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Barbuy: Da negação verbal do ser
quarta-feira 6 de outubro de 2021, por
As preocupações do pensamento posterior a Kant foram de ordem fenomênica, não de ordem ontológica. Desde que o fenomenismo, com a exclusão teórica do ser substancial se instaura no seio mesmo da filosofia contemporânea, marcada pelo subjetivismo, não tarda que o sujeito do conhecimento se negue verbalmente pelo seu próprio objeto, sendo assim o fenomenismo subjetivo sucedido pelo fenomenismo pseudo-objetivo.
O espírito científico-naturalista, o qual é tanto uma negação da inteligência quanto o irracionalismo, começa por negar o objeto da inteligência, que é a estrutura ôntica da realidade, declarando a homogeneidade dos seres e afirmando que compreender não é nada mais do que explicar um fenômeno pelas suas causas próximas, isto é, explicar um fenômeno por outro fenômeno, sem a necessária lógica para chegar à conclusão final de que uma causa inicial não pode deixar de ser admitida, a qual, por não ser ela própria fenômeno, tem que ser Nômeno, Causa Primeira, Ser Absoluto. À admissão de que essa Causa Primeira se impõe ao pensamento chegou o relativismo de Einstein [1], segundo o qual o mundo não se explicaria sem o impulso de ruptura do equilíbrio inicial absoluto, isto é, sem o ato criador.
Entretanto, o fenomenismo absoluto, querendo explicar o vir-a-ser sem a admissão da existência dos seres e do Ser — explicar a mudança sem admitir a existência da cousa que muda — dirá que a determinação do ser se dá unicamente pela sucessão regular dos fenômenos no tempo (tempo evidentemente matemático, não tempo real.) Com esta teoria, se incorre no absurdo em que caiu Büchner de querer explicar os fenômenos pela sua sucessão.
Toda negação do ser substancial padece dessa contradição interna, cujo tipo comum consiste geralmente num sofisma de lógica, pelo qual se realiza uma abstração, i.é, pelo qual se toma o ser de razão por um ser de realidade. Como a negação dos seres e em última análise do Ser é impensável, toda negação dos seres e do Ser não passa de verbalismo e encerra necessariamente a afirmação do que nega, sem o que nem o pensamento seria possível, porque do nada, nada se predica. O fenomenismo subtrai artificialmente o ser de seus juízos, enquanto na realidade esses juízos mesmos implicam a afirmação do que subrepticiamente negaram, e isto com a mesma persistência com que, num período “sem verbos”, todos os verbos permanecem, mas apenas ocultos, em vez de claramente expressos. A negação do ser é uma contradictio in se.
Ora, a realização da abstração, ou seja, a concretização artificial do abstrato é o processo comum da negação dos seres e do Ser. Os fenomenismos negam os seres e o Ser, constituindo um desesperado esforço para pensar com a Razão contra a Inteligência e seus princípios. As teorias fenomenistas negam os seres e o Ser, mas falam depois da abstração espaço, da abstração tempo, da abstração instinto, da abstração natureza, como de causas reais, como de seres realmente existentes e não como de abstrações racionais. Foi assim que Taine, negando a existência do Ser, falou depois do axioma eterno que se pronuncia a si mesmo no éter luminoso e inacessível. Se este “axioma eterno” não é o ser, que se diga então o que é. Foi assim que Renan falou do Tempo como de um soberano fator do universal devir. Se este “soberano fator” não é o ser, que se diga então o que é. É ainda assim que os materialistas dialéticos falam da produção econômica, da técnica como determinantes da história da sociedade, da sua estrutura, da sua religião, das suas filosofias, etc. Se esta “forma da produção”, se esta “técnica” não são abstrações realizadas, não se vê o que possam ser. Essas correntes do pensamento, primeiro negam o Ser, negando por exemplo Deus, mas depois tratam a Natureza, o Espaço, o Tempo, a forma da produção econômica, a técnica, a luta de classes e outras abstrações, como verdadeiros seres concretos, colocando-as no lugar do Ser que negaram.
Toda negação do ser é meramente verbal, implica uma afirmação do que nega. Neste verbalismo negativo incorre Hegel quando encontra como princípio do mundo “o desenvolvimento da Ideia”, o que representa uma dupla contradição, porque inicialmente Hegel quer explicar a existência da Ideia pelo seu desenvolvimento (o qual já supõe a Ideia existente) e em seguida realiza uma abstração tomando como concreto o ser puramente abstrato da Ideia.
Foi a realização da abstração, a confusão entre o concreto e o abstrato, entre o pensamento e a matéria, entre a essência e a existência, que produziu a negação da metafísica pelo pensamento positivo-materialista. Limitando-se ao domínio da experiência e dos fatos, do como das cousas, e rejeitando a indagação da sua realidade substancial e do seu porque, o positivismo representa o puro fenomenismo, ao qual frequentemente se dá o nome de relativismo. Um fenomenismo absoluto, do qual vem em linha reta o fenomenismo subjetivista de Taine. O que nos pretende ensinar o fenomenismo absoluto, segundo uma conhecida fórmula é que: “Não há senão aparências, que não são aparências de cousa alguma e que aparecem a um ego, o qual não é ele mesmo senão uma aparência, que não é aparência de ninguém”. — Pois que somente as aparências da realidade nos aparecem e não os seres em si mesmos (que a inteligência atinge, mas não os sentidos), conclui-se que somente as aparências existem e não os seres. A este respeito, a primeira consideração que se impõe é a seguinte: se somente as aparências aparecem, de duas uma: ou bem essas aparências são as aparências de alguma cousa, ou bem essas aparências são aparências de nada e neste caso não há nada senão as aparências; mas no entanto, as aparências têm que ser alguma cousa, porque no mínimo são aparências, e como aparências, são; e desta maneira as aparências tomam aqui o lugar do ser que foi verbalmente negado. — De fato, todo fenomenismo subjetivo, afirmando que a realidade não é nada mais que um conjunto de aparências, afirma implicitamente o ser, denominando-o aparência. E por outro lado, todo fenomenismo positivo ou relativismo, afirmando que não há senão fatos e relações, não pode negar que esses fatos se referem a alguma cousa e que essas relações são relações entre cousas. O aspecto “fáctico” e o aspecto relativo, se predicam do que? Do nada ou do ser?
Toda negação do ser contradiz o princípio de identidade que nos ensina que quod est, est, quod non est, non est [2]. Este princípio da inteligência foi enunciado na antiguidade primeiramente por Parmênides refutando o fenomenismo de Heráclito , para o qual nada é, tudo está sempre vindo a ser, não havendo outra realidade senão a perpétua mudança; pelo que, dizia Heráclito que nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio; a isto acrescentava Crátilo que nem sequer uma única vez nos banhamos no mesmo rio, porque nós também não somos, estamos sempre sendo, tudo está passando, nada é, segundo a fórmula conhecida de Heráclito, panta rei.
Dentre os pensadores contemporâneos nenhum exprimiu com mais veemência o fenomenismo absoluto do que Bergson , cuja poderosa crítica das pretensões da ciência, longe de constituir em sua obra um retorno à inteligência na sua amplitude e portanto à afirmação do ser substancial, constitui, ao contrário, o caminho para a afirmação do irracionalismo e da negação do ser pelo vir-a-ser. Afirmar a mudança e negar a existência da cousa que muda, tal a atitude do fenomenismo. Ou seja, repetindo, afirmar o vir-a-ser, negando o ser. — De fato, a durée bergsoniana é a realidade mesma e o tempo constitui l’étoffe même des choses. Diz claramente Bergson: Il y a des changements, mais il n’y a pas de choses qui changent: le changement na pas besoin d’un support. Il y a des mouvements, mais il n’y a pas nécessairement des objets invariables qui le meuvent, le mouvement n’implique pas un mobile [3].
Toda a filosofia bergsoniana tende a demonstrar que a noção de ser, de substância, não sendo mais do que um conceito intelectual, não passa também de um conceito puramente utilitário, pragmático, sendo a inteligência um produto da evolução, criado para agir e não para especular. A noção de ser, os conceitos de potência e ato, matéria e forma, substância e acidente, todos os transcendentais e os universais, nada mais são no bergsonismo do que invenções utilitárias da inteligência, cujo fim é imobilizar o fluente para melhor agir sobre a matéria, subtraindo-nos ainda a possibilidade de penetrar os movimentos interiores do espírito, o mistério do Tempo como duração viva, a interpenetração e a continuidade do fluxo vital. Segundo o bergsonismo esses conceitos ontológicos não nos permitirão jamais penetrar o curso incessante do élan vital, porque são conceitos nascidos da concepção estática do ser, quando o ser nem sequer é uma realidade, não havendo nada que seja e sendo toda realidade constituída pelo movimento e pelo vir-a-ser. — Assim é que Bergson acusa o pensamento intelectual de nos induzir a criar fórmulas vazias com o fim de termos um quadro onde situar as utilitárias e falsas explicações conceptuais da realidade fluente.
Assim as ideias intelectuais do ser e do absoluto, nada mais seriam do que conceitos elaborados por um “pensamento de fabricação”. O fluxo vital, que é mudança, será então explicado aristotelicamente por esse “pensamento de fabricação”, por meio da noção de substância que suporta a mudança, sem mudar ela mesma. — Assim no bergsonismo, a inteligência é uma faculdade fascinada pelo estático, pelo imóvel, e confunde a divisibilidade com o movimento reconstituído de uma série de passagens imobilizadas; uma série de quadros imóveis, postos mecanicamente em movimento, nos dão a ilusão do movimento mesmo, mas é um movimento falsificado na sua interioridade, como o movimento dos quadros duma tela de cinema. E esse movimento que a inteligência não capta é a realidade mesma da vida no seu incessante devenir [4].
Ora, por admirável que seja a obra de Bergson, cuja crítica ao racionalismo físico-matemático e aos abusos da ciência quantitativa inteiramente aceitamos, não se pode deixar de considerar que a linha anti-ontológica da filosofia bergsoniana, com a sua negação verbal do ser, constitui o seu ponto mais vulnerável. Há na teoria bergsoniana do vir-a-ser contínuo uma contradição, gerada pela admissão da mudança com a rejeição da existência da substância do que muda. E Bergson, demonstrando a excelência da intuição e a miséria da inteligência, pensa inteligentemente, e a inteligência não pensa sem o ser. De fato, Bergson, substancializa o devenir e a duração, que se tornam os suportes da mudança. Si le changement n’est pas tout, il n’est rien,. . . le changement est réel. . . constitutif de toute réalité — e mais — le changement est la substance même des choses.
Nem é necessário insistir aqui sobre o fato de que a mudança ocupa, como o diz claramente Bergson, o lugar do ser substancial, verbalmente eliminado do vir-a-ser. A mudança bergsoniana est ce qu’il peut y avoir au monde de plus substantiel et de plus durable.
Por isso, o ser mudança, o ser devenir, o ser tempo suportam o vir-a-ser bergsoniano, sem o que este último seria impensável. Retorna-se assim à doutrina ontológica da potência e do ato e do vir-a-ser explicado pelo ser substancial e nele apoiado. Como na teoria bergsoniana, todo fenomenismo supõe a afirmação do ser que nega.
Só na ontologia realista o ser é afirmado ao mesmo tempo como ser e como vir-a-ser, como substância e como acidente, como potência e como ato, como essência e como existência [5]. — Assim não pode haver mais no vir-a-ser do que no ser, como dá a entender a teoria do puro devenir, do mundo se faisant que rejeita o mundo tout jait. — Todo ato é recebido numa essência como existência e vem a ser dentro duma potência. Só o Ato Puro é actus irreceptus et irreceptivus. Mas fora do Ato Puro, que é o Ser Absoluto et qui habet existentiam suam vi essentia sua, todos os seres mutáveis, todas as substâncias finitas são perfectíveis e o seu devenir supõe precisamente o seu ser. Nada há no universo dos seres finitos que não tenha esse elemento potencial, indefinidamente perfectível pelo ato. — Se a primeira impressão que nos oferece a realidade tangível — a primeira capa da realidade — é a da perpétua mudança, exatamente por isso a potência e o ato são os primeiros elementos constitutivos de todo ser mutável. Nem os seres poderiam ser mutáveis, se não permanecessem, mudando, porque já então não seriam os mesmos seres e sim outros seres. Esta permanência do ser, essentia, quidditas, to ti hen einai, o que não muda no ser, constitui a condição necessária do vir-a-ser: tal é o fato para um ser de continuar a ser o que era, havendo no entanto mudado. O testemunho mais vigoroso desta verdade ontológica é dado pela consciência natural, pelo sentimento de identidade que eu tenho de mim mesmo e pelo qual eu me sinto sempre o mesmo através de todas as mudanças por que tenha passado.
[1] No entanto, a teoria da relatividade geral converte o mundo numa fórmula do movimento mecânico.
[2] Aristóteles I. 4, cap. III, Mel. Impossibile enim est quaecumque suscipere sive opinari, quod idem sit simul et non sit. — (Editio Regia, Opera Omnia. apud Joannenm Billaine, 1654.
[3] La Perception du Changement, pág. 24. - éd. 1911, Henry Frowde
[4] Uma exposição da filosofia de Bergson foi feita pelo autor deste trabalho sob o titulo “A crítica da Inteligência na Filosofia de Bergson”, “Planalto”, n. 4, Janeiro de 1945.
[5] Potentia et actus ita dividunt ens, ut quidquid est, vel sit aetus puras, vel ex potentia et actu tanquam priniis et intrinsecis principiis necessário coalesecat. (Summa Th. I.P. q. 77 - Hugon, Th. Th.