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Nietzsche (VP:584) – Dogmatismo

terça-feira 19 de novembro de 2024, por Cardoso de Castro

  

A errância da filosofia repousa no fato de que, em vez de se ver na lógica e nas categorias da razão um meio de preparação do mundo para fins de utilidade (portanto, “no que concerne aos princípios”, para uma falsificação útil), acreditou-se ter nelas o critério da verdade, respectivamente da realidade [Realität]. O “critério da verdade” foi de fato meramente a utilidade biológica de um tal sistema de falsificação de princípio: e porque uma espécie de animal não conhece nada mais importante do que se conservar, então poderia, de fato, falar-se aqui de “verdade”. A ingenuidade foi tomar-se a idiossincrasia antropocêntrica como medida das coisas, como fio condutor sobre o “real” [“real”] e “irreal” [“unreal”]: em suma, absolutizar uma condicionalidade. E agora foi o próprio mundo que despencou, de uma só vez, cindido em um mundo verdadeiro e um “aparente”: e justamente o mundo no qual o homem havia inventado a razão, para habitá-lo e para nele instalar-se, justamente esse mundo tornou-se-lhe desacreditado. Em vez de usar as formas como oportunidade de fazer o mundo manuseável e calculável para si, a louca acuidade dos filósofos descobriu que nessas categorias estava dado o conceito daquele mundo, ao qual o outro mundo, este em que se vive, não corresponde... Os meios foram deturpados em medida de valor, e mesmo em condenação da intenção...

A intenção foi a de iludir-se de maneira útil: os meios para isso foram a invenção de fórmulas e sinais, com cuja ajuda se reduzia a embaralhada multiplicidade a um esquema conforme aos fins e manuseável.

Mas, oh!, punha-se agora em jogo uma categoria-moral: nenhum ser quer enganar-se, nenhum ser pode enganar — consequentemente, há apenas uma vontade de verdade. O que é “verdade”?

O princípio da não contradição deu o esquema: o mundo verdadeiro, para o qual se busca o caminho, não pode estar em contradição consigo, não pode mudar, não pode devir, não tem nenhuma origem e nenhum fim.

Este é o maior erro que foi cometido, a fatalidade propriamente dita do erro sobre a Terra: acreditava-se ter um critério da realidade [Realität] nas formas da razão, enquanto se as tinha para assenhorar-se da realidade, para entender-se mal, de uma forma astuta, a realidade [Realität]...

E, veja o que aconteceu: agora o mundo tomou-se falso, e exatamente em virtude das propriedades que constituem sua realidade [Realität]: mudança, devir, multiplicidade, oposição, contradição, guerra. — E agora estava aí toda a fatalidade:

1. Como libertar-se do mundo falso, do mundo meramente aparente? (– ele era o mundo real [wirkliche], o único);

2. como nós mesmos nos tomamos, o mais possível, a oposição ao caráter do mundo aparente? (conceito do ser perfeito como o de uma oposição a todo ser real [real], mais claramente, como contradição em relação à vida...)

3. toda a direção dos valores estava no sentido da difamação da vida;

4. criou-se uma confusão do dogmatismo ideal com o conhecimento em geral: de modo que o partido contrário sempre repudiava também a ciência.

O caminho para a ciência foi, assim, duplamente obstruído: uma vez pela crença no mundo verdadeiro e depois pelos opositores dessa crença.

A ciência da natureza e a psicologia foram 1. condenadas em seus objetos; 2. despojadas de sua inocência...

No mundo real [wirklich], no qual absolutamente tudo está encadeado e condicionado, condenar alguma coisa e eliminá-la pelo pensamento quer dizer tudo eliminar pelo pensamento e tudo condenar.

O dito “isso não devia ser”, “isso não deveria ter havido” é uma farsa... se se pensarem até o fim as consequências, então se arruina a fonte da vida se se quer eliminar o que, em qualquer sentido, é prejudicial, destrutivo. Isso é mais bem demonstrado pela fisiologia!

Vemos como a moral a) envenena toda a concepção de mundo, b) corta o caminho para o conhecimento, para a ciência, e) dissolve e mina todos os instintos reais [wirkliche] (à medida que ensina a sentir suas raízes como imorais).

Vemos um terrível instrumento da décadence trabalhar diante de nós, o qual se mantém com os mais santos nomes e gestos.

Automeditação imensa: tornar-se consciente de si não como indivíduo, mas como humanidade. Lembremo-nos [Besinnen wir uns], pensemos retroativamente: percorramos os caminhos pequenos e grandes!


Ver online : Friedrich Nietzsche


NIETZSCHE, Friedrich. A Vontade de Poder. Tr. Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011, §584