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Barbuy: ser unívoco e ser análogo I

quarta-feira 6 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Intuir na realidade o que a realidade é, qual é a sua estrutura, o seu — ontos ón — é o mesmo que buscar o ser da realidade. Mas este ser, como se apresenta? Heráclito  , afirmando a perpétua mudança, o fluir incessante de todas as cousas do mundo incerto e transitório, tinha negado os princípios primeiros da Inteligência, afirmando do ser ao mesmo tempo que é e não é.

Refutando esta contradição Parmênides   enunciou o princípio de contradição, pelo qual o que é, é; o que não é, não é; ou como diziam os escolásticos: Non est negare et affirmare sinnil, não se pode negar e afirmar na mesma relação o mesmo do mesmo; ens non est non ens; idem sub eodem respectu non potest simul esse et non esse [1]. Estabelecido este princípio da inteligência, que é o fundamento de todos os demais e sem o qual não se pode pensar, importava saber o que é. A isto, Parmênides respondeu com o ser unívoco, fora do qual nada é.

Se tudo quanto é, é — pensava Parmênides — o ser tem que ser universal e único. O ser não pode ter tido causa, pois, para causar o ser, seria preciso que a sua causa fosse; a causa, tem que ser também eterno; porque, se o ser tivesse tido mesmo, ou antes, o ser não tem causa. O ser é necessário. O ser é único porque se houver dois seres, um deles será o não-ser do outro, o que é absurdo. E dizer que o não-ser é, é o mesmo que afirmar o ser do não-ser. O ser, não tendo causa, tem que ser também eterno; porque, se o ser tivesse tido começo, antes de começar o ser, haveria o não-ser, o que é inconcebível, porque o não-ser já seria o ser; não tendo começo, o ser não tem fim, porque se tivesse fim, viria um tempo em que o não-ser seria e recairíamos na contradição de afirmar que o não-ser é, que é o mesmo que dizer que o ser é o não-ser. O ser é também imutável; porque toda mudança implica o não-ser e, o que está vindo a ser, não é. Pois que toda mudança significa deixar de ser o que era para vir a ser o que não era, a mudança repele o ser e o que muda não é. O ser é igualmente infinito; se não o fosse, além dos limites do ser, haveria ainda o não-ser do ser, que seria o mesmo que dizer que, além do ser, há o ser. O ser sendo infinito, está em toda parte e não está em nenhuma: isto confirma que, além do mais, o ser é imóvel. Porque movimento implica mudança, limitação, estar num lugar e em outro. E onde o ser não estivesse, que encontraríamos? O não-ser do ser que também seria ser.

Por isso, o ser de Parmênides é único, eterno, imutável, ilimitado, imóvel.

E aqui nos encontramos com a primeira e também a mais acabada das concepções unívocas do ser. A consequência necessária desta concepção (consequência que marcou depois profundamente a ontologia das essências em Platão  ) é que todo o espetáculo do mundo sensível se apresenta como diametralmente oposto ao mundo racional da univocidade do ser: a variedade, a multiplicidade dos seres, a finitude, a transitoriedade, a mutabilidade, a limitação e o movimento, todo este universo do perpétuo fluir no qual nós vivemos, tudo isto para a ontologia unívoca, será uma pura ilusão dos sentidos. O movimento, que a sensibilidade nos atesta, será como ilusão que a inteligência desfaz. Porque, nesta ontologia, o que importa é o inteligível, não o sensível. E porisso andava Zenon demonstrando que o movimento não é, que a dialética declara a sua inessência, ou mesmo a sua inexistência, porque o movimento não pode existir pelo fato de que o Ser, única realidade, é imóvel e imutável. O ser é, mas o vir-a-ser não é.

E aqui se sublinha, desde Parmênides e os Eleatas, com a teoria unívoca do Ser, esse caráter permanente de toda concepção do ser como unívoco, que consiste em separar radicalmente o mundo inteligível do mundo sensível, enquanto o ser de razão se converte numa realidade única, negada a realidade dos seres concretos.

A busca da realidade do que é, levando à conclusão pura e simples de que a realidade é o que é, a consequência que imediatamente se infere da teoria do ser como unívoco, é que, não sendo o mundo sensível absolutamente dotado de realidade verdadeira, e sendo a realidade constituída por um Ser único, precisamente o que existe não é: a existência é a negação da essência. Tudo quanto nos é dado pelos sentidos como existência, é negação do ser, é aparência, não é ser: o que existe não é. Esta mútua rejeição entre o Ser e o Existir, que encerra toda concepção unívoca do ser (por mais materialista que se apresentasse Parmênides, para quem o universo é como a massa de uma esfera arredondada, perfeitamente material) leva no entanto ao mais rigoroso idealismo, porque nega a realidade do concreto, para afirmar a exclusiva realidade do Ser de razão. Igualmente, a univocidade do ser, representa o domínio do conhecer sobre o ser (tal como no moderno idealismo) e não a subordinação do conhecer ao ser; ao contrário, numa ontologia realista, que igualmente poderíamos denominar ontologia substancialista, o conhecer se subordina ao ser, como a inteligência à realidade, precisamente porque o substancialismo parte do caráter dado da realidade, sendo a filosofia a penetração dessa realidade dada, a qual no entanto, o pensamento moderno, em suas grandes linhas, põe em dúvida. — Abstraindo mesmo os idealismos absolutos que negam toda realidade ao mundo exterior e para os quais esse est percipi aut percepire, — o idealismo de Kant  , se bem que admita a existência de uma realidade exterior, conhecida pela “intuição empírica” (porque a “matéria” das intuições espaciais está realmente fora do espírito) é nada obstante um idealismo para o qual a realidade em que nós vivemos é uma realidade feita pelo espírito e não pelas cousas [2]. Assim, mesmo que o mundo das realidades particulares não existisse, a filosofia de Kant seria exatamente a mesma, se Kant pudesse existir sem o mundo. Em todo o idealismo se acusa este primado do conhecer sobre o ser, enquanto a filosofia aristotélica proclamou sempre o primado do ser sobre o conhecer [3].

A verdade lógica se apresenta para o realismo como a adequação da inteligência com a cousa, reconhecido portanto o seu caráter subjetivo; mas a verdade ontológica se apresenta como a adequação da cousa à inteligência, portanto com o seu caráter objetivo e extra-intelectual. Por isso: Cognitum est in cognoscente ad modum cognoscentis. — Receptum est in recipiente ad modum recipientis. — Forma secundum quam provenit actio manens in agente, est similitudo obiecti.

A concepção unívoca do ser, tal como a elaborou Parmênides (homem digno de temor e de respeito, como disse Platão no Theetéte) influiu de modo decisivo na posterior formação da ontologia das essências, nas quais grandes correntes do pensar filosófico buscaram a realidade verdadeira, por oposição ao mundo das existências, onde apenas se encontraria uma realidade aparente, ilusória. A realidade platônica não é a existência, mas a essentia - ousia - e o mundo sensível no qual nós nos movemos não é mais que uma sombra, como nos diz o mito platônico da caverna. Mas, como se há de conciliar a pluralidade dos seres, com a unidade unívoca do Ser parmenídico? Não se pergunta já como se há de conciliar o vir-a-ser com o Ser, mas os seres com o Ser. Inutilmente Platão multiplica as essências, que constituem os archétypos dos fenômenos sensíveis. A noção unívoca do Ser não deixou nunca de marcar a ontologia platônica, a qual em vários lugares se pergunta claramente: “Qual é o ser eterno que não nasce, e qual é o ser que nasce sempre e não existe nunca?” (Timée  , 27 d). O que significa que entre o ser e o existir há uma radical distinção (como a distinção entre o inteligível e o sensível) e que atrás da ilusão do existir, deve-se procurar o “realmente real”, o Ser. Este Ser será então a Essência das Essências, ou Ideia das Ideias (noção de cujo caráter contraditório Platão tinha consciência), teoria refutada com veemência por Aristóteles  , com a verificação de que as ideias são absolutamente incapazes de produzir o movimento, porque —pensamos— de duas uma: ou as ideias são e existem e neste caso foi um movimento fora delas que as trouxe à existência, ou então as ideias são, mas não existem. Esta última alternativa parece ter sido a de Platão mesmo, para quem importa o que é, e não o que existe, pois o que existe é mito, sombra. O que existe não é objeto de ciência, de conhecimento, mas de “opinião” — doxa —. Tal se realiza aqui uma ontologia das essências que absolutamente não reconhece a existência e o devenir.

E se por um lado Platão estabelece uma espécie de analogia proporcional do ser, pela multiplicação das essências, por outro a univocidade do Ser platônico ressalta claramente quando se pensa na teoria da unidade da Essência, em face da multiplicidade dos indivíduos particulares que dela participam. Se a essência se divide nesses indivíduos, então ela não terá unidade e não tendo unidade, não é Ser, não é Essência. E o que “realmente é” voltará a ser uma contradição do que existe. Mesmo que não se leve em conta esta dificuldade, admitindo que a unidade, por exemplo, da essência — anthropos — (homem) não se destrua pela divisão na existência dos múltiplos homens, esta essência não poderá ser senão uma unidade em si mesma, tem que ser una e se converterá no Um de Plotino   e dos demais neoplatônicos [4]. Haverá somente um único “realmente real”, o Um do qual advirão todos os seres, consubstanciais ao Um e que do Um derivariam por uma processão e ao qual retornariam por uma reabsorção, num processo circular. Deste modo o Um é o Ser. O Ser é o Um: eis aqui uma concepção do Ser verdadeiramente unívoca e que se destrói a si mesma, quando em Plotino o Um se apresenta ao mesmo tempo como Ser e como não-ser, e como incognoscível, porque quando o supomos cognoscível o supomos múltiplo. O objeto da inteligência platônica que era a inteligibilidade essencial, desaparece aqui na ininteligibilidade do Um. [5]

Esta concepção unívoca do Ser, fonte verdadeira de todo panteísmo, terá que explicar a realidade do múltiplo por um processo circular de divisão e depois de reunificação. Uma teoria deste gênero foi defendida no século IX por Johannes Scotus Erigeno, em seu tratado De Divisione Naturae: a divisão da natureza é como a divisão de um gênero em espécies, tudo derivando de um único princípio e sendo a exteriorização em graus diversos desse princípio, que é o Ser único, unívoco, sendo tudo o mesmo Deus, de onde vimos por uma difusão e para onde voltamos por uma reabsorpção.

Ora, em tal teoria, é impossível fugir à conclusão de que a realidade é tanto mais Ser, quanto menos é existente; o existir é a negação do ser, porque a Essência, longe de coincidir com a Existência no Ser absoluto (como ensina Santo Tomás para quem em Deus Essência e Existência são uma só e a mesma cousa), ao contrário a Essência no panteísmo contradiz a existência. — E quando, na concepção unívoca do Ser, se quer conciliar a Essência com a Existência, novas contradições se estabelecem, como claramente ressalta dos panteísmos de Spinoza   e Giordano Bruno  .

Entretanto, uma observação de suma importância, cumpre fazer sobre a teoria unívoca do ser em Duns Scot  , o Doutor Sutil. O ser só é unívoco em Duns Scot sob o ponto de vista lógico, não sob o ponto de vista ontológico. A toda argumentação tomista da analogia do ser, Duns Scot nada opõe senão que o ser é unívoco, como conceito, não como realidade. Os seres realmente se apresentam como análogos, mas o nosso conceito de ser é que é unívoco, bem como os transcendentais que possuem uma communitas conceptual e não uma communitas real, como diz o mesmo Duns Scot: Deus et creatura sunt primo diversa in realitate, quia in nulla realitate conveniunt. (Opus Ox. I, d. 8).

Efetivamente, o ser unívoco em Duns Scot se apresenta com inteira originalidade, não se confundindo com nenhuma forma de panteísmo, porque todo panteísmo do ser unívoco supõe a identificação da realidade com o pensamento, a assimilação da metafísica na gnoseologia, quando em Duns Scot se opera uma distinção entre a gnoseologia e a metafísica entre o conceito unívoco do ser (a verdade lógica do ser unívoco, para Duns Scot) e a realidade metafísica do ser análogo (a verdade ontológica do ser análogo). A univocação do ser scotista, não tem o sentido panteísta, mas sim um sentido lógico e até metafísico, enquanto imanente como conhecimento, mas é uma univocação que não contradiz a analogia do ser quando se observa a sua inserção na realidade: não se trata de um ser cuja univocação pudesse ser constituída por uma quidditas communis, porém de um conceito de ser indeterminado, do ser como ser; — se o Ser constituísse um gênero em Duns Scot, então recairíamos nas contradições do ser parmenídico e panteísta. Mas Duns Scot declara que o conceito de ser é unívoco, depois de haver demonstrado precisamente que o ser não constitui um gênero, que é transcendente e que não é o mesmo ser que na realidade se encontra especificado nos diversos seres da realidade, onde Scot concorda com Santo Tomás na analogia do ser. Porém, se os seres da realidade são análogos, porque não é análogo o ser lógico? — Neste passo Duns Scot se esforça por demonstrar que o ser é concebido univocamente, não porque a realidade seja constituída de um único Ser, mas sim e ao contrário, porque a pobreza do conhecimento intelectual abstrativo (sendo esse conhecimento discursivo e não intuitivo) não nos permite captar os seres na sua fundamental diversidade intrínseca. Se Duns Scot declara que o ser é unívoco, não é senão porque reconhece a pobreza do conhecimento abstrativo, o qual é apenas o conhecimento do genérico e do comum e portanto se o ser scotista é unívoco, é porque o seu conceito deriva de uma captação imperfeita da realidade, a qual se reconhece análoga, quando a experiência direta da vida nos põe diante das inúmeras existências de seres, que são todos fundamentalmente diversos. Mas levada essa experiência existencial para o plano intelectual, atingimos somente o geral no particular e nos servimos do conceito de ser unívoco. Por isso a oposição entre a univocação scotista e a analogia tomista do ser, não está no plano da realidade, mas sim apenas no plano do conhecimento. O ser unívoco de Duns Scot demonstra o ser análogo da realidade. [6]


[1Illud quod primo cadit sub apprehensione est ens, cuius intellectus includitur in omnibus quaecumque quis apprehendit. Et ideo primum principium indemonstrabile est, quod non est simul affirmare at negare, quod fundatur supra rationem entis et non entis; et super hoc principio omnia alia fundantur. (Summa Th. la. 2a. e q. 942).

[2É de notar que Kant, que não se considera idealista, admite a existência do mundo exterior, cujas formas no entanto são todas dadas pelo sujeito. Tal é o tema da Critica da Razão Pura.

[3”Cognitiones ergo accipimus a rebus sensibilibus”. “Per has species directe cognoscimus: singularia sensu attingimus, tum etiam intellectu per conversionem ad pnantasmata; ad cognitionem vero spiritualium per analogiam ascendimus”. “Si ergo accipiamus speciem terrae loco terrae, secudum doctrinam Aristotelis, qui dicit quod lapis non est in anima, sed species lapidis; sequetur quod anima per species intelligibiles cognoscat res quae sunt extra animam”. Summa Th. vide LXXIX, LXXXV, XXXV, XXXVI, I., q. 85 a 2.
Para Kant, ao contrario, “A razão deve apresentar-se à natureza tendo numa das mãos seus princípios, os únicos que possam dar às concordâncias entre fenômenos a autoridade das leis e na outra, a experiência tal qual ela a imagina, de acordo com os seus princípios. (Crítica da Razão Pura, pref. 2a. ed.)

[4Plotino extraiu as últimas consequências da ontologia das essências em Platão, consequências já indicadas em várias passagens platônicas: No Sofista onde se chega ao ser unívoco, pela verificação de que o idêntico a si próprio se reduz ao Um. Na Republica, onde o realmente real se apresenta como além do próprio Ser.

[5Particularmente, Va. Ennéade. III parte., col. Budé, trad. E. Bréhier.

[6Sobre este problema: Etienne Gilson, La Philosophie au moyen-âge, Payot, 1949; L’Être et l’Essence, Vrin, 1948; L’Eprit de la Philosophie Médiévale, Vrin, 1944; Paul Haffner, Grundlinien der Geschichte der Philosophie, Mainz, 1881; Frei Efrem Bettoni, L’Ascesa a Dio in Duns Scoto, Vita e Pensiero, 1943; Elidio Souza Ribeiro, O Doutor Subtil João Duns Escoto, Lisboa, Sá da Costa, 1944; Mons. Amato Masnovo, Introduzione alla Summa Theologica di Santo Tommaso, Torino, 1918.