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Nietzsche (Obra) – Vontade de Poder

segunda-feira 11 de setembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

Muitos países viu Zaratustra, e muitos povos: assim descobriu o bem e o mal de muitos povos. Zaratustra não achou maior poder na terra do que bem e mal. Nenhum povo poderia viver sem antes avaliar; mas, querendo se manter, não pode avaliar como seu vizinho. Muito do que esse povo considerava bom, outro considerava infâmia e escárnio: eis o que achei. Muito achei que aqui era denominado mau, e ali era coberto de honras cor de púrpura. Jamais um vizinho compreendeu o outro: sempre sua alma se admirou da loucura e da maldade do vizinho. Uma tábua de valores se acha suspensa sobre cada povo. Olha, é a tábua de suas superações; olha, é a voz de sua VONTADE DE PODER. Louvável é o que ele julga difícil; o que é indispensável e difícil considera bom, e o que liberta da necessidade suprema, o raro, dificílimo — ele exalta como sagrado. O que faz com que domine, vença e brilhe, para horror e inveja de seu vizinho: isso julga elevado, o primeiro de tudo, a medida, o sentido das coisas. Em verdade, meu irmão, se conheces antes a necessidade, a terra, o céu e o vizinho de um povo, adivinharás a lei de suas superações e por que toma essa escada para alcançar sua esperança. “Deves sempre ser o primeiro e sobrepujar os demais: tua alma ciumenta não deve amar ninguém, exceto o amigo” — isso fazia tremer a alma de um grego: com isso ele andava pela trilha de sua grandeza. “Dizer a verdade e bem manejar arco e flecha” — isso era precioso e difícil ao mesmo tempo, para o povo do qual vem meu nome — nome que me é precioso e difícil ao mesmo tempo. “Honrar pai e mãe e lhes ser obediente até à raiz da alma” — essa foi a tábua de superação que outro povo manteve acima de si, com isso tornando-se poderoso e eterno. “Praticar a lealdade e, em nome da lealdade, empenhar a honra e o sangue até mesmo em coisas más e perigosas”: com esse ensinamento um povo se dominou, e assim se dominando tornou-se grávido e pesado de grandes esperanças. Em verdade, os homens deram a si mesmos todo o seu bem e mal. Em verdade, eles não o tomaram e não o acharam, não lhes sobreveio como uma voz do céu. Valores foi o homem que primeiramente pôs nas coisas, para se conservar — foi o primeiro a criar sentido para as coisas, um sentido humano! Por isso ele se chama “homem”, isto é, o estimador. Estimar é criar: escutai isso, ó criadores! O próprio estimar é, de todas as coisas estimadas, o tesouro e a joia. Apenas através do estimar existe valor: e sem o estimar seria oca a noz da existência. Escutai isso, ó criadores! Mudança nos valores — isso é mudança nos criadores. Quem tem de ser um criador sempre destrói. Criadores foram primeiramente os povos, somente depois os indivíduos; em verdade, o indivíduo mesmo é ainda a mais nova criação. Outrora mantinham os povos uma tábua de valores acima de si. O amor que quer dominar e o amor que quer obedecer criaram juntos essas tábuas. Mais antigo é o prazer no rebanho que o prazer no Eu: e, enquanto a boa consciência se chamar rebanho, apenas a má consciência dirá: Eu. Em verdade, o esperto Eu, o sem amor, que procura o que lhe é útil no que é útil a muitos: esse não é a origem do rebanho, mas seu declínio. Amantes e criadores sempre foram os que criaram bem e mal. O fogo do amor arde nos nomes de todas as virtudes, e o fogo da ira. Muitos países viu Zaratustra, e muitos povos: nenhum maior poder viu Zaratustra na terra do que as obras dos amantes: “bom” e “mau” é seu nome. Em verdade, um monstro é o poder desse louvar e repreender. Dizei, ó irmãos, quem o subjugará? Dizei, quem lançará as cadeias sobre as mil cervizes desse animal? Mil metas houve até agora, pois mil povos existiram. Apenas as cadeias para as mil cervizes faltam ainda, falta uma só meta. A humanidade ainda não tem meta. Mas dizei-me, irmãos: se à humanidade ainda falta uma meta, também não falta ainda — ela mesma? — Assim falou Zaratustra. Zaratustra 1 Das mil metas e uma só meta

Chamais “vontade de verdade”, ó mais sábios entre todos, aquilo que vos impele e inflama? Vontade de tornar pensável tudo o que existe: assim chamo eu à vossa vontade! Tudo o que existe quereis primeiramente fazer pensável: pois duvidais, com justa desconfiança, de que já seja pensável. Mas deve se adequar e se dobrar a vós! Assim quer vossa vontade. Liso deve se tornar, e submisso ao espírito, como seu espelho e reflexo. Esta é toda a vossa vontade, ó mais sábios entre todos, uma VONTADE DE PODER; e também quando falais de bem e mal e das valorações. Quereis ainda criar o mundo ante o qual podeis ajoelhar-vos: é a vossa derradeira esperança e embriaguez. Sem dúvida, os inscientes, o povo — são como o rio onde um barco prossegue: e nesse barco sentadas, solenes e encobertas, as valorações. Vossa vontade e vossos valores colocastes no rio do devir; uma antiga virtude de poder me é revelada pelo que o povo acredita ser bem e mal. Fostes vós, sábios entre todos, que pusestes tais convidados nesse barco e lhes destes pompa e orgulhosos nomes — vós e vossa vontade dominadora! Agora o rio leva adiante o vosso barco: tem de levá-lo. Pouco importa se a onda que quebra espumeje e se oponha furiosamente à quilha! Não é o rio o vosso perigo e o fim de vosso bem e mal, ó sábios entre todos; e sim aquela vontade mesma, a VONTADE DE PODER — a inexausta, geradora vontade de vida. Mas, para que compreendais minhas palavras sobre bem e mal, quero dizer-vos também minhas palavras sobre a vida e a maneira de tudo que vive. Fui atrás do que vive, fui pelos maiores e os menores caminhos, para conhecer sua maneira. Com espelho de cem faces captei seu olhar, quando tinha a boca fechada: para que seus olhos me falassem. E seus olhos me falaram. Mas, onde encontrei seres vivos, ouvi também falar de obediência. Tudo que vive obedece. E esta foi a segunda coisa: recebe ordens aquele que não sabe obedecer a si próprio. Tal é a maneira do que vive. Mas esta foi a terceira coisa que ouvi: que dar ordens é mais difícil que obedecer. E não apenas porque o que ordena carrega o fardo de todos os que obedecem, e esse fardo pode facilmente esmagá-lo: — Em toda ordem vi experimento e risco; ao dar ordens, o vivente sempre arrisca a si mesmo. E também quando dá ordens a si mesmo: também aí tem de pagar por ordenar. Tem de se tornar juiz, vingador e vítima de sua lei. Mas como acontece isto?, perguntei a mim mesmo. O que persuade o vivente a obedecer, ordenar e, ordenando, também exercer a obediência? Escutai agora minhas palavras, ó sábios entre todos! Examinai cuidadosamente se não penetrei no coração da vida e até nas raízes de seu coração! Onde encontrei seres vivos, encontrei VONTADE DE PODER; e ainda na vontade do servente encontrei a vontade de ser senhor. Que o mais fraco sirva ao mais forte, a isto o persuade sua vontade, que quer ser senhora do que é ainda mais fraco: deste prazer ele não prescinde. E, tal como o menor se entrega ao maior, para que tenha prazer e poder com o pequeníssimo, assim também o maior de todos se entrega e põe em jogo, pelo poder — a vida mesma. Eis a entrega do maior de todos: é ousadia, perigo e jogo de dados pela morte. E, onde há sacrifícios, serviços e olhares amorosos: também aí há vontade de ser senhor. Por caminhos sinuosos o mais fraco se insinua na fortaleza e no coração do mais poderoso — e ali rouba poder. E este segredo a própria vida me contou. “Vê”, disse, “eu sou aquilo que sempre tem de superar a si mesmo. É certo que vós o chamais vontade de procriação ou impulso para a finalidade, para o mais alto, mais distante, mais múltiplo: mas tudo isso é apenas uma coisa e um segredo. Prefiro declinar a renunciar a essa única coisa; e, em verdade, onde há declínio e queda de folhas, vê, a vida aí se sacrifica — pelo poder! Que eu tenha de ser luta e devir e finalidade e contradição de finalidades: ah, quem adivinha minha vontade, também adivinhará os caminhos tortos que ela tem de percorrer! O que quer que eu crie e como quer que o ame — logo terei de lhe ser adversário, e de meu amor: assim quer minha vontade. E também tu, homem do conhecimento, é apenas uma senda e uma pegada de minha vontade: em verdade, minha VONTADE DE PODER caminha também com os pés de tua vontade de verdade! Não acertou na verdade aquele que lhe atirou a expressão ‘vontade de existência’: tal vontade — não existe! Pois o que não é não pode querer; mas o que se acha em existência como poderia ainda querer existência? Apenas onde há vida há também vontade: mas não vontade de vida, e sim — eis o que te ensino — VONTADE DE PODER! Muitas coisas são mais estimadas pelo vivente do que a vida mesma; mas no próprio estimar fala — a VONTADE DE PODER!” — Assim a vida me ensinou outrora: e com isso, ó sábios entre todos, resolverei ainda o enigma de vossos corações. Em verdade, eu vos digo: bem e mal que sejam perenes — isso não existe! Por si mesmos têm de superar-se sempre de novo. Com vossos valores e palavras de bem e mal exerceis violência, ó valoradores; e este é o vosso amor oculto e o brilho, tremor e transbordamento de vossa alma. Mas uma violência mais forte cresce de vossos valores, e uma nova superação: nela se quebram o ovo e a casca do ovo. E quem tem de ser um criador no bem e no mal: em verdade, tem de ser primeiramente um destruidor e despedaçar valores. Assim, o mal supremo é parte do bem supremo: este, porém, é criador. — Falemos disso, ó sábios entre todos, embora seja desagradável. Silenciar é pior; todas as verdades silenciadas tornam-se venenosas. E que se despedace tudo o que, de encontro a nossas verdades, possa — despedaçar-se! Ainda há muitas casas por construir! Assim falou Zaratustra. Zaratustra 1 Da superação de si mesmo

Um dia, quando Zaratustra passava pela grande ponte, os aleijados e os mendigos o cercaram, e assim lhe falou um corcunda: “Olha, Zaratustra! Também o povo aprende contigo e ganha fé na tua doutrina: mas, para que ele creia em ti completamente, uma coisa ainda é necessária — tens de convencer também a nós, aleijados! Tens aqui uma boa coleção deles e, na verdade, uma senhora oportunidade! Podes curar os cegos e fazer andar os paralíticos; e daquele que tem coisa demais nas costas poderias também tirar um pouco: — acho que esta seria a maneira certa de fazer os aleijados acreditarem em Zaratustra!” Mas assim respondeu Zaratustra àquele que falou: “Quando se tira ao corcunda sua corcova, tira-se-lhe também seu espírito — é o que ensina o povo. E, quando se dá ao cego a visão, ele vê demasiadas coisas ruins sobre a terra: de modo que amaldiçoa aquele que o curou. Mas quem faz o paralítico andar, prejudica-o mais que tudo: pois, mal consegue andar, todos os seus vícios o arrastam consigo — é o que ensina o povo sobre os aleijados. E por que não deveria Zaratustra também aprender com o povo, se o povo aprende com Zaratustra? Desde que estou entre os homens, isto me parece o mínimo do que vejo: ‘A este falta um olho, àquele uma orelha e a um terceiro a perna, e há outros que perderam a língua, o nariz ou a cabeça’. Vi e vejo coisas piores, e várias tão abomináveis que não desejo falar de todas, mas tampouco silenciar sobre algumas: homens aos quais falta tudo, exceto uma coisa que têm demais — homens que não são mais que um grande olho, ou uma grande boca, ou uma grande barriga, ou algo mais de grande —, aleijados às avessas, eu os chamo. E, quando saí de minha solidão e por esta ponte passei pela primeira vez, não acreditei em meus olhos e olhei, tornei a olhar e disse enfim: ‘Isso é uma orelha! Uma orelha do tamanho de um homem!’. Olhei com mais atenção ainda: e, realmente, debaixo da orelha movia-se algo que era pequeno, mirrado e franzino de dar pena. Verdadeiramente, a enorme orelha estava sobre um pequenino e estreito caule — mas o caule era um homem! Quem olhasse com uma lente poderia até reconhecer um ínfimo rosto invejoso; e também uma inchada alminha que oscilava no caule. E o povo me disse que a grande orelha era não só um homem, mas um grande homem, um gênio. Mas eu jamais acreditei no povo, quando ele falava de grandes homens — e conservei minha crença de que era um aleijado às avessas, que tinha muito pouco de tudo e demasiado de uma coisa só.” Depois que Zaratustra assim falou ao corcunda e àqueles dos quais este era porta-voz e advogado, voltou-se para seus discípulos, profundamente desalentado, e disse: “Em verdade, meus amigos, eu caminho entre os homens como entre pedaços e membros de homens! Isso é o mais terrível para meus olhos, encontrar o homem destroçado e disperso como sobre um campo de batalha e matadouro. E, quando o meu olhar escapa do agora para o outrora, depara sempre com o mesmo: pedaços e membros, e apavorantes acasos — mas não homens! O agora e o outrora sobre a terra — ah, meus amigos! —, eis o mais insuportável para mim; e eu não saberia viver, se não fosse também um vidente daquilo que tem de vir. Um vidente, um querente, um criador, um futuro ele próprio e uma ponte para o futuro — e, ah, também como que um aleijado nessa ponte: tudo isso é Zaratustra. E também vós vos perguntastes muitas vezes: ‘Quem é Zaratustra para nós? Como devemos chamá-lo?’. E, tal como eu mesmo, vos destes perguntas como respostas. É ele um prometedor? Ou um cumpridor? Um conquistador? Ou um herdeiro? Um outono? Ou uma relha de arado? Um médico? Ou um convalescido? É ele um poeta? Ou um homem veraz? Um libertador? Ou um domador? Um bom? Ou um mau? Eu caminho entre os homens como entre pedaços de um futuro: aquele futuro que enxergo. E este é todo o meu engenho e esforço, eu componho e transformo em um o que é pedaço, enigma e apavorante acaso. E como suportaria eu ser homem, se o homem não fosse também poeta, decifrador de enigmas e redentor do acaso? Redimir o que passou e transmutar todo ‘Foi’ em ‘Assim eu quis!’ — apenas isto seria para mim redenção! Vontade — eis o nome do libertador e mensageiro da alegria: assim vos ensinei eu, meus amigos! E agora aprendei também isto: a própria vontade é ainda prisioneira. Querer liberta: mas como se chama o que acorrenta até mesmo o libertador? ‘Foi’: assim se chama o ranger de dentes e solitária aflição da vontade. Impotente quanto ao que foi feito — ela é uma irritada espectadora de tudo que passou. A vontade não pode querer para trás; não poder quebrantar o tempo e o apetite do tempo — eis a solitária aflição da vontade. Querer liberta: o que excogita o próprio querer, para livrar-se de sua aflição e zombar de seu cárcere? Ah, todo prisioneiro se torna um bobo! De maneira tola também redime a si mesma a vontade prisioneira. Que o tempo não ande para trás, isto a enraivece; ‘Aquilo que foi’ — eis o nome da pedra que ela não pode mover. E assim ela move pedras, por raiva e desalento, e pratica vingança naquele que não sente, como ela, raiva e desalento. Assim a vontade, a libertadora, converteu-se em causadora de dor: e em tudo que pode sofrer ela se vinga de não poder voltar para trás. Isto, e apenas isto, é a própria vingança: a aversão da vontade pelo tempo e seu ‘Foi’. Em verdade, uma grande loucura habita em nossa vontade; e tornou-se maldição para tudo que é humano o fato de essa loucura haver adquirido espírito! O espírito da vingança: meus amigos, até agora foi essa a melhor reflexão dos homens; e onde havia sofrimento devia sempre haver castigo. Pois ‘castigo’ é como a vingança chama a si própria: com uma palavra mentirosa, ela finge ter boa consciência. E, porque no querente mesmo existe sofrimento pelo fato de não poder querer para trás — então o próprio querer e a vida inteira deviam — ser castigo! E uma nuvem após a outra rolou sobre o espírito: até que finalmente o delírio pregou: ‘Tudo passa, por isso tudo merece passar!’. ‘E isso mesmo é justiça, aquela lei do tempo, segundo a qual ele tem que devorar seus filhos’: assim pregou o delírio. ‘As coisas estão ordenadas eticamente conforme o direito e o castigo. Oh, onde está a redenção do fluxo das coisas e do castigo “existência”?’ Assim pregou o delírio. ‘Pode haver redenção quando há um direito eterno? Ah, inamovível é a pedra “Foi”: eterno tem de ser também todo castigo!’ Assim pregou o delírio. ‘Ato nenhum pode ser destruído: como poderia ser desfeito pelo castigo? Isso, isso é o eterno do castigo “existência”, que a existência mesma deve eternamente ser ato e culpa de novo! A menos que a vontade finalmente redimisse a si própria e o querer se tornasse não querer —’: mas vós conheceis, irmãos, essa cantiga fabulosa do delírio! Eu vos levei para bem longe dessas cantigas fabulosas, quando vos ensinei que ‘a vontade é criadora’. Todo ‘Foi’ é um pedaço, um enigma, um apavorante acaso — até que a vontade criadora fala: ‘Mas assim eu quis!’. — Até que a vontade criadora fala: ‘Mas assim eu quero! Assim quererei!’. Mas ela já falou assim? E quando aconteceu isso? A vontade já foi desatrelada de sua própria tolice? A vontade já se tornou seu próprio redentor e mensageiro da alegria? Desaprendeu o espírito da vingança e todo ranger de dentes? E quem lhe ensinou a reconciliação com o tempo, e o que é mais alto que toda reconciliação? Algo mais alto que toda reconciliação tem de querer a vontade que é VONTADE DE PODER —: mas como lhe acontece isso? Quem lhe ensinou também o querer-para-trás?” — Nesse ponto de seu discurso, porém, aconteceu que Zaratustra parou de repente, e semelhou alguém aterrorizado ao extremo. Com ar amedrontado olhou para seus discípulos; seu olhar penetrou como uma flecha seus pensamentos e reticências. Mas após um instante riu novamente e disse, aliviado: “É difícil conviver com os homens, pois é muito difícil calar. Sobretudo para um tagarela.” — Assim falou Zaratustra. Mas o corcunda havia escutado a conversa, nisso escondendo o rosto; quando ouviu Zaratustra rir, porém, olhou para cima, curioso, e disse lentamente: “Mas por que Zaratustra fala conosco de modo diferente do que fala com seus discípulos?” Zaratustra respondeu: “Que há de surpreendente nisso? Com corcundas podemos falar de maneira torta!”. “Certo”, disse o corcunda; “e com alunos podemos falar pelos cotovelos. Mas por que Zaratustra fala com seus alunos de modo diferente — do que fala consigo mesmo?” — Zaratustra 1 Da redenção

9. Vocês querem viver “conforme a natureza”? Ó nobres estoicos, que palavras enganadoras! Imaginem um ser tal como a natureza, desmedidamente pródigo, indiferente além dos limites, sem intenção ou consideração, sem misericórdia ou justiça, fecundo, estéril e incerto ao mesmo tempo, imaginem a própria indiferença como poder — como poderiam viver conforme essa indiferença? Viver — isto não é precisamente querer ser diverso dessa natureza? Viver não é avaliar, preferir, ser injusto, ser limitado, querer ser diferente? E supondo que o seu imperativo “viver conforme a natureza” signifique no fundo “viver conforme a vida” — como poderiam não fazê-lo? Para que fazer um princípio do que vocês próprios são e têm de ser? — Na verdade, a questão é bem outra: enquanto pretendem ler embevecidos o cânon de sua lei na natureza, vocês querem o oposto, estranhos comediantes e enganadores de si mesmos! Seu orgulho quer prescrever e incorporar à natureza, até à natureza, a sua moral, o seu ideal, vocês exigem que ela seja natureza “conforme a Stoa”, e gostariam que toda existência existisse apenas segundo sua própria imagem — como uma imensa, eterna glorificação e generalização do estoicismo! Com todo o seu amor à verdade, vocês se obrigaram por tanto tempo, tão obstinadamente, tão rigidamente, a ver a natureza de modo falso, ou seja, estoico, que afinal não a conseguem ver de maneira diversa — e alguma profunda arrogância ainda lhes dá a esperança tola de que, pelo fato de saberem tiranizar a si mesmos — estoicismo é tirania consigo —, também a natureza se deixe tiranizar: pois o estoico não é parte da natureza?… Mas esta é uma antiga, eterna história: o que ocorreu então aos estoicos sucede ainda hoje, tão logo uma filosofia começa a acreditar em si mesma. Ela sempre cria o mundo à sua imagem, não consegue evitá-lo; filosofia é esse impulso tirânico mesmo, a mais espiritual VONTADE DE PODER, de “criação do mundo”, de causa prima [causa primeira]. Além do Bem e do Mal I 9

13. Os fisiólogos deveriam refletir, antes de estabelecer o impulso de autoconservação como o impulso cardinal de um ser orgânico. Uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força — a própria vida é VONTADE DE PODER —: a autoconservação é apenas uma das indiretas, mais frequentes consequências disso. — Em suma: nisso, como em tudo, cuidado com os princípios teleológicos supérfluos ! — um dos quais é o impulso de autoconservação (nós o devemos à inconsequência de Spinoza  ). Assim pede o método, que deve ser essencialmente economia de princípios. Além do Bem e do Mal I 13

22. Perdoem este velho filólogo, que não resiste à maldade de pôr o dedo sobre artes de interpretação ruins; mas essas “leis da natureza”, de que vocês, físicos, falam tão orgulhosamente, como se — existem apenas graças à sua interpretação e péssima “filologia” — não são uma realidade de fato, um “texto”, mas apenas uma arrumação e distorção de sentido ingenuamente humanitária, com a qual vocês fazem boa concessão aos instintos democráticos da alma moderna! “Igualdade geral perante a lei: nisso a natureza não é diferente nem está melhor do que nós” — uma bela dissimulação, na qual mais uma vez se disfarça a hostilidade plebeia a tudo o que é privilegiado e senhor de si, e igualmente um segundo e mais refinado ateísmo. “ Ni Dieu ni maître [Nem Deus, nem senhor] — assim querem vocês também: e por isso “viva a lei natural!” — não é verdade? Mas, como disse, isso é interpretação, não texto, e bem poderia vir alguém que, com intenção e arte de interpretação opostas, soubesse ler na mesma natureza, tendo em vista os mesmos fenômenos, precisamente a imposição tiranicamente impiedosa e inexorável de reivindicações de poder — um intérprete que lhes colocasse diante dos olhos o caráter não excepcional e peremptório de toda “VONTADE DE PODER”, em tal medida que quase toda palavra, inclusive a palavra “tirania”, por fim parecesse imprópria, ou uma metáfora debilitante e moderadora — demasiado humana; e que, no entanto, terminasse por afirmar sobre esse mundo o mesmo que vocês afirmam, isto é, que ele tem um curso “necessário” e “calculável”, mas não porque nele vigoram leis, e sim porque faltam absolutamente as leis, e cada poder tira, a cada instante, suas últimas consequências. Acontecendo de também isto ser apenas interpretação — e vocês se apressarão em objetar isso, não? — bem, tanto melhor! Além do Bem e do Mal I 22

23. Toda a psicologia, até o momento, tem estado presa a preconceitos e temores morais: não ousou descer às profundezas. Compreendê-la como morfologia e teoria da evolução da VONTADE DE PODER, tal como faço — isto é algo que ninguém tocou sequer em pensamento: na medida em que é permitido ver, no que foi até agora escrito, um sintoma do que foi até aqui silenciado. A força dos preconceitos morais penetrou profundamente no mundo mais espiritual, aparentemente mais frio e mais livre de pressupostos — de maneira inevitavelmente nociva, inibidora, ofuscante, deturpadora. Uma autêntica fisiopsicologia tem de lutar com resistências inconscientes no coração do investigador, tem “o coração” contra si: já uma teoria do condicionamento mútuo dos impulsos “bons” e “maus” desperta, como uma mais sutil imoralidade, aversão e desgosto numa consciência ainda forte e animada — e mais ainda uma teoria na qual os impulsos bons derivem dos maus. Supondo, porém, que alguém tome os afetos de ódio, inveja, cupidez, ânsia de domínio, como afetos que condicionam a vida, como algo que tem de estar presente, por princípio e de modo essencial, na economia global da vida, e em consequência deve ser realçado, se a vida é para ser realçada — esse alguém sofrerá com tal orientação do seu julgamento como quem sofre de enjoo do mar. No entanto, mesmo essa hipótese está longe de ser a mais dolorosa e mais estranha nesse desmesurado, quase inexplorado reino de conhecimentos perigosos; e existe, de fato, uma centena de boas razões para que dele mantenha distância todo aquele que — puder ! Por outro lado, se o seu navio foi desviado até esses confins, muito bem: Cerrem os dentes! Olhos abertos! Mão firme no leme! — navegamos diretamente sobre a moral e além dela, sufocamos, esmagamos talvez nosso próprio resto de moralidade, ao ousar fazer a viagem até lá — mas que importa nós ! Jamais um mundo tão profundo de conhecimento se revelou para navegantes e aventureiros audazes: e o psicólogo, que desse modo “traz um sacrifício” — que não é o sacrifizio dell ‘ intelletto, pelo contrário! —, poderá ao menos reivindicar, em troca, que a psicologia seja novamente reconhecida como rainha das ciências, para cujo serviço e preparação existem as demais ciências. Pois a psicologia é, uma vez mais, o caminho para os problemas fundamentais. Além do Bem e do Mal I 23

36. Supondo que nada seja “dado” como real, exceto nosso mundo de desejos e paixões, e que não possamos descer ou subir a nenhuma outra “realidade”, exceto à realidade de nossos impulsos — pois pensar é apenas a relação desses impulsos entre si —: não é lícito fazer a tentativa e colocar a questão de se isso que é dado não bastaria para compreender, a partir do que lhe é igual, também o chamado mundo mecânico (ou “material”)? Quero dizer, não como uma ilusão, uma “aparência”, uma “representação” (no sentido de Berkeley   e Schopenhauer  ), mas como da mesma ordem de realidade que têm nossos afetos, — como uma forma mais primitiva do mundo dos afetos, na qual ainda esteja encerrado em poderosa unidade tudo o que então se ramifica e se configura no processo orgânico (e também se atenua e se debilita, como é razoável), como uma espécie de vida instintiva, em que todas as funções orgânicas, com autorregulação, assimilação, nutrição, eliminação, metabolismo, se acham sinteticamente ligadas umas às outras — como uma forma prévia da vida? — Afinal, não é apenas lícito fazer essa tentativa: é algo imposto pela consciência do método. Não admitir várias espécies de causalidade enquanto não se leva ao limite extremo (— até ao absurdo, diria mesmo) a tentativa de se contentar com uma só: eis uma moral do método, à qual ninguém se pode subtrair hoje; — ela se dá “por definição”, como diria um matemático. A questão é, afinal, se reconhecemos a vontade realmente como atuante, se acreditamos na causalidade da vontade: assim ocorrendo — e no fundo a crença nisso é justamente a nossa crença na causalidade mesma —, temos então que fazer a tentativa de hipoteticamente ver a causalidade da vontade como a única. “Vontade”, é claro, só pode atuar sobre “vontade” — e não sobre “matéria” (sobre “nervos”, por exemplo —): em suma, é preciso arriscar a hipótese de que em toda parte onde se reconhecem “efeitos”, vontade atua sobre vontade — e de que todo acontecer mecânico, na medida em que nele age uma força, é justamente força de vontade, efeito da vontade. — Supondo, finalmente, que se conseguisse explicar toda a nossa vida instintiva como a elaboração e ramificação de uma forma básica da vontade — a VONTADE DE PODER, como é minha tese —; supondo que se pudesse reconduzir todas as funções orgânicas a essa VONTADE DE PODER, e nela se encontrasse também a solução para o problema da geração e nutrição — é um só problema —, então se obteria o direito de definir toda força atuante, inequivocamente, como VONTADE DE PODER. O mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme o seu “caráter inteligível” — seria justamente “VONTADE DE PODER”, e nada mais. — Além do Bem e do Mal II 36

44. Após tudo isso ainda preciso dizer que também eles serão espíritos livres, muito livres, esses filósofos do futuro — e que tampouco serão apenas espíritos livres, porém algo mais, maior, mais alto, radicalmente outro, que não quer ser mal-entendido e confundido? Mas ao dizer isto sinto — para com eles, não menos do que para conosco, seus arautos e precursores, nós, espíritos livres! — a obrigação de varrer para longe de nós, conjuntamente, um velho, tolo equívoco e preconceito, que por muito tempo obscureceu, como uma névoa, o conceito de “espírito livre”. Em todos os países da Europa, e também na América, existe atualmente quem abuse desse nome, uma espécie bem limitada de espíritos, gente prisioneira e agrilhoada, que quer mais ou menos o oposto daquilo que está em nosso intento e nosso instinto — sem falar que, em relação aos novos filósofos que surgem, eles com certeza serão portas fechadas e janelas travadas. Em suma, e lamentavelmente, eles são niveladores, esses falsamente chamados “espíritos livres” — escravos eloquentes e folhetinescos do gosto democrático e suas “ideias modernas”; todos eles homens sem solidão, sem solidão própria, rapazes bonzinhos e desajeitados, a quem não se pode negar coragem nem costumes respeitáveis, mas que são cativos e ridiculamente superficiais, sobretudo em sua tendência básica de ver, nas formas da velha sociedade até agora existente, a causa de toda a miséria e falência humana: com o que a verdade vem a ficar alegremente de cabeça para baixo! O que eles gostariam de perseguir com todas as forças é a universal felicidade do rebanho em pasto verde, com segurança, ausência de perigo, bem-estar e facilidade para todos; suas duas doutrinas e cantigas mais lembradas são “igualdade de direitos” e “compaixão pelos que sofrem” — e o sofrimento mesmo é visto por eles como algo que se deve abolir. Nós, os avessos, que abrimos os olhos e a consciência para a questão de onde e de que modo, até hoje, a planta “homem” cresceu mais vigorosamente às alturas, acreditamos que isso sempre ocorreu nas condições opostas, que para isso a periculosidade da sua situação tinha de crescer até o extremo, sua força de invenção e dissimulação (seu “espírito”) tinha de converter-se, sob prolongada pressão e coerção, em algo fino e temerário, sua vontade de vida tinha de ser exacerbada até se tornar absoluta VONTADE DE PODER — acreditamos que dureza, violência, escravidão, perigo nas ruas e no coração, ocultamento, estoicismo, arte da tentação e diabolismo de toda espécie, tudo o que há de mau, terrível, tirânico, tudo o que há de animal de rapina e de serpente no homem serve tão bem à elevação da espécie “homem” quanto o seu contrário — mas ainda não dissemos o bastante, ao dizer apenas isso, e de todo modo nos achamos, com nossa fala e nosso silêncio neste ponto, na outra extremidade de toda a moderna ideologia e aspiração de rebanho: como seus antípodas, talvez? Como admirar que nós, “espíritos livres”, não sejamos exatamente os espíritos mais comunicativos? Que não desejemos revelar, em todo aspecto, do que um espírito pode se liberar, e para onde ele é talvez impelido? E no que diz respeito à perigosa fórmula “além do bem e do mal”, com que ao menos evitamos ser confundidos com outros: somos algo diverso de “ libres penseurs ”, “ liberi pensatori ”, “ Freidenker ” [livres-pensadores], ou como quer que se chamem esses bravos defensores das “ideias modernas”. Habitantes, ou ao menos hóspedes, de muitos países do espírito; sempre escapando aos buracos úmidos e agradáveis a que nos pareciam confinar a predileção ou pré-aversão, a juventude, a origem, o acaso de homens e livros, ou mesmo a fadiga das andanças; cheios de malícia frente aos engodos da dependência, que se escondem em honras, dinheiro, cargos, ou entusiasmos dos sentidos; até mesmo gratos à miséria e às vicissitudes da doença, porque sempre nos livraram de alguma regra e de seu “preconceito”, gratos a Deus, Diabo, ovelha e verme que haja em nós, curiosos ao ponto do vício, investigadores a ponto de ser cruéis, com dedos impetuosos para o intangível, com dentes e estômagos para o mais indigesto, prontos para todo ofício que exija perspicácia e sentidos agudos, prontos para todo risco, graças a um excesso de “livre-arbítrio”, com almas de frente e de fundo, das quais não se veem facilmente os últimos propósitos, com fachadas e bastidores que ninguém percorreria até o fim, escondidos sob o manto da luz, conquistadores, mesmo que pareçamos herdeiros e esbanjadores, colecionadores e arrumadores desde a manhã até a noite, avarentos de nossa riqueza e nossas gavetas abarrotadas, parcimoniosos no aprender e esquecer, inventivos em esquemas, às vezes orgulhosos de tábuas de categorias, às vezes pedantes, às vezes corujas do trabalho mesmo em pleno dia; quando necessário, até mesmo espantalhos — e atualmente isso é necessário: na medida em que somos os amigos natos, jurados e ciumentos da solidão, de nossa mais profunda, mais solar e mais noturna solidão — tal espécie de homens somos nós, nós, espíritos livres! e também vocês seriam algo assim, vocês que surgem? Vocês, novos filósofos? — Além do Bem e do Mal II 44

51. Os homens mais poderosos sempre se curvaram respeitosamente diante do santo, ante o enigma da sujeição de si mesmo e derradeira renúncia intencional: por que se curvavam eles? Nele pressentiam — como que por trás do ponto de interrogação de sua aparência frágil e mísera — a força superior que queria se testar com uma tal sujeição, a fortaleza de vontade na qual reconheciam e honravam a própria fortaleza e prazer em dominar: estavam honrando a si mesmos, ao honrar o santo. A isto se junta que a visão do santo lhes despertava uma suspeita: uma tal monstruosidade de negação, de antinatureza, não terá sido desejada em vão, assim diziam e perguntavam a si mesmos. Não haveria uma razão para isso, um perigo muito grande, do qual o asceta estaria mais informado, graças aos seus acólitos e visitantes secretos? Em suma, os poderosos do mundo aprendiam diante dele um novo medo, e pressentiam um novo poder, um inimigo estrangeiro, ainda não sujeitado — a “VONTADE DE PODER” é que os obrigava a se deter frente ao santo. Eles tinham que interrogá-lo — Além do Bem e do Mal III 51

186. Na Europa de hoje, a sensibilidade moral é tão sutil, tardia, múltipla, excitável, refinada, quanto a “ciência da moral” que lhe corresponde é ainda jovem, incipiente, tosca e rudimentar — um atraente contraste, que às vezes se faz visível e toma corpo na pessoa mesma de um moralista. Considerando aquilo que designa, a expressão “ciência da moral” resulta demasiado arrogante e contrária ao bom gosto: o qual é sempre gosto antecipado pelas palavras mais modestas. Deveríamos, com todo o rigor, admitir o que se faz necessário por muito tempo, o que unicamente se justifica por enquanto: reunião de material, formulação e ordenamento conceitual de um imenso domínio de delicadas diferenças e sentimentos de valor que vivem, crescem, procriam e morrem — e talvez tentativas de tornar evidentes as configurações mais assíduas e sempre recorrentes dessa cristalização viva — como preparação para uma tipologia da moral. Sem dúvida: até agora ninguém foi modesto a esse ponto. Tão logo se ocuparam da moral como ciência, os filósofos todos exigiram de si, com uma seriedade tesa, de fazer rir, algo muito mais elevado, mais pretensioso, mais solene: eles desejaram a fundamentação da moral — e cada filósofo acreditou até agora ter fundamentado a moral; a moral mesma, porém, era tida como “dada”. Quão longe do seu tosco orgulho estava a tarefa da descrição, aparentemente insignificante e largada no pó e na lama, embora para realizá-la não bastassem talvez os sentidos e os dedos mais finos e delicados! Precisamente porque os filósofos da moral conheciam os fatos morais apenas grosseiramente, num excerto arbitrário ou compêndio fortuito, como moralidade do seu ambiente, de sua classe, de sua Igreja, do espírito de sua época, de seu clima e seu lugar — precisamente porque eram mal informados e pouco curiosos a respeito de povos, tempos e eras, não chegavam a ter em vista os verdadeiros problemas da moral — os quais emergem somente na comparação de muitas morais. Por estranho que possa soar, em toda “ciência da moral” sempre faltou o problema da própria moral: faltou a suspeita de que ali havia algo problemático. O que os filósofos denominavam “fundamentação da moral”, exigindo-a de si, era apenas, vista à luz adequada, uma forma erudita da ingênua fé na moral dominante, um novo modo de expressá-la, e portanto um fato no interior de uma determinada moralidade, e até mesmo, em última instância, uma espécie de negação de que fosse lícito ver essa moral como um problema — em todo caso o oposto de um exame, questionamento, análise, vivissecção dessa mesma fé. Ouçam, por exemplo, com que inocência quase venerável Schopenhauer apresenta sua tarefa, e tirem suas conclusões sobre a cientificidade de uma “ciência” cujos mestres mais recentes ainda falam como as crianças e as velhinhas: — “o princípio”, diz ele (p. dos Problemas fundamentais da moral ), “a tese fundamental em torno de cujo teor os éticos se acham verdadeiramente de acordo: neminem laede, immo omnes, quantum potes, juve [não fere a ninguém, antes ajuda a todos no que possas] — essa é verdadeiramente a tese que todos os professores da ética se esforçam em fundamentar… o verdadeiro fundamento da ética, que como a pedra filosofal é procurado há milênios”. — A dificuldade em fundamentar a referida tese pode ser realmente grande — como se sabe, tampouco Schopenhauer teve bom êxito nisso —; e quem alguma vez sentiu radicalmente a insipidez, a falsidade e o sentimentalismo dessa tese, num mundo cuja essência é VONTADE DE PODER — a esse podemos lembrar que Schopenhauer, embora pessimista, verdadeiramente — tocava flauta… Diariamente, após a refeição: leiam na sua biografia. E a propósito: um pessimista, um negador de Deus e do mundo, que se detém diante da moral — que diz “sim” à moral e toca flauta, à moral do laede neminem : como? este é verdadeiramente — um pessimista? Além do Bem e do Mal V 186

198. Todas essas morais que se dirigem à pessoa individual, para promover sua “felicidade”, como se diz — que são elas, senão propostas de conduta, conforme o grau de periculosidade em que a pessoa vive consigo mesma; receitas contra suas paixões, suas inclinações boas e más, enquanto têm a VONTADE DE PODER e querem desempenhar papel de senhor; pequenas e grandes artimanhas e prudências, cheirando a velhos remédios caseiros e sabedoria de velhotas; todas elas barrocas e irracionais na forma — porque se dirigem a “todos”, porque generalizam onde não pode ser generalizado —, todas elas falando em tom incondicional, tomando a si de modo incondicional, todas elas condimentadas com mais de um grão de sal, mas apenas toleráveis, e por vezes até sedutoras, quando aprendem a soltar um cheiro excessivo e perigoso, “do outro mundo”: tudo isso tem pouco valor medido intelectualmente, está longe de ser “ciência”, menos ainda “sabedoria”; na verdade é, diga-se mais uma vez, diga-se três vezes, prudência, prudência, prudência, mesclada com estupidez, estupidez, estupidez — quer se trate da indiferença e frieza de estátua frente ao exuberante desatino dos afetos, que os estoicos prescreviam e aplicavam; ou do não-mais-rir e não-mais-chorar de Spinoza, a destruição dos afetos mediante análise e vivissecção, tão ingenuamente preconizada por ele; ou da redução dos afetos a uma mediania inócua, na qual seja permitido satisfazê-los: o aristotelismo da moral; ou mesmo da moral como fruição dos afetos numa intencional diluição e espiritualização pelo simbolismo da arte, em forma de música, digamos, ou de amor a Deus, e ao próximo em nome de Deus — pois na religião as paixões readquirem cidadania, contanto que…; quer se trate afinal do complacente e travesso abandono aos afetos, tal como Hafiz   e Goethe   ensinaram, aquele ousado afrouxamento das rédeas, a espiritual e carnal licentia morum [licença nos costumes] praticada excepcionalmente por velhos sábios excêntricos e bêbados, para os quais “já não há perigo”. Também isto para o capítulo “Moral como pusilanimidade”. Além do Bem e do Mal V 198

211. Insisto em que finalmente se deixe de confundir com filósofos os trabalhadores filosóficos e, sobretudo, os homens de ciência — em que precisamente aqui se dê “a cada um o seu”, e não demasiado a uns e muito pouco a outros. Talvez seja indispensável, na formação de um verdadeiro filósofo, ter passado alguma vez pelos estágios em que permanecem, em que têm de permanecer os seus servidores, os trabalhadores filosóficos; talvez ele próprio tenha que ter sido crítico, cético, dogmático e historiador, e além disso poeta, colecionador, viajante, decifrador de enigmas, moralista, vidente, “livre-pensador” e praticamente tudo, para cruzar todo o âmbito dos valores e sentimentos de valor humanos e poder observá-lo com muitos olhos e consciências, desde a altura até a distância, da profundeza à altura, de um canto qualquer à amplidão. Mas tudo isso são apenas precondições de sua tarefa: ela mesma requer algo mais — ela exige que ele crie valores. Os trabalhadores filosóficos formados segundo o nobre modelo de Kant   e Hegel   têm de estabelecer e colocar em fórmulas, seja no reino do lógico, do político (moral) ou do artístico, algum vasto corpo de valorações — isto é, anteriores determinações, criações de valores, que se tornaram dominantes e por um tempo foram denominadas “verdades”. A esses pesquisadores compete tornar visível, apreensível, pensável, manuseável, tudo até hoje acontecido e avaliado, abreviar tudo o que é longo, “o tempo” mesmo, e subjugar o passado inteiro: imensa e maravilhosa tarefa, a serviço da qual todo orgulho sutil, toda vontade tenaz pode encontrar satisfação. Mas os autênticos filósofos são comandantes e legisladores : eles dizem “ assim deve ser!”, eles determinam o para onde? e para quê? do ser humano, e nisso têm a seu dispor o trabalho prévio de todos os trabalhadores filosóficos, de todos os subjugadores do passado — estendem a mão criadora para o futuro, e tudo que é e foi torna-se para eles um meio, um instrumento, um martelo. Seu “conhecer” é criar, seu criar é legislar, sua vontade de verdade é — VONTADE DE PODER. — Existem hoje tais filósofos? Já existiram tais filósofos? Não têm que existir tais filósofos?… Além do Bem e do Mal VI 211

227. A honestidade — supondo que esta seja a nossa virtude, da qual não podemos escapar, nós, espíritos livres — bem, então vamos esmerá-la com toda a malícia e amor, e não cansar de nos “perfeccionarmos” em nossa virtude, a única que nos resta: que o seu brilho possa um dia pairar, como uma dourada, azul, sarcástica luz de entardecer, sobre essa cultura minguante e sua seriedade opaca e sombria! E se no entanto nossa honestidade vier a se cansar e suspirar e esmorecer e nos achar duros demais, desejando vida melhor, mais fácil e gentil, como um vício agradável: permaneçamos duros, nós, os últimos estoicos!, e enviemos em sua ajuda o que possuímos em nós de demoníaco — nosso nojo ao que é grosseiro e aproximado, nosso “ nitimur in vetitum ” [lançamo-nos ao proibido], nosso ânimo de aventura, nossa curiosidade aguda e requintada, nossa mais sutil, mais encoberta, mais espiritual VONTADE DE PODER e superação do mundo, que adeja e anseia cobiçosa pelos reinos do futuro — ajudemos ao nosso “Deus” com todos os nossos “Demônios”! É provável que por isso sejamos incompreendidos e confundidos: que importa! “Sua ‘honestidade’ — é seu demonismo, e nada mais”, dirão; mas que importa! E mesmo que tivessem razão! Todos os deuses até aqui não foram demônios rebatizados e santificados? E o que sabemos de nós afinal? Como quer chamar-se o espírito que nos guia? (é uma questão de nomes). Quantos espíritos abrigamos? Nossa honestidade, nós, espíritos livres — cuidemos para que não se torne nossa vaidade, nosso adereço e arabesco, nosso limite, nossa estupidez! Toda virtude tende à estupidez, toda estupidez à virtude; “estúpido até à santidade”, dizem na Rússia — cuidemos de que, por honestidade, não nos tornemos santos e enfadonhos! A vida não é curta demais, para nela ainda — se enfadar? Seria preciso acreditar na vida eterna… Além do Bem e do Mal VII 227

259. Abster-se de ofensa, violência, exploração mútua, equiparar sua vontade à do outro: num certo sentido tosco isso pode tornar-se um bom costume entre indivíduos, quando houver condições para isso (a saber, sua efetiva semelhança em quantidades de força e medidas de valor, e o fato de pertencerem a um corpo). Mas tão logo se quisesse levar adiante esse princípio, tomando-o possivelmente como princípio básico da sociedade, ele prontamente se revelaria como aquilo que é: vontade de negação da vida, princípio de dissolução e decadência. Aqui devemos pensar radicalmente até o fundo, e guardarmo-nos de toda fraqueza sentimental: a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração — mas por que empregar sempre essas palavras, que há muito estão marcadas de uma intenção difamadora? Também esse corpo no qual, conforme supomos acima, os indivíduos se tratam como iguais — isso ocorre em toda aristocracia sã —, deve, se for um corpo vivo e não moribundo, fazer a outros corpos tudo o que os seus indivíduos se abstêm de fazer uns aos outros: terá de ser a VONTADE DE PODER encarnada, quererá crescer, expandir-se, atrair para si, ganhar predomínio — não devido a uma moralidade ou imoralidade qualquer, mas porque vive, e vida é precisamente VONTADE DE PODER. Em nenhum outro ponto, porém, a consciência geral dos europeus resiste mais ao ensinamento; em toda parte sonha-se atualmente, inclusive sob roupagem científica, com estados vindouros da sociedade em que deverá desaparecer o “caráter explorador” — a meus ouvidos isto soa como se alguém prometesse inventar uma vida que se abstivesse de toda função orgânica. A “exploração” não é própria de uma sociedade corrompida, ou imperfeita e primitiva: faz parte da essência do que vive, como função orgânica básica, é uma consequência da própria VONTADE DE PODER, que é precisamente vontade de vida. Supondo que isto seja uma inovação como teoria — como realidade é o fato primordial de toda a história: seja-se honesto consigo mesmo até esse ponto! Além do Bem e do Mal IX 259

O ator, o mímico, o dançarino, o músico, o poeta lírico são basicamente aparentados em seus instintos e essencialmente um, mas aos poucos se especializaram e separaram um do outro — até chegar à oposição mútua. O poeta lírico ficou unido ao músico por mais tempo; o ator, com o dançarino. — O arquiteto não representa nem um estado dionisíaco, nem um apolíneo: aí é o grande ato de vontade, a vontade que move montanhas, a embriaguez da grande vontade que exige tornar-se arte. Os indivíduos mais poderosos sempre inspiraram os arquitetos; o arquiteto sempre esteve sob a sugestão do poder. Na construção devem tornar-se visíveis o orgulho, o triunfo sobre a gravidade, a VONTADE DE PODER; arquitetura é uma espécie de eloquência do poder em formas, ora persuadindo, até mesmo lisonjeando, ora simplesmente ordenando. O mais alto sentimento de poder e segurança adquire expressão naquilo que tem grande estilo. O poder que já não tem necessidade de demonstração; que desdenha agradar; que dificilmente responde; que não sente testemunha ao seu redor; que vive sem consciência de que há oposição a ele; que repousa em si mesmo, fatalista, como uma lei entre as leis: isso fala de si na forma do grande estilo. Crepúsculo dos Ídolos IX INCURSÕES DE UM EXTEMPORÂNEO 11

Nada é belo, apenas o ser humano é belo: toda a estética se baseia nessa ingenuidade, ela é sua verdade primeira. Acrescentemos de imediato a segunda: nada é feio, exceto o ser humano que degenera — com isso delimitamos a esfera do julgamento estético. — Fisiologicamente, tudo o que é feio debilita e aflige o ser humano. Recorda-lhe declínio, perigo, impotência; faz com que realmente perca energia. Pode-se medir com um dinamômetro o efeito do que é feio. Sempre que alguém está abatido, pode sentir a proximidade de algo “feio”. Seu sentimento de poder, sua VONTADE DE PODER, sua coragem, seu orgulho — tudo isso cai com o feio, aumenta com o belo… Num caso e no outro tiramos uma conclusão: as premissas para ela são acumuladas de forma abundante no instinto. O feio é entendido como sinal e sintoma de degenerescência: aquilo que recorda minimamente a degenerescência produz em nós o juízo de “feio”. Todo indício de esgotamento, de idade, de peso, de cansaço, toda espécie de falta de liberdade, como a convulsão, como a paralisia, sobretudo o cheiro, a cor, a forma da dissolução, da decomposição, ainda que na extrema rarefação de símbolo — tudo provoca a mesma reação, o juízo de valor “feio”. Um ódio irrompe: o que odeia aí o ser humano? Não há dúvida: o declínio de seu tipo. Ele odeia a partir do mais profundo instinto da espécie: nesse ódio há arrepio, cautela, profundidade, longividência — é o mais profundo ódio que existe. Por causa dele a arte é profunda… Crepúsculo dos Ídolos IX INCURSÕES DE UM EXTEMPORÂNEO 20

Meu conceito de liberdade. — Às vezes o valor de uma coisa não se acha naquilo que se obtém com ela, mas naquilo que por ela se paga — aquilo que nos custa. Darei um exemplo. As instituições liberais deixam de ser liberais logo que são alcançadas: não há, depois, nada tão radicalmente prejudicial à liberdade quanto as instituições liberais. Sabe-se muito bem o que trazem consigo: elas minam a VONTADE DE PODER, elas são o nivelamento de montes e vales alçado à condição de moral, elas tornam os homens pequenos, covardes e ávidos de prazer — com elas triunfa, a cada vez, o animal de rebanho. Liberalismo: em outras palavras, animalização em rebanho. As mesmas instituições produzem efeitos bastante diferentes enquanto se luta por elas; então realmente promovem a liberdade de maneira poderosa. Observando mais detidamente, é a guerra que produz esses efeitos, a guerra por instituições liberais, que, como guerra, faz perdurarem os instintos iliberais. E a guerra educa para a liberdade. Pois o que é liberdade? Ter a vontade da responsabilidade por si próprio. Preservar a distância que nos separa. Tornar-se mais indiferente à labuta, dureza, privação, até mesmo à vida. Estar disposto a sacrificar seres humanos à sua causa, não excluindo a si mesmo. Liberdade significa que os instintos viris, que se deleitam na guerra e na vitória, predominam sobre outros instintos, os da “felicidade”, por exemplo. O ser humano que se tornou livre, e tanto mais ainda o espírito que se tornou livre, pisoteia a desprezível espécie de bem-estar com que sonham pequenos lojistas, cristãos, vacas, mulheres, ingleses e outros democratas. O homem livre é guerreiro. — Como se mede a liberdade, tanto em indivíduos como em povos? Conforme a resistência que tem de ser vencida, conforme o esforço que custa ficar em cima. O mais elevado tipo de homens livres deve ser buscado ali onde é continuamente superada a mais alta resistência: a cinco passos da tirania, junto ao limiar do perigo da servidão. Isso é psicologicamente verdadeiro se por “tiranos” compreendemos instintos implacáveis e terríveis, que provocam o máximo de autoridade e disciplina para consigo — Júlio César sendo o tipo mais belo —; isso também é politicamente verdadeiro, basta que se percorra a história. Os povos que tiveram algum valor, que se tornaram de valor, nunca se tornaram assim sob instituições liberais: o grande perigo fez deles algo que merece respeito, o perigo que nos faz conhecer nossos recursos, nossas virtudes, nossas armas e defesas, nosso espírito — que nos compele a ser fortes… Primeiro princípio: há que ter necessidade de ser forte; senão jamais chegamos a sê-lo. — Aqueles grandes viveiros para uma forte, a mais forte espécie de gente que até hoje existiu, as comunidades aristocráticas da espécie de Roma e Veneza, entendiam a liberdade no mesmo exato sentido em que eu entendo a palavra: como algo que se tem e não se tem, que se quer, que se conquista… Crepúsculo dos Ídolos IX INCURSÕES DE UM EXTEMPORÂNEO 38

Vislumbrar nos gregos “almas belas”, “áurea moderação” e outras perfeições, ou neles admirar a calma na grandeza, a mentalidade ideal, a elevada ingenuidade — dessa “elevada ingenuidade”, uma niaiserie allemande [bobagem alemã], afinal, fui protegido pelo psicólogo que há em mim. Eu vi seu mais forte instinto, a VONTADE DE PODER, eu os vi tremendo ante a indomável força desse instinto — eu vi todas as suas instituições nascerem de medidas preventivas para resguardarem uns aos outros de seu íntimo material explosivo. A enorme tensão no interior descarregava-se em terrível e implacável inimizade com o exterior: as cidades dilaceravam umas às outras, para que os cidadãos de cada uma encontrassem paz diante de si mesmos. Era necessário ser forte: o perigo estava próximo — espreitava em toda parte. A magnífica destreza dos corpos, o audacioso realismo e imoralismo peculiar aos helenos, foi uma necessidade, não uma “natureza”. Veio depois, não existiu desde o começo. E com festas e artes eles não queriam outra coisa senão sentir-se lá em cima, mostrar-se lá em cima: são meios de glorificar a si mesmo, às vezes de inspirar temor a si mesmo… Julgar os gregos, à maneira alemã, por seus filósofos, servir-se do bom-mocismo das escolas socráticas para tirar conclusões sobre o que é, no fundo, helênico!… Mas os filósofos são os décadents do helenismo, o antimovimento contra o gosto antigo e nobre (— contra o instinto agonal, contra a pólis, contra o valor da raça, contra a autoridade da tradição). As virtudes socráticas foram pregadas porque haviam sido perdidas pelos gregos: suscetíveis, temerosos, inconstantes, todos eles comediantes, tinham razões de sobra para deixar que lhes pregassem moral. Não que isso ajudasse alguma coisa: mas palavras e atitudes grandes ficam tão bem em décadents… Crepúsculo dos Ídolos X O QUE DEVO AOS ANTIGOS 3

Ainda uma palavra sobre a origem e a finalidade do castigo — dois problemas distintos, ou que se deveria distinguir: infelizmente se costuma confundi-los. Como procederam neste caso os genealogistas da moral? De modo ingênuo, como sempre —: descobrem no castigo uma “finalidade” qualquer, por exemplo a vingança, ou a intimidação, colocam despreocupadamente essa finalidade no começo, como causa fiendi [causa da origem] do castigo, e — é tudo. Mas a “finalidade no direito” é a última coisa a se empregar na história da gênese do direito: pois não há princípio mais importante para toda ciência histórica do que este, que com tanto esforço se conquistou, mas que também deveria estar realmente conquistado — o de que a causa da gênese de uma coisa e a sua utilidade final, a sua efetiva utilização e inserção em um sistema de finalidades, diferem toto coelo [totalmente]; de que algo existente, que de algum modo chegou a se realizar, é sempre reinterpretado para novos fins, requisitado de maneira nova, transformado e redirecionado para uma nova utilidade, por um poder que lhe é superior; de que todo acontecimento do mundo orgânico é um subjugar e assenhorear-se, e todo subjugar e assenhorear-se é uma nova interpretação, um ajuste, no qual o “sentido” e a “finalidade” anteriores são necessariamente obscurecidos ou obliterados. Mesmo tendo-se compreendido bem a utilidade de um órgão fisiológico (ou de uma instituição de direito, de um costume social, de um uso político, de uma determinada forma nas artes ou no culto religioso), nada se compreendeu acerca de sua gênese: por mais molesto e desagradável que isto soe aos ouvidos mais velhos — pois de há muito se acreditava perceber no fim demonstrável, na utilidade de uma coisa, uma forma, uma instituição, também a razão de sua gênese, o olho tendo sido feito para ver, e a mão para pegar. Assim se imaginou o castigo como inventado para castigar. Mas todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de que uma VONTADE DE PODER se assenhoreou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma função; e toda a história de uma “coisa”, um órgão, um uso, pode desse modo ser uma ininterrupta cadeia de signos de sempre novas interpretações e ajustes, cujas causas nem precisam estar relacionadas entre si, antes podendo se suceder e substituir de maneira meramente casual. Logo, o “desenvolvimento” de uma coisa, um uso, um órgão, é tudo menos o seu progressus em direção a uma meta, menos ainda um progressus lógico e rápido, obtido com um dispêndio mínimo de forças — mas sim a sucessão de processos de subjugamento que nela ocorrem, mais ou menos profundos, mais ou menos interdependentes, juntamente com as resistências que a cada vez encontram, as metamorfoses tentadas com o fim de defesa e reação, e também os resultados de ações contrárias bem-sucedidas. Se a forma é fluida, o “sentido” é mais ainda… Mesmo no interior de cada organismo não é diferente: a cada crescimento essencial do todo muda também o “sentido” dos órgãos individuais — em certas circunstâncias a sua ruína parcial, a sua diminuição em número (pela destruição dos componentes intermediários, por exemplo) pode ser um signo de crescente força e perfeição. Quero dizer que também a inutilização parcial, a atrofia e degeneração, a perda de sentido e propósito, a morte, em suma, está entre as condições para o verdadeiro progressus; o qual sempre aparece em forma de vontade e via de maior poder, e é sempre imposto à custa de inúmeros poderes menores. A magnitude de um “avanço”, inclusive, se mede pela massa daquilo que teve de lhe ser sacrificado; a humanidade enquanto massa sacrificada ao florescimento de uma mais forte espécie de homem — isto seria um avanço… Dou ênfase a esse ponto de vista capital do método histórico, tanto mais porque vai de encontro ao gosto e aos instintos agora dominantes, que antes se conciliariam até mesmo com a contingência absoluta, com a mecânica absurdidade de todo acontecer, do que com a teoria de uma VONTADE DE PODER operante em todo acontecer. A idiossincrasia democrática contra tudo o que domina e quer dominar, o moderno misarquismo (forjando uma palavra feia para uma coisa feia) de tal modo se transformou e se mascarou no que é espiritual, espiritualíssimo, que hoje passo a passo penetra, pode penetrar, nas mais rigorosas e aparentemente mais objetivas ciências; me parece mesmo que já se apossou de toda a fisiologia e teoria da vida, com prejuízo dela, já se entende, ao lhe retirar uma noção fundamental, a de atividade. Sob influência dessa idiossincrasia, colocou-se em primeiro plano a “adaptação”, ou seja, uma atividade de segunda ordem, uma reatividade; chegou-se mesmo a definir a vida como uma adaptação interna, cada vez mais apropriada, a circunstâncias externas (Herbert Spencer). Mas com isto se desconhece a essência da vida, a sua VONTADE DE PODER; com isto não se percebe a primazia fundamental das forças espontâneas, agressivas, expansivas, criadoras de novas formas, interpretações e direções, forças cuja ação necessariamente precede a “adaptação”; com isto se nega, no próprio organismo, o papel dominante dos mais altos funcionários, aqueles nos quais a vontade de vida aparece ativa e conformadora. Recorde-se o que Huxley   criticou em Spencer — o seu “niilismo administrativo”: mas trata-se de bem mais que de mera “administração”… Genealogia da Moral Segunda dissertação 12

Guardemo-nos de fazer pouco-caso desse fenômeno, por ser já de início feio e doloroso. No fundo é a mesma força ativa, que age grandiosamente naqueles organizadores e artistas da violência e constrói Estados, que aqui, interiormente, em escala menor e mais mesquinha, dirigida para trás, no “labirinto do peito”, como diz Goethe, cria a má consciência e constrói ideais negativos, é aquele mesmo instinto de liberdade (na minha linguagem: a VONTADE DE PODER): somente que a matéria na qual se extravasa a natureza conformadora e violentadora dessa força é aqui o homem mesmo, o seu velho Eu animal — e não, como naquele fenômeno maior e mais evidente, o outro homem, outros homens. Essa oculta violentação de si mesmo, essa crueldade de artista, esse deleite em se dar uma forma, como a uma matéria difícil, recalcitrante, sofrente, em se impor a ferro e fogo uma vontade, uma crítica, uma contradição, um desprezo, um Não, esse inquietante e horrendamente prazeroso trabalho de uma alma voluntariamente cindida, que a si mesma faz sofrer, por prazer em fazer sofrer, essa “má consciência” ativa também fez afinal — já se percebe —, como verdadeiro ventre de acontecimentos ideais e imaginosos, vir à luz uma profusão de beleza e afirmação nova e surpreendente, e talvez mesmo a própria beleza… Pois o que seria “belo”, se a contradição não se tornasse primeiro consciente de si mesma, se antes a feiura não houvesse dito a si mesma: “eu sou feia”?… Isso ao menos tornará menos enigmático o enigma de como se pôde insinuar um ideal, uma beleza, em noções contraditórias como ausência de si, abnegação, sacrifício; e uma coisa sabemos doravante, não tenho dúvida — de que espécie é, desde o início, o prazer que sente o desinteressado, o abnegado, o que se sacrifica: este prazer vem da crueldade. — Apenas isso, no momento, sobre a origem do “não-egoísmo” como valor moral, e para delimitação do terreno no qual ele cresceu: somente a má consciência, somente a vontade de maltratar-se fornece a condição primeira para o valor do não-egoísmo. Genealogia da Moral Segunda dissertação 18

Somente agora, após avistarmos o sacerdote ascético, atacamos seriamente o nosso problema: o que significa o ideal ascético? — agora a coisa fica “séria”: temos o próprio representante da seriedade à nossa frente. “Que significa toda seriedade?” — esta pergunta, ainda mais fundamental, aparece já aqui em nossos lábios: uma pergunta para fisiólogos, claro, mas que momentaneamente evitamos. O sacerdote ascético tem nesse ideal não apenas a sua fé, mas também sua vontade, seu poder, seu interesse. Seu direito à existência se sustenta ou cai com esse ideal: como admirar que encontremos aqui um adversário terrível, supondo-se que sejamos adversários desse ideal? Um adversário tal que luta por sua vida, combatendo os que negam esse ideal?… Por outro lado, é improvável que uma atitude tão interessada perante nosso problema resulte especialmente proveitosa para ele; dificilmente o sacerdote ascético será um defensor afortunado do seu ideal, pela mesma razão por que uma mulher não costuma se sair bem, quando pretende defender a “mulher em si” — tampouco será ele o juiz mais imparcial da controvérsia aqui levantada. Portanto, teremos que ajudá-lo a bem defender-se de nós — uma constatação palmar, a essa altura —, em vez de recear sermos bem refutados por ele… O pensamento em torno do qual aqui se peleja, é a valoração de nossa vida por parte dos sacerdotes ascéticos: esta (juntamente com aquilo a que pertence, “natureza”, “mundo”, toda a esfera do vir a ser e da transitoriedade) é por eles colocada em relação com uma existência inteiramente outra, a qual exclui e à qual se opõe, a menos que se volte contra si mesma, que negue a si mesma: neste caso, o caso de uma vida ascética, a vida vale como uma ponte para essa outra existência. O asceta trata a vida como um caminho errado, que se deve enfim desandar até o ponto onde começa; ou como um erro que se refuta — que se deve refutar com a ação: pois ele exige que se vá com ele, e impõe, onde pode, a sua valoração da existência. Que significa isso? Um tal monstruoso modo de valorar não se acha inscrito como exceção e curiosidade na história do homem: é um dos fatos mais difundidos e duradouros que existem. Lida de um astro distante, a escrita maiúscula de nossa existência terrestre levaria talvez à conclusão de que a terra é a estrela ascética por excelência, um canto de criaturas descontentes, arrogantes e repulsivas, que jamais se livram de um profundo desgosto de si, da terra, de toda a vida, e que a si mesmas infligem o máximo de dor possível, por prazer em infligir dor — provavelmente o seu único prazer. Pois consideremos com que regularidade, com que universalidade, como em quase todos os tempos aparece o sacerdote ascético; ele não pertence a nenhuma raça determinada; floresce em toda parte; brota de todas as classes. Não que ele cultive e propague seu modo de valoração através da herança: ocorre o contrário — em geral, um profundo instinto lhe proíbe a procriação. Deve ser uma necessidade de primeira ordem, a que faz sempre crescer e medrar essa espécie hostil à vida — deve ser interesse da vida mesma, que um tipo tão contraditório não se extinga. Pois uma vida ascética é uma contradição: aqui domina um ressentimento ímpar, aquele de um insaciado instinto e VONTADE DE PODER que deseja senhorear-se, não de algo da vida, mas da vida mesma, de suas condições maiores, mais profundas e fundamentais; aqui se faz a tentativa de usar a força para estancar a fonte da força; aqui o olhar se volta, rancoroso e pérfido, contra o florescimento fisiológico mesmo, em especial contra a sua expressão, a beleza, a alegria; enquanto se experimenta e se busca satisfação no malogro, na desventura, no fenecimento, no feio, na perda voluntária, na negação de si, autoflagelação e autossacrifício. Tudo isso é paradoxal no mais alto grau: estamos aqui diante de uma desarmonia que se quer desarmônica, que frui a si mesma neste sofrimento, e torna-se inclusive mais triunfante e confiante à medida que diminui o seu pressuposto, a vitalidade fisiológica. “O triunfo na agonia derradeira”: sob este signo superlativo lutou desde sempre o ideal ascético; neste enigma de sedução, nesta imagem de êxtase e tormento ele reconheceu sua luz mais intensa, sua salvação, sua vitória final. Crux, nux, lux [cruz, noz, luz] — para ele são uma só coisa. Genealogia da Moral Terceira dissertação 11

Se é normal a condição doentia do homem — e não há como contestar essa normalidade —, tanto mais deveriam ser reverenciados os casos raros de pujança da alma e do corpo, os acasos felizes do homem, tanto mais deveriam ser os bem logrados protegidos do ar ruim, do ar de doentes. Isto é feito?… Os doentes são o maior perigo para os sãos; não é dos mais fortes que vem o infortúnio dos fortes, e sim dos mais fracos. Isto é sabido?… Grosso modo, não é absolutamente o temor ao homem, aquilo cuja diminuição se poderia desejar: pois esse temor obriga os fortes a serem fortes, ocasionalmente temíveis — ele mantém em pé o tipo bem logrado de homem. O que é de temer, o que tem efeito mais fatal que qualquer fatalidade, não é o grande temor, mas o grande nojo ao homem; e também a grande compaixão pelo homem. Supondo que esses dois um dia se casassem, inevitavelmente algo de monstruoso viria ao mundo, a “última vontade” do homem, sua vontade do nada, o niilismo. E de fato: muita coisa aponta para isso. Quem para farejar possui não apenas o nariz, mas também os olhos e ouvidos, sente, em quase toda parte aonde vai atualmente, algo semelhante a um ar de hospício, a um ar de hospital — falo, naturalmente, das áreas de cultura do homem, de toda espécie de “Europa” sobre a terra. Os doentios são o grande perigo do homem: não os maus, não os “animais de rapina”. Aqueles já de início desgraçados, vencidos, destroçados — são eles, são os mais fracos, os que mais corroem a vida entre os homens, os que mais perigosamente envenenam e questionam nossa confiança na vida, no homem, em nós. Onde se poderia escapar a ele, àquele olhar velado que nos deixa uma profunda tristeza, àquele olhar voltado para trás do homem deformado na origem, que revela como tal homem fala consigo mesmo — àquele olhar que é um suspiro! “Quisera ser alguma outra pessoa”, assim suspira esse olhar: “mas não há esperança. Eu sou o que sou: como me livraria de mim mesmo? E no entanto — estou farto de mim!”… Neste solo de autodesprezo, verdadeiro terreno pantanoso, cresce toda erva ruim, toda planta venenosa, e tudo tão pequeno, tão escondido, tão insincero, tão adocicado. Aqui pululam os vermes da vingança e do rancor; aqui o ar fede a segredos e coisas inconfessáveis; aqui se tece continuamente a rede da mais malévola conspiração — a conspiração dos sofredores contra os bem logrados e vitoriosos, aqui a simples vista do vitorioso é odiada. E que mendacidade, para não admitir esse ódio como ódio! Que ostentação de grandes palavras e atitudes, que arte de calúnia “honrada”! Esses malogrados: que nobre eloquência flui de seus lábios! Quanta resignação humilde, viscosa, açucarada, flutua em seus olhos! Que desejam realmente? Ao menos representar o amor, a justiça, a superioridade, a sabedoria — eis a ambição desses “ínfimos”, desses enfermos! E como esta ambição torna hábil! Admire-se principalmente a habilidade de falsários com que aí se imita o cunho da virtude, e mesmo o tilintar, o tilintar de ouro da virtude. Eles agora monopolizaram inteiramente a virtude, esses fracos e doentes sem cura, quanto a isso não há dúvida: “nós somente somos os bons, os justos”, dizem eles, “nós somente somos os homines bonae voluntatis [homens de boa vontade]”. Eles rondam entre nós como censuras vivas, como advertências dirigidas a nós — como se saúde, boa constituição, força, orgulho, sentimento de força fossem em si coisas viciosas, as quais um dia se devesse pagar, e pagar amargamente: oh, como eles mesmos estão no fundo dispostos a fazer pagar, como anseiam ser carrascos! Entre eles encontra-se em abundância os vingativos mascarados de juízes, que permanentemente levam na boca, como baba venenosa, a palavra justiça e andam sempre de lábios em bico, prontos a cuspir em todo aquele que não tenha olhar insatisfeito e siga seu caminho de ânimo tranquilo. Entre eles não falta igualmente a mais nojenta espécie de vaidosos, os monstros de mendacidade que buscam aparecer como “almas belas” e exibem no mercado, como “pureza do coração”, sua sensualidade estropiada, envolta em versos e outros cueiros: a espécie de onanistas morais e “autogratificadores”. A vontade dos enfermos de representar uma forma qualquer de superioridade, seu instinto para vias esquivas que conduzam a uma tirania sobre os sãos — onde não seria encontrada, essa VONTADE DE PODER precisamente dos mais fracos! A mulher doente em especial: ninguém a supera em refinamento para dominar, oprimir, tiranizar. Nisso a mulher doente nada poupa, vivo ou morto, ela desenterra de novo as coisas mais profundamente enterradas (os bogos dizem: “a mulher é uma hiena”). Olhe-se o interior de cada família, de cada corporação, de cada comunidade: em toda parte a luta dos enfermos contra os sãos — uma luta quase sempre silenciosa, com pequenos venenos, com agulhadas, com astuciosa mímica de mártir, por vezes também com esse farisaísmo de doente de gestos estrepitosos, que ama mais que tudo encenar a “nobre indignação”. Até nos espaços consagrados da ciência gostaria de fazer-se ouvir esse rouco latido de indignação dos cães doentes, a mordaz fúria e falsidade de tais “nobres” fariseus (— aos leitores que têm ouvidos torno a lembrar aquele apóstolo da vingança berlinense, Eugen Dühring, que na Alemanha de hoje faz o uso mais indecente e repugnante dos “tambores” da moral: Dühring, o maior fanfarrão da moral que existe atualmente, mesmo entre seus iguais, os antissemitas). Estes são todos homens do ressentimento, estes fisiologicamente desgraçados e carcomidos, todo um mundo fremente de subterrânea vingança, inesgotável, insaciável em irrupções contra os felizes, e também em mascaramentos de vingança, em pretextos para vingança: quando alcançariam realmente o seu último, mais sutil, mais sublime triunfo da vingança? Indubitavelmente, quando lograssem introduzir na consciência dos felizes sua própria miséria, toda a miséria, de modo que estes um dia começassem a se envergonhar da sua felicidade, e dissessem talvez uns aos outros: “é uma vergonha ser feliz! existe muita miséria!”… Mas não poderia haver erro maior e mais fatal do que os felizes, os bem logrados, os poderosos de corpo e alma começarem a duvidar assim do seu direito à felicidade. Fora com esse “mundo ao avesso”! Fora com esse debilitamento do sentimento! Que os doentes não tornem os sadios doentes — isto seria o debilitamento — deveria ser o ponto de vista supremo na Terra — mas isto requer, acima de tudo, que os sadios permaneçam apartados dos doentes, guardados inclusive da vista dos doentes, para que não se confundam com os doentes. Ou seria por acaso sua tarefa serem enfermeiros e médicos?… Não poderia haver pior maneira de desconhecer e negar a sua tarefa — o superior não deve rebaixar-se a instrumento do inferior, o pathos da distância deve manter também as tarefas eternamente afastadas! Seu direito de ser o privilégio do sino de plena ressonância diante daquele falho, dissonante, é afinal mil vezes maior: eles somente são os fiadores do futuro, eles somente estão comprometidos com o futuro do homem. O que eles podem, o que eles devem, jamais poderiam poder e dever os enfermos: mas para que eles possam o que apenas eles devem, como poderiam ainda fazer-se de médicos, consoladores, “salvadores” dos enfermos?… Ar puro, portanto! Ar puro! E afastamento de todos os hospícios e hospitais da cultura! E portanto boa companhia, nossa companhia! Ou solidão, se tiver de ser! Mas afastamento dos maus odores da degradação interna e da oculta carcoma da doença!… Para que nós mesmos, meus amigos, ao menos por algum tempo ainda nos defendamos das duas mais terríveis pragas que podem estar reservadas para nós precisamente — o grande nojo do homem e a grande compaixão pelo homem!… Genealogia da Moral Terceira dissertação 14

Compreendendo-se em toda a profundidade — e eu exijo que precisamente aqui se apreenda fundo, se vá ao fundo — o quanto não pode ser tarefa dos sãos assistir doentes, tornar sãos doentes, compreende-se assim uma necessidade mais — a necessidade de médicos e enfermeiros que sejam eles mesmos doentes: e agora temos e apreendemos com ambas as mãos o sentido do sacerdote ascético. A ele devemos considerar o salvador, pastor e defensor predestinado do rebanho doente: somente então entenderemos a sua tremenda missão histórica. A dominação sobre os que sofrem é o seu reino, para ela o dirige seu instinto, nela encontra ele sua arte mais própria, sua mestria, sua espécie de felicidade. Ele próprio tem de ser doente, tem de ser aparentado aos doentes e malogrados desde a raiz, para entendê-los — para com eles se entender; mas também tem de ser forte, ainda mais senhor de si do que dos outros, inteiro em sua VONTADE DE PODER, para que tenha a confiança e o temor dos doentes, para que lhes possa ser amparo, apoio, resistência, coerção, instrução, tirano, deus. Ele tem que defendê-lo, ao seu rebanho — contra quem? Contra os sãos, não há dúvida, e também contra a inveja que têm dos sãos; ele tem que ser o opositor e desprezador natural de toda saúde e toda potência tempestuosa, dura, desenfreada, violenta e rapace. O sacerdote é a primeira forma do animal mais delicado, que despreza mais facilmente do que odeia. Não lhe será poupado fazer guerra aos animais de rapina, uma guerra de astúcia (de “espírito”) mais que de violência, está claro — para isto lhe será necessário, em certas circunstâncias, desenvolver-se quase que em um novo tipo de animal de rapina, ou ao menos representá-lo — uma nova ferocidade animal, na qual o urso polar, a elástica, fria, expectante pantera, e também a raposa, parecem juntados numa unidade tão atraente quanto aterradora. Supondo que a necessidade o obrigue, ele andará entre os outros animais de rapina, sério como urso, venerável, prudente, frio, superior-enganador, como arauto e porta-voz de poderes misteriosos, decidido a semear nesse terreno, onde puder, sofrimento, discórdia, contradição, e, seguro bastante de sua arte, fazer-se a todo instante senhor dos sofredores. Ele traz unguento e bálsamo, sem dúvida; mas necessita primeiro ferir, para ser médico; e quando acalma a dor que a ferida produz, envenena no mesmo ato a ferida — pois disso entende ele mais que tudo, esse feiticeiro e domador de animais de rapina, em volta do qual tudo o que é são torna-se necessariamente doente, e tudo doente necessariamente manso. De fato, ele defende muito bem o seu rebanho enfermo, esse estranho pastor — ele o defende também de si mesmo, da baixeza, perfídia, malevolência que no próprio rebanho arde sob as cinzas, e do que mais for próprio de doentes e combalidos; ele combate, de modo sagaz, duro e secreto, a anarquia e a autodissolução que a todo momento ameaçam o rebanho, no qual aquele mais perigoso dos explosivos, o ressentimento, é continuamente acumulado. Descarregar este explosivo, de modo que ele não faça saltar pelos ares o rebanho e o pastor, é a sua peculiar habilidade, e suprema utilidade; querendo-se resumir numa breve fórmula o valor da existência sacerdotal, pode-se dizer simplesmente: o sacerdote é aquele que muda a direção do ressentimento. Pois todo sofredor busca instintivamente uma causa para seu sofrimento; mais precisamente, um agente; ainda mais especificamente, um agente culpado suscetível de sofrimento — em suma, algo vivo, no qual possa sob algum pretexto descarregar seus afetos, em ato ou in effigie [simbolicamente]: pois a descarga de afeto é para o sofredor a maior tentativa de alívio, de entorpecimento, seu involuntariamente ansiado narcótico para tormentos de qualquer espécie. Unicamente nisto, segundo minha suposição, se há de encontrar a verdadeira causação fisiológica do ressentimento, da vingança e quejandos, ou seja, em um desejo de entorpecimento da dor através do afeto — de ordinário ela é procurada, muito erroneamente, me parece, em um contragolpe defensivo, uma simples medida protetora, um “movimento reflexo” em resposta a uma súbita lesão ou ameaça, do tipo que ainda executa uma rã sem cabeça, para livrar-se de um ácido corrosivo. Mas a diferença é fundamental: em um caso quer-se prevenir mais lesões, no outro caso quer-se entorpecer, mediante uma emoção mais violenta de qualquer espécie, uma dor torturante, secreta, cada vez mais insuportável, e retirá-la da consciência ao menos por um instante — para isto necessita-se de um afeto, um afeto o mais selvagem possível, e, para sua excitação, um bom pretexto qualquer. “Alguém deve ser culpado de que eu esteja mal” — esta maneira de raciocinar é comum a todos os doentes, tanto mais quanto lhes for desconhecida a verdadeira causa do seu mal-estar, a fisiológica (— ela pode encontrar-se, digamos, numa enfermidade do nervus sympathicus, numa anormal secreção de bílis, numa pobreza de sulfato e fosfato de potássio no sangue, em estados de tensão do baixo-ventre que impedem a circulação do sangue, ou ainda numa degeneração dos ovários etc.). Os sofredores são todos horrivelmente dispostos e inventivos, em matéria de pretextos para seus afetos dolorosos; eles fruem a própria desconfiança, a cisma com baixezas e aparentes prejuízos, eles revolvem as vísceras de seu passado e seu presente, atrás de histórias escuras e questionáveis, em que possam regalar-se em uma suspeita torturante, e intoxicar-se do próprio veneno de maldade — eles rasgam as mais antigas feridas, eles sangram de cicatrizes há muito curadas, eles transformam em malfeitores o amigo, a mulher, o filho e quem mais lhes for próximo. “Eu sofro: disso alguém deve ser culpado” — assim pensa toda ovelha doente. Mas seu pastor, o sacerdote ascético, lhe diz: “Isso mesmo, minha ovelha! Alguém deve ser culpado: mas você mesma é esse alguém — somente você é culpada de si!…”. Isto é ousado bastante, falso bastante: mas com isto se alcança uma coisa ao menos, com isto, como disse, a direção do ressentimento é — mudada. Genealogia da Moral Terceira dissertação 15

Bem mais frequentemente que este hipnótico amortecimento geral da sensibilidade, da capacidade de dor, o qual já pressupõe forças mais raras, sobretudo coragem, desprezo da opinião, “estoicismo intelectual”, emprega-se contra estados de depressão um outro training, de todo modo mais fácil: a atividade maquinal. Está fora de dúvida que através dela uma existência sofredora é aliviada num grau considerável: a este fato chama-se atualmente, de modo algo desonesto, “a bênção do trabalho”. O alívio consiste em que o interesse do sofredor é inteiramente desviado do sofrimento — em que a consciência é permanentemente tomada por um afazer seguido de outro, e em consequência resta pouco espaço para o sofrimento: pois ela é pequena, esta câmara da consciência humana! A atividade maquinal e o que dela é próprio — a absoluta regularidade, a obediência pontual e impensada, o modo de vida fixado uma vez por todas, o preenchimento do tempo, uma certa permissão, mesmo educação para a “impessoalidade”, para o esquecimento de si, para a “incuria sui” —: de que maneira completa e sutil o sacerdote ascético soube utilizá-la na luta com a dor! Precisamente quando tinha de lidar com sofredores das camadas inferiores, com trabalhadores escravos ou prisioneiros (ou com mulheres, que são geralmente ambos ao mesmo tempo, escravas e prisioneiras), necessitava ele de pouco mais que a pequena arte de mudar os nomes e rebatizar as coisas, para fazer com que vissem benefício e relativa felicidade em coisas até então odiadas — a insatisfação do escravo com sua sorte não foi, de qualquer modo, inventada pelos sacerdotes. — Um meio ainda mais apreciado na luta contra a depressão é a prescrição de uma pequena alegria que seja de fácil obtenção e possa ser tornada regra; esta medicação é frequentemente usada em associação com a anterior. A forma mais frequente em que a alegria é assim prescrita como meio de cura é a alegria de causar alegria (ao fazer benefício, presentear, aliviar, ajudar, convencer, consolar, louvar, distinguir); no fundo, ao prescrever “amor ao próximo”, o sacerdote ascético prescreve uma estimulação, embora em dosagem prudente, do impulso mais forte e mais afirmador da vida — da VONTADE DE PODER. A felicidade da “pequena superioridade”, que acompanha todo ato de beneficiar, servir, ajudar, distinguir, é o mais abundante meio de consolo de que costumam servir-se os fisiologicamente obstruídos, supondo-se que estejam bem aconselhados: de outro modo ferem uns aos outros, naturalmente em obediência ao mesmo instinto básico. Quando se investiga o começo do cristianismo no mundo romano, encontram-se associações para auxílio mútuo, associações de pobres e de enfermos, ou para realizar enterros, nascidas no solo mais inferior daquela sociedade, nas quais se cultivava conscientemente esse grande meio contra a depressão, a pequena alegria da beneficência mútua — seria isto algo novo então, uma verdadeira descoberta? Numa “vontade de reciprocidade” deste modo suscitada, vontade de formar rebanho, “comunidade”, “cenáculo”, a VONTADE DE PODER assim estimulada, mesmo num grau mínimo, deve por sua vez alcançar uma nova e mais plena irrupção: a formação do rebanho é avanço e vitória essencial na luta contra a depressão. O crescimento da comunidade fortalece também no indivíduo um novo interesse, que com frequência bastante o eleva acima do elemento mais pessoal do seu desalento, sua aversão a si mesmo (a “despectio sui” de Geulincx). Todos os doentes, todos os doentios, buscam instintivamente organizar-se em rebanho, na ânsia de livrar-se do surdo desprazer e do sentimento de fraqueza: o sacerdote ascético intui esse instinto e o promove; onde há rebanho, é o instinto de fraqueza que o quis, e a sabedoria do sacerdote que o organizou. Pois atente-se para isso: os fortes buscam necessariamente dissociar-se, tanto quanto os fracos buscam associar-se; quando os primeiros se unem, isto acontece apenas com vista a uma agressão coletiva, uma satisfação coletiva da sua VONTADE DE PODER, com muita oposição da consciência individual; os fracos, ao contrário, se agrupam, tendo prazer nesse agrupamento — seu instinto se satisfaz com isso, tanto quanto o instinto dos “senhores” natos (isto é, da solitária, predatória espécie “homem”) é irritado e perturbado pela organização. Sob toda oligarquia se esconde sempre — a história inteira ensina — o capricho tirânico; toda oligarquia está sempre a tremer da tensão que cada membro sente para permanecer senhor deste capricho. (Assim era, por exemplo, entre os gregos: Platão atesta isso em uma centena de passagens, Platão, que conhecia seus iguais — e a si mesmo…) Genealogia da Moral Terceira dissertação 18

— Basta! Basta! Deixemos essas curiosidades e complexidades do espírito moderno, nas quais há tanto para rir quanto para aborrecer-se: pois nosso problema, o problema da significação do ideal ascético, pode dispensá-las — que tem ele a ver com o hoje e o ontem! Tais coisas serão por mim tratadas em outro contexto, com maior profundidade e severidade (sob o título de “História do niilismo europeu”; numa obra que estou preparando: A VONTADE DE PODER. Ensaio de tresvaloração de todos os valores). O que me interessa deixar aqui indicado é isto: também na esfera mais espiritual o ideal ascético continua encontrando, no momento, apenas um tipo de inimigo verdadeiro capaz de prejudicá-lo: os comediantes desse ideal — porque despertam desconfiança. Em toda outra parte onde o espírito esteja em ação, com força e rigor, e sem falseamentos, ele dispensa por completo o ideal — a expressão popular para essa abstinência é “ateísmo” —: excetuada a sua vontade de verdade. Mas essa vontade, esse resto de ideal, é, se me acreditam, esse ideal mesmo em sua formulação mais estrita e mais espiritual, esotérico ao fim e ao cabo, despojado de todo acréscimo, e assim não tanto resto quanto âmago. O ateísmo incondicional e reto (— e somente seu ar é o que respiramos, nós, os homens mais espirituais dessa época!) não está, portanto, em oposição a esse ideal, como parece à primeira vista; é, isto sim, uma das últimas fases do seu desenvolvimento, uma de suas formas finais e consequências internas — é a apavorante catástrofe de uma educação para a verdade que dura dois milênios, que por fim se proíbe a mentira de crer em Deus. (O mesmo desenvolvimento na Índia, em completa independência e por isso com algum valor de prova; o mesmo ideal levando ao mesmo fim; o ponto decisivo alcançado cinco séculos antes do calendário europeu, com Buda; mais precisamente, com a filosofia Sankhya, em seguida popularizada por Buda e transformada em religião.) O que, pergunta-se com o máximo rigor, venceu verdadeiramente o Deus cristão? A resposta está em minha Gaia ciência, § 357: “A própria moralidade cristã, o conceito de veracidade entendido de modo sempre mais rigoroso, a sutileza confessional da consciência cristã, traduzida e sublimada em consciência científica, em asseio intelectual a qualquer preço. Ver a natureza como prova da bondade e proteção de um Deus; interpretar a história para a glória de uma razão divina, como permanente testemunho de uma ordenação moral do mundo e de intenções morais últimas; explicar as próprias vivências como durante muito tempo fizeram os homens pios, como se fosse tudo previdência, tudo aviso, tudo concebido e disposto para a salvação da alma: isso agora acabou, isso tem a consciência contra si, as consciências refinadas o veem como indecoroso, desonesto, como mentira, feminismo, fraqueza, covardia — devemos a este rigor, se devemos a algo, o fato de sermos bons europeus e herdeiros da mais longa e corajosa autossuperação da Europa”… Todas as grandes coisas perecem por obra de si mesmas, por um ato de autossupressão: assim quer a lei da vida, a lei da necessária “autossuperação” que há na essência da vida — é sempre o legislador mesmo que por fim ouve o chamado: “patere legem, quam ipse tulisti” [sofre a lei que tu mesmo propuseste]. Desta maneira pereceu o cristianismo como dogma, por obra de sua própria moral; desta maneira, também o cristianismo como moral deve ainda perecer — estamos no limiar deste acontecimento. Depois que a veracidade cristã tirou uma conclusão após outra, tira enfim sua mais forte conclusão, aquela contra si mesma; mas isso ocorre quando coloca a questão: “que significa toda vontade de verdade?”… E aqui toco outra vez em meu problema, em nosso problema, meus caros, desconhecidos amigos (— pois ainda não sei de nenhum amigo!): que sentido teria nosso ser, senão o de que em nós essa vontade de verdade toma consciência de si mesma como problema?… Nesta gradual consciência de si da vontade de verdade — disso não há dúvida — perecerá doravante a moral: esse grande espetáculo em cem atos reservados para os próximos dois séculos da Europa, o mais terrível, mais discutível e talvez mais auspicioso entre todos os espetáculos… Genealogia da Moral Terceira dissertação 27

Ainda a procedência dos eruditos. — Querer preservar a si mesmo é expressão de um estado indigente, de uma limitação do verdadeiro instinto fundamental da vida, que tende à expansão do poder e, assim querendo, muitas vezes questiona e sacrifica a autoconservação. Veja-se como sintomático que alguns filósofos — por exemplo, Spinoza, que era tuberculoso — consideravam, tinham de considerar decisivo justamente o chamado instinto de autoconservação: eles eram, precisamente, homens em estado de indigência. O fato de nossas modernas ciências naturais terem de tal modo se enredado no dogma spinoziano (por último, e da forma mais grosseira, o darwinismo, com a doutrina incompreensivelmente unilateral da “luta pela existência” —) deve-se, é provável, à procedência da maioria dos investigadores da natureza: nesse aspecto eles são “do povo”, seus antepassados foram gente pobre e humilde, que conheceu muito de perto a dificuldade de seguir adiante. Todo o darwinismo inglês exala como que o ar sufocante do excesso populacional inglês, o odor de miséria e aperto da arraia-miúda. Mas um investigador da natureza deveria sair de seu reduto humano: e na natureza não predomina a indigência, mas a abundância, o desperdício, chegando mesmo ao absurdo. A luta pela existência é apenas uma exceção, uma temporária restrição da vontade de vida; a luta grande e pequena gira sempre em torno da preponderância, de crescimento e expansão, de poder, conforme a VONTADE DE PODER, que é justamente vontade de vida. Gaia Ciência LIVRO V 349

O que é bom? — Tudo que aumenta, no homem, a sensação de poder, a VONTADE DE PODER, o próprio poder. O que é mau? — Tudo que se origina da fraqueza. O que é felicidade? — A sensação de que o poder aumenta — de que uma resistência foi superada. Não o contentamento, mas mais poder; não a paz a qualquer custo, mas a guerra; não a virtude, mas a eficiência (virtude no sentido da Renascença, virtu, virtude desvinculada de moralismos). Os fracos e os malogrados devem perecer: primeiro princípio de nossa caridade. E realmente deve-se ajudá-los nisso. O que é mais nocivo que qualquer vício? — A compaixão posta em prática em nome dos malogrados e dos fracos — o cristianismo… O Anticristo II AO MISTRAL

Denomino corrompido um animal, uma espécie, um indivíduo, quando perde seus instintos, quando escolhe, quando prefere o que lhe é nocivo. Uma história dos “sentimentos elevados”, dos “ideais da humanidade” — e é possível que tenha de escrevê-la — praticamente explicaria por que o homem é tão degenerado. A própria vida apresenta-se a mim como um instinto para o crescimento, para a sobrevivência, para a acumulação de forças, para o poder: sempre que falta a VONTADE DE PODER ocorre o desastre. Afirmo que todos os valores mais elevados da humanidade carecem dessa vontade — que os valores de decadência, de niilismo, agora prevalecem sob os mais sagrados nomes. O Anticristo VI AO MISTRAL

Uma crítica da concepção cristã de Deus conduz inevitavelmente à mesma conclusão. — Uma nação que ainda acredita em si mesma possui seu próprio Deus. Nele são honradas as condições que a possibilitam sobreviver, suas virtudes — projeta o prazer que possui em si mesma, seu sentimento de poder, em um ser ao qual pode agradecer por isso. Quem é rico lhe prodigaliza sua riqueza; uma nação orgulhosa precisa de um Deus ao qual pode oferecer sacrifícios… A religião, dentro desses limites, é uma forma de gratidão. O homem é grato por existir: para isso precisa de um Deus. — Tal Deus precisa ser tanto capaz de beneficiar quanto de prejudicar; deve ser capaz de representar um amigo ou um inimigo — é admirado tanto pelo bem quanto pelo mal que causa. Castrar esse Deus, contra toda a natureza, transformando-o em um Deus somente bondade, seria contrário à inclinação humana. A humanidade necessita igualmente de um Deus mau e de um Deus bom; não deve agradecer por sua própria existência à mera tolerância e à filantropia… Qual seria o valor de um Deus que desconhecesse o ódio, a vingança, a inveja, o desprezo, a astúcia, a violência? Que talvez nem sequer tenha experimentado os arrebatadores ardeurs da vitória e da destruição? Ninguém entenderia tal Deus: por que alguém o desejaria? — Sem dúvida, quando uma nação está em declínio, quando sente que a crença em seu próprio futuro, sua esperança de liberdade estão se esvaindo, quando começa a enxergar a submissão como primeira necessidade e como medida de autopreservação, então precisa também modificar seu Deus. Ele então se torna hipócrita, tímido e recatado; aconselha a “paz na alma”, a ausência de ódio, a indulgência, o “amor” aos amigos e aos inimigos. Torna-se um moralizador por excelência; infiltra-se em toda virtude privada; transforma-se no Deus de todos os homens; torna-se um cidadão privado, um cosmopolita… Noutros tempos representava um povo, a força de um povo, tudo que em suas almas havia de agressivo e sequioso de poder; agora é simplesmente o bom Deus… Na verdade não há outra alternativa para os Deuses: ou são a VONTADE DE PODER — no caso de serem os Deuses de uma nação — ou a inaptidão para o poder — e neste caso precisam ser bons. O Anticristo XVI AO MISTRAL

Onde quer que, por qualquer forma, a VONTADE DE PODER comece enfraquecer, haverá sempre um declínio fisiológico concomitante, uma décadence. A divindade dessa décadence, despida de suas virtudes e paixões masculinas, é convertida forçosamente em um Deus dos fisiologicamente degradados, dos fracos. Obviamente, eles não se denominam os fracos; denominam-se “os bons”… Nenhuma explicação é necessária para se entender em quais momentos da História a ficção dualista de um Deus bom e um Deus mau se tornou possível pela primeira vez. O mesmo instinto que leva os inferiores a reduzir seu próprio Deus à “bondade em si” também os leva a eliminar todas as qualidades do Deus daqueles que lhes são superiores; vingam-se demonizando o Deus de seus dominadores. — O bom Deus, assim como o Diabo — ambos são frutos da décadence. — Como podemos ser tão tolerantes com o simplismo dos teólogos cristãos, aceitando sua doutrina de que a evolução do conceito de Deus a partir do “Deus de Israel”, o Deus de um povo, ao Deus cristão, a essência de toda a bondade, significa um progresso? — Mas até Renan o fez. Como se Renan tivesse o direito ao simplismo! O contrário, na realidade, é o que se faz ver. Quando tudo que é necessário à vida ascendente; quando tudo que é forte, corajoso, imperioso e orgulhoso foi amputado do conceito de Deus; quando se degenerou progressivamente até tornar-se uma bengala para os cansados, uma tábua de salvação aos que se afogam; quando vira o Deus dos pobres, o Deus dos pecadores, o Deus dos incapazes par excellence, e o atributo de “salvador” ou “redentor” continua como o atributo mais essencial da divindade — qual é a significância de tal metamorfose? O que implica tal redução do divino? — Sem dúvida, com isso o “reino de Deus” cresceu. Antigamente, tinha somente seu povo, seus “escolhidos”. Mas desde então saiu perambulando, assim como seu próprio povo, a territórios estrangeiros; desistiu de acomodar-se; e finalmente passou a sentir-se em casa em qualquer lugar, esse grande cosmopolita — até agora possui a “grande maioria” ao seu lado, e metade da Terra. Mas esse Deus da “grande maioria”, esse democrata entre os Deuses, não se tornou um Deus pagão orgulhoso: pelo contrário, continua um judeu, continua um Deus das esquinas, um Deus de todos os recantos e gretas, de todos lugares insalubres do mundo!… Seu reino na Terra, agora, assim como sempre, é um reino do submundo, um reino subterrâneo, um reino-gueto… Ele mesmo é tão pálido, tão fraco, tão décadent… Até o mais pálido entre os pálidos é capaz de dominá-lo — os senhores metafísicos, os albinos do intelecto. Esses teceram teias ao seu redor por tanto tempo que finalmente o hipnotizaram, o transformaram em aranha, em mais um metafísico. E então retornou mais uma vez ao seu velho serviço de tecer o mundo a partir de sua natureza interior sub specie Spinozae; após isso se transformou em algo cada vez mais tênue e pálido — tornou-se o “ideal”, o “puro espírito”, o “absoluto”, a “coisa em si”… O colapso de um Deus: ele converte-se na “coisa em si”. O Anticristo XVII AO MISTRAL

– Entre minhas obras o meu Zaratustra ocupa um lugar à parte. Com ele dei à humanidade o maior presente que lhe foi dado até hoje. Esse livro, com sua voz que será ouvida ainda em milênios, não é apenas o livro mais alto que existe, o livro que traz o verdadeiro ar das alturas – o fato “homem”, como um todo, se encontra numa distância monstruosa abaixo dele –, ele é também o mais profundo, que veio ao mundo da riqueza mais profunda da verdade, uma fonte inesgotável para a qual nenhum balde desce sem voltar a subir carregado de ouro e bondade. Ali não fala nenhum “profeta”, nenhum desses híbridos horríveis de enfermidade e VONTADE DE PODER, aos quais se chama de fundadores de religiões. Antes de tudo a gente tem de ouvir corretamente o tom que sai dessa boca, esse tom alciônico, a fim de não cometer injustiças lastimáveis com o sentido de sua verdade. “As palavras mais calmas são aquelas que trazem a tempestade, pensamentos que se aproximam em passos de pomba dirigem o mundo…” Ecce Homo Prólogo 4

Do interior dessa obra fala uma esperança colossal. Ao fim e ao cabo, falta-me qualquer motivo para retirar a esperança em um futuro dionisíaco da música. Lancemos um olhar um século à frente, suponhamos que meu atentado a dois séculos de antinatureza e violação do homem tenha sucesso… Esse novo partido da vida, que irá tomar nas mãos a maior dentre todas as atividades, a educação elevada da humanidade, incluída a aniquilação implacável de tudo aquilo que é degenerado e parasitário, haverá de voltar a tornar possível sobre a terra aquele excesso de vida, do qual também terá de voltar a crescer e vigorar o estado dionisíaco. Eu prometo uma época trágica: a arte mais elevada de dizer-sim à vida, a tragédia, haverá de voltar a renascer, quando a humanidade tiver atrás de si a consciência das guerras mais duras, mas mais necessárias, sem sofrer por causa disso… Um psicólogo ainda poderia acrescentar que aquilo que em anos recentes fez parte da música de Wagner não tem absolutamente nada a ver com Wagner; que se eu descrevi a música dionisíaca, eu apenas descrevi aquilo que eu ouvi – que eu tinha de traduzir e transfigurar tudo no novo espírito que eu trazia dentro de mim… A prova para tanto, tão forte quanto apenas uma prova pode ser, é minha obra “Wagner em Bayreuth”: em todas as partes decisivas e psicológicas ela fala apenas de mim – pode-se, sem a menor consideração, colocar o meu nome ou a palavra “Zaratustra” onde o texto menciona a palavra Wagner. Toda a imagem do artista ditirâmbico é a imagem do poeta preexistente do “Zaratustra”, insinuado com uma profundeza abismal e sem tocar a realidade wagneriana por um instante que seja. O próprio Wagner chegou a compreendê-lo assim; ele não se reconheceu mais nessa obra… Do mesmo modo “o pensamento de Bayreuth” havia se transformado em algo que ao conhecedor do meu Zaratustra não haverá de ser nenhum conceito enigmático: naquela tarde grandiosa, na qual os maiores dentre os eleitos se consagram à maior dentre todas as tarefas – quem sabe? a visão de uma festa que eu ainda haverei de vivenciar… O páthos das primeiras páginas é histórico-universal; o olhar, do qual se fala na sétima página, é, na verdade, o olhar-de-Zaratustra: Wagner, Bayreuth, toda a pequena miséria alemã é apenas uma nuvem, na qual se reflete a fata morgana infinita do futuro. Até mesmo no que diz respeito aos aspectos psicológicos, todos os traços mais decisivos da minha própria natureza estão marcados na de Wagner – o paralelismo das forças mais luminosas e funestas, a VONTADE DE PODER, assim como homem algum jamais a possuiu, a bravura insolente no espiritual, a força ilimitada de aprender sem que com isso a vontade para a ação seja sufocada… Tudo está anunciado por antecipação nessa obra: a proximidade do retorno do espírito grego, a necessidade de contra-Alexandres, que voltem a atar o nó górdio da cultura grega depois de ele ter sido desfeito… Escute-se o tom histórico-universal com o qual é encaminhado o conceito “mentalidade trágica”, na página 30: há apenas tons puramente histórico-universais nessa obra. Essa é a “objetividade” mais estranha que pode existir: a absoluta certeza acerca do que eu sou se projeta sobre uma realidade qualquer e casual – a verdade sobre mim falou de uma profundeza assustadora. Na página 71 o estilo de Zaratustra é descrito com uma certeza cortante e antecipado de vez; e jamais alguém haverá de achar uma expressão mais grandiosa para o acontecimento Zaratustra – o ato de uma purificação colossal e da consagração da humanidade – do que a que foi encontrada entre as páginas 43 e 46… Ecce Homo O nascimento da tragédia 4

No fundo são duas as negações que a minha palavra imoralista encerra em si. Por um lado eu nego um tipo de homem que até agora foi tido como o mais elevado, o bom, o benévolo, o benéfico; por outro lado eu nego uma espécie de moral que alcançou vigência e domínio como moral em si – a moral de décadence, falando de um modo mais concreto, a moral cristã. Seria legítimo ver a segunda contestação como a mais decisiva, uma vez que a superestimação da bondade e da benevolência já me parece ser, vista por alto, um resultado da décadence, um sintoma de fraqueza, incompatível com uma vida ascendente e afirmativa: negar e aniquilar são condições no ato de afirmar… – Detenho-me inicialmente na psicologia do homem bom. Para estimar o que vale um tipo de homem, tem de se calcular o preço que custa sua preservação – tem de se conhecer as condições de sua existência. A condição de existência dos bons é a mentira… Expresso de maneira diferente: o não-querer-ver, a toda custa, como a realidade é constituída no fundo, ou seja, não de modo a admitir, a toda hora, a interferência de mãos míopes e bondosas. Considerar os estados de emergência de toda a espécie como objeção, como algo que é preciso abolir, é a niaiserie par excellence, vista por alto uma verdadeira desgraça em suas consequências, uma fatalidade de estupidez – quase tão estúpida quanto seria a vontade de abolir o mau tempo – por compaixão aos pobres, digamos… Na grande economia do todo, os horrores da realidade (nas emoções, nas cobiças, na VONTADE DE PODER) são incalculavelmente mais necessários do que aquela forma da pequena felicidade, a assim chamada “bondade”; é preciso até mesmo ser indulgente para chegar a conceder a esta última um lugar que seja, pois ela é condicionada pelo caráter mentiroso do instinto. Eu terei uma grande oportunidade para demonstrar as consequências desmedidamente funestas do otimismo, esse rebento dos homines optimi, para toda a história. Zaratustra, o primeiro a compreender que o otimista é tão décadent quanto o pessimista, e talvez mais daninho do que ele, diz: homens bons jamais falam a verdade. Falsos portos e certezas ensinaram-vos os bons; nas mentiras dos bons fostes nascidos e mantidos. Tudo foi distorcido e mentido até o âmago pelos bons. Por fortuna o mundo não foi construído sobre instintos, de modo que apenas os bondosos animais de rebanho nele achassem sua estreita fortuna; exigir que tudo se tornasse “bom homem”, animal de rebanho, de olho azul, benévolo, “bela alma” – ou, conforme deseja o senhor Spencer, altruísta – significaria privar a existência de seu grande caráter, castrar a humanidade e reduzi-la a uma mísera chinesice… E isso se tentou fazer!… Exatamente a isso que se chama moral… Neste sentido Zaratustra chama os bons ora de “os últimos homens”, ora de “princípio do fim”; e sobretudo ele os sente como a espécie mais nociva de homens, porque impõem sua existência tanto às custas da verdade quanto às custas do futuro. Ecce Homo Por que eu sou um destino 4


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