para si mesmas: “nós nada temos contra essas boas ovelhas, pelo contrário, nós as amamos: nada mais delicioso do que uma tenra ovelhinha”. — Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força. Um quantum de força equivale a um mesmo quantum de impulso, vontade, atividade — melhor, nada mais é senão este mesmo impulso, este mesmo querer e atuar, e apenas sob a sedução da linguagem (e dos erros fundamentais da razão que nela se petrificaram), a qual entende ou mal-entende que todo atuar é determinado por um atuante, um “SUJEITO”, é que pode parecer diferente. Pois assim como o povo distingue o corisco do clarão, tomando este como ação, operação de um SUJEITO de nome corisco, do mesmo modo a moral do povo discrimina entre a força e as expressões da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força. Mas não existe um tal substrato; não existe “ser” por trás do fazer, do atuar, do devir; “o agente” é uma ficção acrescentada à ação — a ação é tudo. O povo duplica a ação, na verdade; quando vê o corisco relampejar, isto é a ação da ação: põe o mesmo acontecimento como causa e depois como seu efeito. Os cientistas não fazem outra coisa quando dizem que “a força movimenta, a força origina”, e assim por diante — toda a nossa ciência se encontra sob a sedução da linguagem, não obstante seu sangue-frio, sua indiferença aos afetos, e ainda se livrou dos falsos filhos que lhe empurraram, os “sujeitos” (o átomo, por exemplo, é uma dessas falsas crias, e também a “coisa em si” kantiana): não é de espantar que os afetos entranhados que ardem ocultos, ódio e vingança, tirem proveito dessa crença, e no fundo não sustentem com fervor maior outra crença senão a de que o forte é livre para ser fraco, e a ave de rapina livre para ser ovelha — assim adquirem o direito de imputar à ave de rapina o fato de ser o que é… Se os oprimidos, pisoteados, ultrajados exortam uns aos outros, dizendo, com a vingativa astúcia da impotência: “sejamos outra coisa que não os maus, sejamos bons! E bom é todo aquele que não ultraja, que a ninguém fere, que não ataca, que não acerta contas, que remete a Deus a vingança, que se mantém na sombra como nós, que foge de toda maldade e exige pouco da vida, como nós, os pacientes, humildes, justos” — isto não significa, ouvido friamente e sem prevenção, nada mais que: “nós, fracos, somos realmente fracos; convém que não façamos nada para o qual não somos fortes o bastante”; mas esta seca constatação, esta prudência primaríssima, que até os insetos possuem (os quais se fazem de mortos para não agir “demais”, em caso de grande perigo), graças ao falseamento e à mentira para si mesmo, próprios da impotência, tomou a roupagem pomposa da virtude que cala, renuncia, espera, como se a fraqueza mesma dos fracos — isto é, seu ser, sua atividade, toda a sua inevitável, irremovível realidade — fosse um empreendimento voluntário, algo desejado, escolhido, um feito, um mérito. Por um instinto de autoconservação, de autoafirmação, no qual cada mentira costuma purificar-se, essa espécie de homem necessita crer no “SUJEITO” indiferente e livre para escolher. O SUJEITO (ou, falando de modo mais popular, a alma) foi até o momento o mais sólido artigo de fé sobre a terra, talvez por haver possibilitado à grande maioria dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda espécie, enganar a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e o seu ser-assim como mérito. Genealogia da Moral Primeira dissertação 13

Supondo que essa vontade encarnada de contradição e antinatureza seja levada a filosofar: onde descarregará seu arbítrio mais íntimo? Naquilo que é experimentado do modo mais seguro como verdadeiro, como real: buscará o erro precisamente ali onde o autêntico instinto de vida situa incondicionalmente a verdade. Fará, por exemplo, como os ascetas da filosofia vedanta, rebaixando a corporalidade a uma ilusão, assim como a dor, a multiplicidade, toda a oposição conceitual de “SUJEITO” e “objeto” — erros, nada senão erros! Recusar a crença em seu Eu, negar a si mesmo sua “realidade” — que triunfo! — não mais apenas sobre os sentidos, sobre a evidência, mas uma espécie bem mais elevada de triunfo, uma violentação e uma crueldade contra a razão: volúpia que atinge seu cume quando o autodesprezo, o autoescárnio ascético da razão decreta: “existe um reino da verdade e do ser, mas precisamente a razão é excluída dele!…”. (Dito de passagem: mesmo no conceito kantiano de “caráter inteligível das coisas” resta ainda algo desta lasciva desarmonia de ascetas, que adora voltar a razão contra a razão: pois “caráter inteligível” significa, em Kant, um modo de constituição das coisas, do qual o intelecto compreende apenas que é, para o intelecto, absolutamente incompreensível.) — Devemos afinal, como homens do conhecimento, ser gratos a tais resolutas inversões das perspectivas e valorações costumeiras, com que o espírito, de modo aparentemente sacrílego e inútil, enfureceu-se consigo mesmo por tanto tempo: ver assim diferente, querer ver assim diferente, é uma grande disciplina e preparação do intelecto para a sua futura “objetividade” — a qual não é entendida como “observação desinteressada” (um absurdo sem sentido), mas como a faculdade de ter seu pró e seu contra sob controle e deles poder dispor: de modo a saber utilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas e interpretações afetivas. De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga, perigosa fábula conceitual que estabelece um “puro SUJEITO do conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo”, guardemo-nos dos tentáculos de conceitos contraditórios como “razão pura”, “espiritualidade absoluta”, “conhecimento em si”; — tudo isso pede que se imagine um olho que não pode absolutamente ser imaginado, um olho voltado para nenhuma direção, no qual as forças ativas e interpretativas, as que fazem com que ver seja ver-algo, devem estar imobilizadas, ausentes; exige-se do olho, portanto, algo absurdo e sem sentido. Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um “conhecer” perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso “conceito” dela, nossa “objetividade”. Mas eliminar a vontade inteiramente, suspender os afetos todos sem exceção, supondo que o conseguíssemos: como? — não seria castrar o intelecto?… Genealogia da Moral Terceira dissertação 12

Para tanto, porém, é requerida antes de tudo uma grande potência artística, um pairar criativamente acima de tudo, uma imersão amorosa nos dados empíricos, imaginar além do tipo dado – aliás, tudo isto diz respeito à objetividade, mas somente como uma qualidade positiva. Todavia, objetividade é muito frequentemente apenas uma palavra. No lugar daquela quietude internamente relampejante, externamente imóvel e obscura do olhar do artista, entra em cena a afetação da quietude; como se a falta de páthos e de força moral se revestisse de uma frieza aguda da reflexão. Em certos casos, a banalidade da meditação, a sabedoria de qualquer um, que só através do seu tédio dá a impressão de quietude e tranquilidade, ousa aparecer a fim de legitimar toda condição artística na qual o SUJEITO silencia e se torna completamente imperceptível. Busca-se tudo o que em geral não estimula e a palavra mais seca torna-se a mais exatamente correta. Sim, chega-se mesmo ao ponto de evocar aquele homem para o qual um momento do passado não significa absolutamente nada para representá-lo. Assim se comportam, com frequência, os filólogos e os gregos, uns em relação aos outros: eles não se interessam por nada – chama-se isso também “objetividade”! É precisamente onde o mais elevado e mais raro devem ser representados, o intencional e solenemente exposto ser desinteressado, a selecionada arte da motivação sóbria e trivial, francamente chocante – a saber, quando a vaidade do historiador impele-o a esta indiferença que assume ares de objetividade. Aliás, tais autores levam a concordar com o princípio de que cada homem tem tanto mais vaidade quanto mais lhe falta entendimento. Não, sede ao menos sincero! Não buscai a aparência da força artística, que deve ser chamada de efetiva objetividade, não buscai a aparência da justiça, se vós não celebrais o clamor terrível do justo! Como se a tarefa de cada época, para ser justa, devesse ser contra tudo o que foi uma vez. Épocas e gerações nunca têm o direito de, até mesmo, serem juízes de todas as épocas e gerações anteriores: mas sempre apenas aos indivíduos e, em verdade, aos mais raros entre eles, cabe, pelo menos uma vez, uma missão tão desconfortável. Quem vos obriga a julgar? E ainda além – colocai-vos à prova, apenas para ver se podeis ser justos, se vós o quiserdes! Enquanto juízes, precisaríeis permanecer superiores em relação ao que deve ser julgado; mas vós apenas chegastes depois. Os convidados que chegam por último à mesa devem com razão ficar com os últimos lugares: e vós quereis ter os primeiros lugares? Então fazei ao menos o que há de mais elevado e mais grandioso; talvez se vos conceda neste caso realmente um lugar, mesmo se vós chegares por último. Segunda Consideração Terceira dissertação 6

Questões fundamentais da metafísica. — Quando algum dia se escrever a história da gênese do pensamento, nela também se encontrará, sob uma nova luz, a seguinte frase de um lógico eminente: “A originária lei universal do SUJEITO cognoscente consiste na necessidade interior de reconhecer cada objeto em si, em sua própria essência, como um objeto idêntico a si mesmo, portanto existente por si mesmo e, no fundo, sempre igual e imutável, em suma, como uma substância”. Também essa lei, aí denominada “originária”, veio a ser — um dia será mostrado como gradualmente surge essa tendência nos organismos inferiores: como os estúpidos olhos de toupeira dessas organizações veem apenas a mesma coisa no início; como depois, ao se tornarem mais perceptíveis os diferentes estímulos de prazer e desprazer, substâncias distintas são gradualmente diferenciadas, mas cada uma com um atributo, isto é, uma única relação com tal organismo. — O primeiro nível do [pensamento] lógico é o juízo, cuja essência consiste, segundo os melhores lógicos, na crença. Na base de toda crença está a sensação do agradável ou do doloroso em referência ao SUJEITO que sente. Uma terceira e nova sensação, resultado das duas precedentes, é o juízo em sua forma inferior. — A nós, seres orgânicos, nada interessa originalmente numa coisa, exceto sua relação conosco no tocante ao prazer e à dor. Entre os momentos em que nos tornamos conscientes dessa relação, entre os estados do sentir, há os de repouso, os de não sentir: então o mundo e cada coisa não têm interesse para nós, não notamos mudança neles (como ainda hoje alguém bastante interessado em algo não nota que um outro passa ao lado). Para uma planta, todas as coisas são normalmente quietas, eternas, cada coisa igual a si mesma. Do período dos organismos inferiores o homem herdou a crença de que há coisas iguais (só a experiência cultivada pela mais alta ciência contradiz essa tese). A crença primeira de todo ser orgânico, desde o princípio, é talvez a de que todo o mundo restante é uno e imóvel. — Nesse primeiro nível do lógico, o pensamento da causalidade se acha bem distante: ainda hoje acreditamos, no fundo, que todas as sensações e ações sejam atos de livre-arbítrio; quando observa a si mesmo, o indivíduo que sente considera cada sensação, cada mudança, algo isolado, isto é, incondicionado, desconexo, que emerge de nós sem ligação com o que é anterior ou posterior. Temos fome, mas primariamente não pensamos que o organismo queira ser conservado; esta sensação parece se impor sem razão e finalidade, ela se isola e se considera arbitrária. Portanto: a crença na liberdade da vontade é erro original de todo ser orgânico, de existência tão antiga quanto as agitações iniciais da lógica; a crença em substâncias incondicionadas e coisas semelhantes é também um erro original e igualmente antigo de tudo o que é orgânico. Porém, na medida em que toda a metafísica se ocupou principalmente da substância e da liberdade do querer, podemos designá-la como a ciência que trata dos erros fundamentais do homem, mas como se fossem verdades fundamentais. Humano demasiado humano Capítulo primeiro 18

Não julgueis. — Devemos ter o cuidado de não incorrer na censura injusta, ao refletir sobre épocas passadas. A injustiça da escravidão, a crueldade na sujeição de pessoas e povos não deve ser medida pelos nossos critérios. Pois naquele tempo o instinto de justiça não estava ainda desenvolvido. Quem pode censurar o genebrês Calvino por fazer queimar o doutor Serveto? Foi um ato coerente, que decorreu de suas convicções, e do mesmo modo a Inquisição tinha suas razões; sucede que as ideias dominantes eram erradas e tiveram uma consequência que nos parece dura, porque se tornaram estranhas para nós. E o que é o suplício de um homem, comparado aos eternos castigos do inferno para quase todos? Entretanto esta concepção dominou o mundo inteiro da época, sem que o seu horror muito maior prejudicasse essencialmente a concepção de um deus. Em nosso meio, também os sectários políticos são tratados de maneira dura e cruel, mas, tendo aprendido a crer na necessidade do Estado, não sentimos a crueldade tanto como no caso em que reprovamos as ideias. A crueldade com os animais, entre as crianças e os italianos, tem origem na incompreensão; devido aos interesses doutrinários da Igreja, os animais foram colocados bem abaixo dos homens. — Muitas coisas terríveis e desumanas na história, nas quais dificilmente se crê, são amenizadas pela consideração de que o SUJEITO que ordena e o que executa são pessoas diferentes: o primeiro não vê o fato, logo não tem a imaginação impressionada; o segundo obedece a um superior, não se sente responsável. Por falta de imaginação, os príncipes e chefes militares parecem cruéis e duros em sua maioria, e não o são. — O egoísmo não é mau, porque a ideia de “próximo” — a palavra é de origem cristã e não corresponde à verdade — é muito fraca em nós; e nos sentimos, em relação a ele, quase tão livres e irresponsáveis quanto em relação a pedras e plantas. Saber que o outro sofre é algo que se aprende, e que nunca pode ser aprendido inteiramente. Humano demasiado humano Capítulo segundo 101

Origem do cômico. — Quando se considera que por centenas de milhares de anos o homem foi um animal extremamente SUJEITO ao temor, e que qualquer coisa repentina ou inesperada o fazia preparar-se para a luta, e talvez para a morte, e que mesmo depois, nas relações sociais, toda a segurança repousava sobre o esperado, sobre o tradicional no pensar e no agir, então não deve nos surpreender que, diante de tudo o que seja repentino e inesperado em palavras e ação, quando sobrevém sem perigo ou dano, o homem se desafogue e passe ao oposto do temor: o ser encolhido e trêmulo de medo se ergue e se expande — o homem ri. A isso, a essa passagem da angústia momentânea à alegria efêmera, chamamos de cômico. No fenômeno do trágico, por outro lado, o homem passa rapidamente de uma grande e duradoura alegria para um grande medo; mas, como entre os mortais essa grande e duradoura alegria é muito mais rara que as ocasiões de angústia, há no mundo muito mais comicidade do que tragédia; rimos com muito mais frequência do que ficamos abalados. Humano demasiado humano Capítulo quarto 169

Consolo para hipocondríacos. — Quando um grande pensador se acha momentaneamente SUJEITO à tortura da hipocondria, pode consolar a si mesmo com estas palavras: “É de sua grande força que este parasita se alimenta e cresce; se ela fosse menor, você teria menos com que sofrer”. Assim também pode o estadista falar, quando os ciúmes e o sentimento de vingança, em suma, o ânimo do bellum omnum contra omnes [guerra de todos contra todos], do qual ele, como representante de uma nação, deve necessariamente ser bastante capaz, ocasionalmente se introduz também nas relações pessoais e lhe torna a vida difícil. Humano demasiado humano Capítulo nono 615

Aos mestres do desinteresse. — As virtudes de um homem não são chamadas de boas em vista dos efeitos que tenham para ele, mas em vista dos efeitos que pressupomos que tenham para nós e a sociedade: — desde sempre fomos pouco “desinteressados”, pouco “altruístas” no elogio das virtudes! Senão teríamos de perceber que as virtudes (como diligência, obediência, castidade, piedade, senso de justiça) são geralmente prejudiciais aos que as possuem, enquanto impulsos que neles vigoram de maneira muito ávida e violenta, não querendo que a razão os conserve em equilíbrio com os demais instintos. Se você tem uma virtude, uma plena e genuína virtude (e não apenas um impulsozinho de virtude!) — então você é vítima dela! Mas justamente por causa disso o vizinho louva a sua virtude! As pessoas louvam o homem diligente, embora ele prejudique os olhos ou a originalidade e o frescor do espírito com sua diligência; louvam e lamentam o jovem que “se matou de trabalhar”, porque pensam: “Para a sociedade em geral, até a perda do melhor indivíduo é um sacrifício pequeno! É uma pena que este sacrifício seja necessário! Mas seria bem pior se o indivíduo pensasse de outra forma e considerasse sua preservação e seu desenvolvimento mais importantes que o trabalho para a sociedade!”. E assim lamentam esse jovem, não por ele mesmo, mas porque um instrumento devotado e implacável consigo mesmo — um “SUJEITO trabalhador” — foi perdido para a sociedade com essa morte. Talvez reflitam se não teria sido mais vantajoso para a sociedade se ele tivesse trabalhado de modo menos implacável consigo, preservando-se por mais tempo — admitem que haveria vantagem nisso, mas calculam ser maior e mais duradoura uma outra vantagem, a de que se fez um sacrifício e de que a atitude do animal de sacrifício teve novamente uma confirmação visível. Portanto, é a natureza de instrumento que é louvada nas virtudes, quando se faz o elogio delas, e também o impulso cego dominante em cada virtude, que não é mantido nos limites pelo interesse geral do indivíduo; em suma: a desrazão da virtude, mediante a qual o indivíduo se deixa transformar numa função do todo. O elogio das virtudes é o elogio de algo privadamente nocivo — de impulsos que destituem o homem do seu nobre amor-próprio e da força para a suprema custódia de si mesmo. — É verdade que, para a educação e para a incorporação de hábitos virtuosos, enfatiza-se uma série de efeitos da virtude, que fazem parecer irmãs a virtude e a vantagem pessoal — e existe realmente essa irmandade! A cega diligência, essa típica virtude de um instrumento, é apresentada como a via para a riqueza e as honras e a mais saudável droga para o tédio e as paixões: mas silencia-se a respeito de seu perigo, de sua suprema periculosidade. A educação procede quase sempre assim: ela procura encaminhar o indivíduo, por uma série de estímulos e vantagens, para uma maneira de pensar e agir que, quando se torna hábito, impulso e paixão, vigora nele e acima dele, de encontro a sua derradeira vantagem, mas “para o bem de todos”. Muito frequentemente observo que sim, a cega diligência traz riquezas e honras, mas também priva os órgãos daquela finura que tornaria possível a fruição de riquezas e honras, e noto, igualmente, que esse grande antídoto para o tédio e as paixões torna embotados os sentidos e faz o espírito refratário a estímulos novos. (A mais diligente das épocas — a nossa — não sabe o que fazer com sua diligência e seu dinheiro, exceto cada vez mais dinheiro e mais diligência: é preciso mais gênio para gastar do que para adquirir! — Bem, nós teremos os nossos “netos”!) Tendo êxito a educação, cada virtude do indivíduo torna-se uma utilidade pública e uma desvantagem particular, conforme o supremo objetivo particular — provavelmente algum estiolamento sensorial-espiritual, ou mesmo um declínio prematuro: considere-se desse ponto de vista, uma após a outra, as virtudes da obediência, da castidade, da piedade, da justiça. O louvor do desinteressado, abnegado, virtuoso — isto é, daquele que não aplica toda a sua energia e razão na própria conservação, elevação, desenvolvimento, promoção, ampliação do poder, mas que, no tocante a si mesmo, vive de forma modesta e irrefletida, talvez até indiferente ou irônica —, esse louvor, em todo o caso, não nasceu do espírito do desinteresse! O “próximo” louva o desinteresse porque dele retira vantagens! Pensasse ele próprio “desinteressadamente”, rejeitaria essa diminuição de força, esse dano sofrido em prol dele, trabalharia contra o surgimento de tais inclinações e, sobretudo, mostraria seu desinteresse não o considerando bom! — Eis indicada a contradição fundamental dessa moral que precisamente agora é tida em alta conta: os motivos para essa moral se opõem ao seu princípio! Aquilo com que essa moral quer se demonstrar é por ela refutado com o seu critério do que é moral! Para não ir de encontro a sua própria moral, a tese de que “você deve abdicar de si mesmo e sacrificar-se” deveria ser decretada apenas por quem dessa maneira abdicasse de sua própria vantagem, e que talvez acarretasse a própria ruína, no sacrifício imposto aos indivíduos. Mas assim que o próximo (ou a sociedade) recomenda o altruísmo em nome da utilidade, tem aplicação a tese oposta, de que “você deve buscar a vantagem também à custa dos outros”, e portanto se prega, simultaneamente, um “você deve” e um “você não deve”! Gaia Ciência LIVRO I 21

Os seguidores de Schopenhauer. — O que se percebe no contato entre povos civilizados e bárbaros: que normalmente a cultura inferior começa por tomar os vícios, fraquezas e excessos da superior, a partir daí sente alguma atração por esta e, enfim, mediante os vícios e fraquezas adquiridos, também recebe algo da força valiosa da cultura superior: — isso pode ser visto igualmente em nossa proximidade, sem visitar povos bárbaros, de modo um tanto refinado e espiritualizado, é certo, e não tão palpável. Que costumam os seguidores de Schopenhauer na Alemanha tomar inicialmente do seu mestre? — os quais, em comparação à superior cultura deste, devem se sentir bárbaros o bastante para, também no início, serem barbaramente fascinados e seduzidos por ele. O seu duro senso dos fatos, sua honesta vontade de clareza e razão, que com frequência o faz parecer tão inglês e tão pouco alemão? Ou o vigor de sua consciência intelectual, que toda a vida suportou a contradição entre ser e querer e o forçou a contradizer-se também nas suas obras, continuamente e quase em cada ponto? Ou sua limpeza em questões da Igreja e do Deus cristão? — pois nisso ele foi limpo como nenhum filósofo alemão até ali, de modo que viveu e morreu “como um voltairiano”. Ou suas imortais teorias da intelectualidade da intuição, da aprioridade da lei causal, da natureza instrumental do intelecto e da não liberdade da vontade? Não, nada disso encanta nem é tido por encantador: mas sim os embaraços e subterfúgios místicos de Schopenhauer, nos lugares em que o pensador factual se deixou seduzir e estragar pelo vaidoso impulso de se arvorar em decifrador do mundo; a indemonstrável teoria de uma vontade única (“Todas as causas são apenas causas eventuais da manifestação da vontade nesse tempo e nesse lugar”, “A vontade de vida está presente em cada ser, também no mais ínfimo, de forma inteira e não dividida, tão completamente quanto em todos os seres que foram, são e serão, tomados em seu conjunto”), a negação do indivíduo (“Todos os leões são, no fundo, um só leão”, “A pluralidade dos indivíduos é uma aparência”; assim como a evolução é só aparência: — ele chama ao pensamento de Lamarck “um erro genial e absurdo”); a exaltação do gênio (“Na contemplação estética o indivíduo não é mais indivíduo, mas puro SUJEITO do conhecimento, sem vontade, sem dor e atemporal”; “Ao absorver-se inteiramente no objeto contemplado, o SUJEITO se torna esse próprio objeto”); o absurdo da compaixão e da ruptura, que ela tornou possível, do principii individuationis [princípio da individuação] como fonte de toda moralidade; e também afirmações tais como “A morte é realmente o objetivo da existência”, “Não podemos negar a priori a possibilidade de que um efeito mágico não pudesse emanar de alguém que já morreu”: estes e outros excessos e vícios do filósofo são sempre aceitos em primeiro lugar e transformados em artigo de fé: — pois vícios e excessos são imitados mais facilmente e não requerem um longo treino. Mas falemos do mais famoso dos schopenhauerianos vivos, de Richard Wagner. — A ele aconteceu o que já sucedeu com muitos artistas: enganou-se ao interpretar os personagens que havia criado e não compreendeu a filosofia implícita em sua arte mais característica. Richard Wagner deixou-se desencaminhar por Hegel até a metade de sua vida; e o fez novamente mais tarde, quando começou a ver a teoria de Schopenhauer em seus personagens e a formular a si mesmo recorrendo às noções de “vontade”, “gênio” e “compaixão”. Apesar disso continuará verdadeiro que nada pode ser mais contrário ao espírito de Schopenhauer do que o que é propriamente wagneriano nos heróis de Wagner: quero dizer, a inocência do mais elevado amor a si, a crença na grande paixão como algo bom em si, ou, numa palavra, o que há de siegfriediano no semblante dos seus heróis. “Isso tudo cheira antes a Spinoza   do que a mim” — diria talvez Schopenhauer. Por mais que tivesse boas razões para buscar outro filósofo que não Schopenhauer, o sortilégio ao qual sucumbiu, relativamente a esse pensador, tornou-o cego não apenas aos outros filósofos, mas até à ciência mesma; cada vez mais a sua arte quer se apresentar como contrapartida e complemento da filosofia schopenhaueriana, e cada vez mais expressamente renuncia ela à ambição mais elevada de tornar-se contrapartida e complemento da ciência e do conhecimento humanos. E a isso não o estimula apenas a misteriosa pompa dessa filosofia, que teria fascinado igualmente a um Cagliostro: também os gestos e os afetos dos filósofos sempre seduziram! Schopenhaueriano, por exemplo, é o exaspero de Wagner ante a corrupção da língua alemã; e, se aí deveríamos aprovar a imitação, não podemos esquecer que o próprio estilo de Wagner sofre bastante das úlceras e abscessos cuja visão punha fora de si Schopenhauer, e que, no que toca aos wagnerianos que escrevem em alemão, a wagneromania começa a se revelar tão perigosa quanto se revelou toda hegelomania. Schopenhaueriano é o ódio de Wagner aos judeus, em relação aos quais não consegue ser justo, nem mesmo quanto ao seu ato maior: pois os judeus são os inventores do cristianismo. Schopenhaueriana é a tentativa de Wagner de apreender o cristianismo como um grão de budismo transportado pelo vento, e de preparar para a Europa uma época budista, aproximando-se temporariamente de fórmulas e sentimentos católico-cristãos. Schopenhaueriana é a prédica de Wagner em favor da misericórdia no trato com animais; sabe-se que o precursor de Wagner nesse ponto foi Voltaire, que, como seus sucessores, talvez já soubesse travestir o ódio a certas coisas e pessoas em misericórdia para com os animais. Ao menos o ódio de Wagner à ciência, que transparece em sua prédica, não é sugerido pelo espírito de mansuetude e bondade — tampouco, como é óbvio, pelo espírito. — Afinal, pouco importa a filosofia de um artista, caso seja apenas uma filosofia acrescentada e não prejudique a sua arte. Todo cuidado é pouco para evitar nos aborrecermos com um artista por uma eventual, talvez infeliz e pretensiosa dissimulação; não esqueçamos que os queridos artistas são e têm de ser todos eles um pouco atores, e que sem atuar dificilmente aguentariam por muito tempo. Permaneçamos fiéis a Wagner naquilo que nele é vero e original — e isto permanecendo nós mesmos, seus discípulos, fiéis ao que em nós é vero e original. Admitamos seus caprichos e convulsões intelectuais, apreciemos com justiça que estranhos alimentos e necessidades uma arte como a sua pode ter, para que viva e cresça! Não importa que como pensador ele frequentemente esteja errado; justeza e paciência não são para ele. Já basta que sua vida tenha e conserve razão frente a si mesma — essa vida que grita para cada um de nós: “Seja um homem e não siga a mim — mas a si próprio! A si próprio!”. Também nossa vida deve ter razão frente a nós mesmos! Também nós devemos crescer e medrar a partir de nós mesmos, livres e sem medo, em inocente amor de si! E, ao contemplar um tal indivíduo, vêm-me aos ouvidos, agora como então, estas frases: “A paixão é melhor que o estoicismo e a hipocrisia, ser honesto, ainda que no mal, é melhor do que perder a si mesmo na moralidade da tradição; o homem livre pode resultar bom ou mau, mas o homem não livre é uma vergonha da natureza e não participa de nenhum consolo, celeste ou terrestre; e, por fim, todo aquele que deseja tornar-se livre tem de fazê-lo por si próprio, e a liberdade não sucede a ninguém como uma dádiva milagrosa” (Richard Wagner em Bayreuth, § 11). Gaia Ciência LIVRO I 99

Do “gênio da espécie”. — O problema da consciência (ou, mais precisamente, do tornar-se consciente) só nos aparece quando começamos a entender em que medida poderíamos passar sem ela: e agora a fisiologia e o estudo dos animais nos colocam neste começo de entendimento (necessitaram de dois séculos, portanto, para alcançar a premonitória suspeita de Leibniz  ). Pois nós poderíamos pensar, sentir, querer, recordar, poderíamos igualmente “agir” em todo sentido da palavra: e, não obstante, nada disso precisaria nos “entrar na consciência” (como se diz figuradamente). A vida inteira seria possível sem que, por assim dizer, ela se olhasse no espelho: tal como, de fato, ainda hoje a parte preponderante da vida nos ocorre sem esse espelhamento — também da nossa vida pensante, sensível e querente, por mais ofensivo que isto soe para um filósofo mais velho. Para que então consciência, quando no essencial é supérflua? Bem, se querem dar ouvidos à minha resposta a essa pergunta e à sua conjectura talvez extravagante, parece-me que a sutileza e a força da consciência estão sempre relacionadas à capacidade de comunicação de uma pessoa (ou animal), e a capacidade de comunicação, por sua vez, à necessidade de comunicação: mas não, entenda-se, que precisamente o indivíduo mesmo, que é mestre justamente em comunicar e tornar compreensíveis suas necessidades, também seja aquele que em suas necessidades mais tivesse de recorrer aos outros. Parece-me que é assim no tocante a raças e correntes de gerações: onde a necessidade, a indigência, por muito tempo obrigou os homens a se comunicarem, a compreenderem uns aos outros de forma rápida e sutil, há enfim um excesso dessa virtude e arte da comunicação, como uma fortuna que gradualmente foi juntada e espera um herdeiro que prodigamente a esbanje (— os chamados artistas são esses herdeiros, assim como os oradores, pregadores, escritores, todos eles pessoas que sempre vêm no final de uma longa cadeia, “frutos tardios”, na melhor acepção do termo, e, como foi dito, por natureza esbanjadores). Supondo que esta observação seja correta, posso apresentar a conjectura de que a consciência desenvolveu-se apenas sob a pressão da necessidade de comunicação — de que desde o início foi necessária e útil apenas entre uma pessoa e outra (entre a que comanda e a que obedece, em especial), e também se desenvolveu apenas em proporção ao grau dessa utilidade. Consciência é, na realidade, apenas uma rede de ligação entre as pessoas — apenas como tal ela teve que se desenvolver: um ser solitário e predatório não necessitaria dela. O fato de nossas ações, pensamentos, sentimentos, mesmo movimentos nos chegarem à consciência — ao menos parte deles —, é consequência de uma terrível obrigação que por longuíssimo tempo governou o ser humano: ele precisava, sendo o animal mais ameaçado, de ajuda, proteção, precisava de seus iguais, tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensível — e para isso tudo ele necessitava antes de “consciência”, isto é, “saber” o que lhe faltava, “saber” como se sentia, “saber” o que pensava. Pois, dizendo-o mais uma vez: o ser humano, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não o sabe; o pensar que se torna consciente é apenas a parte menor, a mais superficial, a pior, digamos: — pois apenas esse pensar consciente ocorre em palavras, ou seja, em signos de comunicação, com o que se revela a origem da própria consciência. Em suma, o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não da razão, mas apenas do tomar-consciência-de-si da razão) andam lado a lado. Acrescente-se que não só a linguagem serve de ponte entre um ser humano e outro, mas também o olhar, o toque, o gesto; o tomar-consciência das impressões de nossos sentidos em nós, a capacidade de fixá-las e como que situá-las fora de nós, cresceu na medida em que aumentou a necessidade de transmiti-las a outros por meio de signos. O homem inventor de signos é, ao mesmo tempo, o homem cada vez mais consciente de si; apenas como animal social o homem aprendeu a tomar consciência de si — ele o faz ainda, ele o faz cada vez mais. — Meu pensamento, como se vê, é que a consciência não faz parte realmente da existência individual do ser humano, mas antes daquilo que nele é natureza comunitária e gregária; que, em consequência, apenas em ligação com a utilidade comunitária e gregária ela se desenvolveu sutilmente, e que, portanto, cada um de nós, com toda a vontade que tenha de entender a si próprio da maneira mais individual possível, de “conhecer a si mesmo”, sempre traz à consciência justamente o que não possui de individual, o que nele é “médio” — que nosso pensamento mesmo é continuamente suplantado, digamos, pelo caráter da consciência — pelo “gênio da espécie” que nela domina — e traduzido de volta para a perspectiva gregária. Todas as nossas ações, no fundo, são pessoais de maneira incomparável, únicas, ilimitadamente individuais, não há dúvida; mas, tão logo as traduzimos para a consciência, não parecem mais sê-lo… Este é o verdadeiro fenomenalismo e perspectivismo, como eu o entendo: a natureza da consciência animal ocasiona que o mundo de que podemos nos tornar conscientes seja só um mundo generalizado, vulgarizado — que tudo o que se torna consciente por isso mesmo torna-se raso, ralo, relativamente tolo, geral, signo, marca de rebanho, que a todo tornar-se consciente está relacionada uma grande, radical corrupção, falsificação, superficialização e generalização. Afinal, a consciência crescente é um perigo; e quem vive entre os mais conscientes europeus sabe até que é uma doença. Não é, como se nota, a oposição entre SUJEITO e objeto que aqui me interessa: essa distinção deixo para os teóricos do conhecimento que se enredaram nas malhas da gramática (a metafísica do povo). E menos ainda é a oposição entre fenômeno e “coisa em si”: pois estamos longe de “conhecer” o suficiente para poder assim separar. Não temos nenhum órgão para o conhecer, para a “verdade”: nós “sabemos” (ou cremos, ou imaginamos) exatamente tanto quanto pode ser útil ao interesse da grege humana, da espécie: e mesmo o que aqui se chama “utilidade” é, afinal, apenas uma crença, uma imaginação e, talvez, precisamente a fatídica estupidez da qual um dia pereceremos. Gaia Ciência LIVRO V 354


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