Intuir na realidade o que a realidade é, qual é a sua estrutura, o seu — ontos ón — é o mesmo que buscar o ser da realidade. Mas este ser, como se apresenta? Heráclito, afirmando a perpétua mudança, o fluir incessante de todas as cousas do mundo incerto e transitório, tinha negado os princípios primeiros da Inteligência, afirmando do ser ao mesmo tempo que é e não é.
Refutando esta contradição Parmênides enunciou o princípio de contradição, pelo qual o que é, é; o que não é, não é; ou como (…)
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ser etc
onta / ὄντα / ὄν / ón / ónta / εἶναι / είναι / einai / ente / o ser / a existência / el ser / la existencia / l’être / l’existence
gr. ὄντα, ὄν, ón, ónta (pl.) ou εἶναι, είναι, einai: ser, seres. Dupla significação: a) o ser singular, o existente; b) o ato de ser, o fato de ser; e daí: o ser em geral, tomado abstratamente; que pode vir a ser, em Platão : o Ser em si, a Essência do Ser, Realidade inteligível.
Notions philosophiques
O dicionário "Les Notions philosophiques ", organizado por Sylvain Auroux, nos lembra na entrada "ser", a primazia desta noção, enquanto ponto de partida da reflexão filosófica no Ocidente. No momento em que com Parmenides se constitui o conceito de ser, surge o questionamento filosófico. Mas o que dizer deste? Os filósofos o pensaram ou abordaram apenas um de seus aspectos sob a forma de um ente particular, como natureza, homem ou Deus? Não seria necessário, para evitar estes embaraços, o tomar "pela simples posição de uma coisa", a saber uma existência, e não como um "predicado real", como assinala Kant na "Crítica da Razão Pura"? Ou melhor, mais radicalmente, considerá-lo, como o faz Nietzsche no "Crepúsculo dos Ídolos", como o conceito mais geral e mais vazio? Ou, na restauração mais atual da "questão do ser", em Heidegger , reconhecer a importância do homem, enquanto "Dasein" (ser-aí) e, por conseguinte, "morada do ser"? Há portanto um espectro de possibilidades de abordar esta noção, aproximada sempre na entidade que revela, o ente que é. O que já se justifica no questionamento original da ontologia emergente em Aristóteles , ainda sem seu título, pela questão "ti tó on?" (o que é o ente?). Filosofar é considerar o ente questionando-o sobre este (ti) que é (esti) (SER DO ENTE).
Hadot
Segundo estudo de Pierre Hadot (Plotin , Porphyre : Etudes néoplatoniciennes), é justamente no neoplatonismo que se dá uma maior atenção à chamada "diferença ontológica", preconizada por Heidegger, a diferença entre ser e ente. A ênfase original dada ao Ser, enquanto Ente superior, cede algum lugar ao Ser, enquanto ser. Em Damáscio , esta "diferença" e por conseguinte um ensaio de reflexão sobre o ser enquanto ser, se dá através das palavras hyparxis e ousia, que caracterizam respectivamente o ser e o ente, o ser puro e o ser essência ou substância. Esta diferença no entanto é enfatizada em Marius Victorinus.
Hadot apresenta o momento histórico onde, na história do pensamento ocidental, o ser-infinitivo foi claramente distinguido do ser-particípio, sob a forma de uma distinção entre einai e on, transformada em seguida em uma distinção entre hyparxis e ousia nos neoplatônicos. Uma série de contingências resultaram neste momento histórico, a começar pela formulação empregada por Platão no início da segunda hipótese do Parmênides.
A segunda contingência histórica foi certamente a exegese neoplatônica do Parmênides, sendo a primeira delas que se conhece de Plotino. Ele faz corresponder a cada hipótese uma hipóstase, um tipo de unidade. A primeira hipótese (o Uno é o Uno) corresponde à unidade absoluta, quer dizer à primeira hipóstase, o Uno. Aí se encontra toda a teologia negativa. A segunda hipótese (O Uno é) corresponde a uma Unidade onde começa a se manifestar o Múltiplo, quer dizer ao Uno-Ente para retomar a terminologia de Plotino. Esta segunda hipóstase é para Plotino um segundo Uno, o Um-Múltiplo, quer dizer o primeiro número, a primeira ousia, a Ideia de Essência, princípio de todas as essências, a primeira Inteligência, o primeiro Inteligível. A ousia aparece assim em um segundo nível da realidade, no nível da segunda hipóstase e se funda na primeira hipóstase. Assim Plotino retoma Aristóteles e afirma que sempre a unidade funda previamente o ser.
A terceira contingência é por conta dos escrúpulos de um comentador neoplatônico do Parmênides. No fragmento 5 do "Anônimo de Turin", vemos o comentador se aplicar na exegese da passagem do Parmênides: "Se o Uno é, é possível que seja e não participe da ousia?" Para o comentador Platão definiu o "Ente" como o "Uno participando da ousia". Onde "participar tem o sentido de "ser parte com", "formar um todo em se misturando com", mas também o sentido neoplatônico de "receber uma forma que é o reflexo de uma Forma transcendente". Nos dois casos "ser participado" equivale a "ser atribuído", sendo no primeiro mistura de duas formas no mesmo nível ontológico e no segundo participação de um sujeito em uma Forma transcendente.
Resumindo a posição deste comentador:
O "é" ou "ser" puro = O primeiro UnoO Uno que "é" = O segundo Uno
O "é" do Uno que "é" é derivado do "ser" puro. Este último é sem sujeito nem atributo, é absoluto. O "é" do Uno que "é", ao contrário, é acoplado com um sujeito, com o segundo Uno que recebe este "é" derivado do "ser" puro.
A distinção entre ser-infinitivo e ser-particípio terá pouco eco em Proclo e Damáscio, mas vem de modo indicustível em Marius Victorinus, o primeiro Uno, o Pai da teologia cristã, é agir puro e ser puro (esse purum), não determinado e não participado, logo incognoscível, o segundo Uno, o "Filho" da teologia cristã, é o Ente, a primeira essência, que receb o ser do Pai. Boécio também vai introduzir uma oposição entre esse e quod est, que corresponde à oposição ente ser e ente.
Com efeito o neoplatonismo de Proclo e Damáscio conhece uma distinção ontológica muito próxima dessa, sob a forma de uma oposição entre hyparxis e ousia, seguramente proveniente da diferença ontológica entre ser e ente. De qualquer modo, claramente formulada em Victorinus que dá as seguintes definições de existentia e substantia (correspondentes a hyparxis e ousia): A existência difere da substância, posto que a existência é o ser em si, o ser sem adição, o ser que não está nem em outro nem sujeito de um outro, mas o ser em si, uno e só, enquanto a substância não tem senão o ser sem adição, mas tem também o ser-algo-de-qualificado. Pois ela está subjacente às qualidades postas nela e eis porque se chama sujeito.
Sérgio Fernandes
A ideia de "Ser enquanto Ser", ou de "Ser em si", tem sido identificada tradicionalmente, na Filosofia ocidental, sobretudo com três noções, todas elas dependentes, ainda que de maneiras obscuras e insidiosas, da noção incoerente (não que eu tenha a coerência em alta conta!) de "sujeito imutável da mudança" [sic]: são elas as noções de substância, essência e existência. Essas identificações, afirmo, constituem um tremendo equívoco, têm levado a metafísica a uma série de desastres e tenho dedicado boa parte de meus trabalhos filosóficos a remediar o que talvez seja irremediável. Se fizermos abstração do magistério universitário, pois tenho a impressão de que hoje em dia quase ninguém mais lhe dá ouvidos, além de meu estudo de Kant e Popper (Foundations of Objective Knowledge), remeto o leitor para Filosofia da Consciência, onde está minha primeira tentativa, digamos, mais decidida, de compreender essas artimanhas do pensamento que são as noções de "substância", em qualquer sentido, a de "essência", em quase todos os sentidos, e, sobretudo, a de "existência", que, além de desconstruída, deve ser objeto de uma reconstrução. Afinal, "aquilo que muda" ou "dura", ou o "sujeito do devir", só é o que é precisamente porque não muda, não devém, e, portanto, não "tem duração"! E ainda se quer que tais coisas "permaneçam idênticas a si mesmas ao longo do tempo ou do espaço" [sic], o que é simplesmente absurdo (na língua do Império, nonsense).
Como anunciei na Introdução, a Ontologia que adoto, já desde o livro de 1995 (Filosofia da Consciência), não é realmente do tipo tradicional. Na verdade, foge inteiramente da usual (desafio assim, de bom grado, os caçadores de precedentes!). O Ser, em minha concepção, não é substância, nem nos sentidos clássicos, nem nos sentidos modernos da palavra. (V. Filosofia da Consciência, Sec. 2.2: "A imitação do Ser chamada ‘Substância’", e o instrutivo artigo de Puntel, 2001). Tampouco é essência (V. Filosofia da Consciência, Sec. 2.5: "A Imitação do Ser chamada ‘Essência’: o Erro de Husserl ".) Distingue-se sobretudo de "existência", que defino como o estar projetado para fora do Ser, como Não-Ser.
A estrutura do Ser é triádica: constitui-se do Ser em si, de sua extensão em Experiência em si, que coincide ontologicamente com a Presença de Espírito, e do próprio Espírito, que "participa" de ou "está envolvido em" uma dualidade, dialeticamente irredutível: Sua Presença (nosso ser) ou "Sua Ausência" (mero pensamento do instrumento de Sua Obra). A isto só posso acrescentar, aqui, que a "dualidade redutível" ou "identidade verdadeira", entre Ser em Si e Ser como Experiência é de natureza mística, e que a "Equivalência" entre Ser como Experiência e Presença de Espírito é de natureza sagrada, só podendo, ambas, serem suficientemente investigadas num próximo livro sobre a verdadeira natureza da experiência religiosa. [SER HUMANO]
Daisetz Suziki
Ser é Deus. . . Deus e ser são a mesma coisa — ou, do contrário, Deus seria feito de outro e assim não seria Deus ele próprio. . . Tudo que existe tem o fato de ser através de ser e procedendo de ser. Portanto, se o ser é algo diferente de Deus, as coisas derivam seu ser de algo diferente de Deus. Além disso, nada há anterior ao ser, porque aquele que confere o ser cria e é criador. Criar é tirar o ser do nada.
Eckhart é, com muita frequência, metafísico, e nos leva a especular como seus ouvintes recebiam seus sermões — ouvintes que, segundo se supõe, deviam ser bem pouco eruditos, ignorando o latim e toda a teologia escrita em latim. Esse problema do ser e da criação do mundo por Deus, tirando-o do nada, deve ter intrigado muito aquela gente. Os próprios eruditos talvez não tivessem compreendido Eckhart, pois sabemos que eles não estavam tão enriquecidos pela experiência quanto ele. O simples pensamento ou raciocínio lógico jamais conseguiriam esclarecer problemas de profunda significação religiosa. As experiências de Eckhart são profundas, fundamental e fartamente enraizadas em Deus como Ser, que é, ao mesmo tempo, ser e não ser: ele vê nas coisas "mais insignificantes" entre as criaturas de Deus todas as glórias de sua "existencialidade" (isticheit). A iluminação budista não é nada mais que a experiência da "inexistencialidade" ou "identidade" (tathata) que tem em si mesma todos os valores possíveis (guna) que nós humanos podemos conceber.
A característica de Deus é ser. O filósofo diz que uma criatura pode dar vida a outra. No ser, no mero ser, reside tudo que existe em tudo. Ser é seu primeiro nome. Defeito significa falta de ser. Toda a nossa vida deve ser o ser. Enquanto nossa vida consiste em ser, estará em Deus. Enquanto nossa vida for débil mas recebida como ser, este ultrapassa tudo de que a vida pode jamais se vangloriar. Não tenho dúvidas disso, que se a alma tivesse a mais remota noção do que o ser significa, jamais ela se afastaria dele por um instante. A coisa mais trivial percebida por Deus, uma flor olhada por Deus, por exemplo, seria uma coisa mais perfeita que o universo. A coisa mais desprezível presente em Deus como ser é melhor que o conhecimento angélico.
Esta passagem talvez pareça muito abstrata para a maioria dos leitores. O sermão foi feito, segundo se diz, no dia consagrado aos "santos mártires que foram mortos com a espada". Eckhart começa expondo suas ideias acerca da morte e do sofrimento, que têm um termo, como tudo mais que pertence a este mundo. Continua, depois, dizendo que "nos cumpre emular a morte em ausência de paixão (nuiht betrüeben), diante do bem e do mal e do sofrimento de qualquer natureza, e cita São Gregório: "Ninguém recebe tanto de Deus quanto o homem que está inteiramente morto", porque "a morte lhes (aos mártires) dá a existência — perdem a vida, mas encontram a existência". A alusão de Eckhart à flor contemplada por Deus nos faz lembrar a entrevista de Nansen com Rikko, no qual o mestre do Zen também alude a uma flor no pátio do mosteiro.
Quando encontro tais afirmações é que aumenta a minha convicção de que as experiências cristãs não são, afinal de contas, diferentes das budistas. A terminologia é tudo que nos separa e nos impele a um prejudicial desperdício de energia. Devemos, contudo, pesar a questão cuidadosamente e verificar se existe, de fato realmente, algo que nos afaste uns dos outros e se existe alguma base para nossa edificação espiritual e para o progresso de uma cultura universal.
Michel Henry
Às definições de Deus como encontrando sua essência na Vida ou nas múltiplas proposições nas quais aparece como o Vivente, não se deixará de opor estas que fazem referência ao Ser. Assim IHWH, o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, do qual se traduz aproximadamente à maneira pelo qual se nomeia: “Eu sou aquele que sou”, se refere evidentemente a este conceito de Ser. De Deus o Apocalipse diz também: “Eu sou o alfa e o ômega (...) Aquele que é, que foi e que será, o Todo-Poderoso” (1,8). Observar-se-á igualmente que o conceito do ser intervém no interior mesmo das proposições que identificam a essência divina à Vida, tal esta aqui: “Aquele que é vivente”. A fim de afastar de pronto o contrassenso maciço que leva a essência do Deus cristão ao Ser e assim a um conceito do pensamento grego — abrindo a via às grandes teologias ocidentais que reduzem o Deus de Abraão àquele dos filósofos e dos cientistas e por exemplo àquele de Aristóteles —, convém afirmar que, remetido a seu último fundamento fenomenológico, o conceito do Ser se reporta à verdade do mundo, não designando nada mais que sua aparição, seu aclaramento, o que é suficiente para privar de toda pertinência concernindo a Verdade do Cristianismo, quer dizer Deus ele mesmo.
De maneira mais precisa, a palavra “ser” pertence à linguagem dos homens, que é precisamente a linguagem do mundo. E isto porque, como o sugerimos e como teremos ocasião de estabelecer longamente, toda linguagem faz ver a coisa da qual fala tão bem quanto isto que dela diz. Um tal fazer-ver releva do mundo e de sua Verdade própria. Na medida que a linguagem das Escrituras é aquela que falam os homens, a palavra “ser” aí se encontra a cada passo, mesmo quando se trata para Deus de se designar aos homens na linguagem que é precisamente a deles. Quando ao contrário, esta linguagem é explicitamente referida a Deus a ponto de se tornar sua própria Palavra, esta Palavra então se dá infalivelmente como Palavra da Vida e de nenhuma maneira como “palavra do Ser”, o que do ponto de vista cristão nada quer dizer. “As palavras que vos disse são espírito e elas são vida” (Jo 6,63); “Ide, apresentai-vos no templo, e falai ao povo todas as palavras desta vida” (At 5,20). Teremos a ocasião de citar muitos outros textos onde a essência divina se dá explicitamente como aquela da Vida, “o pão de vida”(Jo 14,28). Quanto às múltiplas metáforas em uso no texto do Novo Testamento e que vão suscitar uma iconografia inteiramente nova, geradora de uma arte especificamente cristã que vai agitar a arte ocidental, deve-se lembrar que convergem todas para uma outra verdade, no sentido fenomenológico, que aquela do mundo? As coisas não aparecem somente portadoras de significações “místicas”, seu ser mundano se dissolve propriamente nos símbolos do fogo ou da água — “a água da vida”: os cervos se saciam na fonte de vida, a árvore ela mesma que se mantém “no meio do lugar da cidade e entre as duas margens do rio está a árvore de vida” (Apocalipse, respectivamente 22,1). [MHESV]