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Coomaraswamy: Buda - Pregação Discípulos

terça-feira 30 de abril de 2024

  

Buda encaminhou-se primeiro ao Parque das Gazelas, em Benares, junto dos cinco que tinham sido seus primeiros discípulos. Ele lhes pregou a doutrina do Caminho do meio, entre os dois extremos do hedonismo e da mortificação; a doutrina da submissão ao sofrimento, inerente a todos os seres nascidos e que é necessário extirpar a causa — isto é, o desejo apetitivo (baseado na ignorância da natureza verdadeira de todas as coisas desejáveis) — para curar os sintomas; e a doutrina do "caminhar com Brahma" que leva ao fim de todo o sofrimento. E enfim ele lhes ensinou a doutrina da libertação que resulta de uma compreensão perfeita, da experiência vivida desta proposição: de cada uma e de todas as partes componentes desta individualidade psico-física sempre mutável que os homens chamam seu Eu, seu Ego, é preciso dizer "Isto não é meu Eu" (na me so atta) — proposição que, apesar do rigor lógico de seus termos, tem sido frequentemente mal compreendida, como se ela implicasse que "não existe o Eu". Os cinco monges-mendicantes atingiram a Iluminação, e já haveria daí por diante seis Arahants neste mundo. Quando o número de Arahants "libertos de todos os laços humanos ou divinos" se elevou a sessenta e um, Buda enviou-os a pregar a Lei Eterna e o Caminhar com Brahma; ele lhes deu plenos poderes para receber e ordenar outros; assim nasceu a Comunidade (sangha), a Ordem dos Mendicantes budistas, composta de homens que tinham abandonado ((Este abandono é literalmente uma partida para o exílio (pabhaja); os budistas pensam, como Mestre Eckhart  , que as pobres almas que permanecem em slua família para servir a Deus, estão em erro "e jamais terão a força de buscar e ganhar aquilo que cabe a outros que seguiram Cristo na pobreza e no exílio".)) a vida de família e "tomado refúgio em Buda, a Lei eterna, e a Comunidade".

Dirigindo-se de Benares a Uruvela, Buda encontrou um grupo de jovens que excursionavam em companhia de suas esposas. Um deles, que não era casado, tinha levado sua amante, mas esta tinha fugido levando objetos que pertenciam a este moço. Todos a procuravam e perguntaram a Buda se ele a vira. Buda respondeu: "Que achais? Não faríeis melhor procurando o Eu (attanam gaveseyyatha) em vez da mulher?" (Vinaya — Pitaka. I, 23 cf.. Vis. 393.) Esta resposta, aceita por estes moços que logo se fizeram discípulos do Mestre, é de uma extrema importância para nos fazer compreender a doutrina budista da renúncia de si mesmo. Vemos aí esse mesmo sábio que acabara de aniquilar o seu eu, recomendar a outro procurar o Eu: contradição aparente que se resolve se fazemos uma nítida distinção entre os dois Eu em questão: um que é necessário aniquilar, outro que é preciso cultivar.

Em Uruvela, Buda morou algum tempo no eremitério de uma escola de brâmanes   adoradores do Fogo, e ali fez dois milagres memoráveis: um o de vencer e domar a Serpente furiosa (ahi-naga) que vivia no Templo do Fogo; outro, o de rachar lenha e de acender o fogo dos brâmanes que não o podiam fazer convenientemente; e isto por suas faculdades sobrenaturais (iddhi). Em consequência, o mestre dos brâmanes, Kassapa, e todos os seus quinhentos discípulos, resolveram "caminhar com Brahma" sob a direção de Buda, que os admitiu em sua ordem.

Buda continuou seu caminho para Gayaslsa, acompanhado de todos os que eram des4e então seus discípulos, em número de mil. Ali ele pregou o célebre sermão sobre o Fogo. Todas as sensações e todos os órgãos sensíveis (por exemplo, a língua e sua gustação, o espírito e seus pensamentos) estão em fogo: o fogo do apetite, do ressentimento, da ilusão (rago, doso, moho); nascimento, da idade, da morte e da dor. É um sermão que esclarece particularmente a natureza do [wiki]Nibbana[/wiki] ("o expirar") no sentido fundamental da palavra: a "extinção" destes fogos que, ao mesmo tempo que a "individualidade" empírica (atta sambhava) da qual eles são o "porvir" (bhava), cessam de "puxar" desde que eles não mais são alimentados com combustível. Oferece também um interesse particular, pelo fato de sua grande analogia com Samyutta Nikaya Tiago, III, 6, onde "a língua é um fogo... e incendeia a roda do porvir" (te trokos tes geneseos), exatamente como no contexto budista "a língua está em fogo (jivha aditta) e a vida é a roda do porvir (bhavocakka). No texto do Novo Testamento  , estas fórmulas são provavelmente de origem órfica mais do que budista, mas talvez tenham elas, tanto de um lado como do outro, uma origem comum ainda mais antiga. Buda foi em seguida a Rajagaha onde pregou perante o rei Bimbisara de Magadha, e uma assembleia de brâmanes e de "chefes de família", não sem ter antes convidado Kasksapa de Uruvela a explicar porque tinha abandonado seus ritos do fogo. Kassapa tendo prestado seu testemunho, Buda pregou, e toda a assistência obteve "a visão da Lei Eterna", isto é, compreendeu que "tudo que teve um início deve também ter um fim". Não devemos esquecer que esta fórmula, tão simples na aparência, e que é ainda mais conhecida sob a seguinte forma:

De tudo que teve uma origem causal, Aquele que achou a Verdade mostrou a causa;
E de todas estas coisas, o Grande Asceta igualmente explicou a cessação (Vinaya — Pitaka. I, 41, etc.)

é de fato, um autêntico resumo da doutrina de Buda, e um meio suficiente (se se resolveu pôr em prática tudo o que está implicado nesta proposição) para atingir a Imortalidade e pôr fim a todo o sofrimento. É escusado dizer que ela se aplica em primeiro lugar à compreensão e à extirpação das causas do "porvir" em todos os males mortais que herda a "individualidade" passiva. O desaparecimento do desejo, do ressentimento e da ilusão, a interrupção do "porvir" que dela resulta, são a mesma coisa que a Extinção e a Imortalidade, a última beatitude (Samyutta Nikaya II 117; IV, 251; v, 8; Suttanipata. 1095).

Durante suas viagens, Buda voltou à sua cidade natal Kapilavatthu; seguido de um bando de Arahants mendigos, esmolou alimento nas ruas e foi visto das janelas do palácio pela mãe de Rahula. Aos protestos de seu próprio pai, Buda respondeu que tal havia sido a prática constante dos Budas do passado. Suddhodana fez-se seu discípulo leigo, e sobre seu leito de morte tornou-se Arahant, sem jamais ter abandonado a vida de chefe de família. Entretanto, Buda, seguido de seus dois principais discípulos, Sariputta e Mogallana, enquanto o rei levava sua tigela de esmolas, fazia uma visita à mãe de Rahula. Ela se aproximou dele, apertou com as mãos o seu tornozelo e prostrou a cabeça em seus pés; e o rei, lhe contou que tendo sabido que seu esposo tinha revestido a túnica amarela, ela tinha feito o mesmo e não tomava mais que uma única refeição por dia e seguia todas as regras da vida de Buda. Ela mandara seu filho Rahula procurar seu pai, encarregando-o de reclamar sua herança, pois ele era agora o herdeiro do trono. Mas Buda disse a Sariputta: "Dá-lhe a ordenação dos monges", o que foi feito; e foi assim que Rahula recebeu uma herança espiritual. Mas Suddhodana, muito zangado, disse a Buda: "Quando tu abandonaste a vida mundana, causaste uma dor cruel; o mesmo acontece hoje que Rahula ifaz o mesmo. O amor de um filho fura a pele, penetra até a medula. Promete-nos que no futuro nenhuma criança possa receber as ordens sem o consentimento de seu pai e de sua mãe". Buda consentiu.

[Ananda Coomaraswamy   — O Pensamento Vivo de Buda  ]


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