Página inicial > Barbuy, Heraldo > Barbuy: o tema do ser
Barbuy: o tema do ser
quarta-feira 6 de outubro de 2021, por
O autor do presente trabalho diante do dilema de escolher e desenvolver com relativa perfeição um tema secundário — ou escolher e desenvolver de modo imperfeito e incompleto o tema central de todo pensamento filosófico, — o tema do ser — não hesitou em optar por esta última solução, certo de que a intuição e o problema do ser constituem o núcleo vital de toda filosofia, através do qual, como do centro de uma circunferência, podem dominar-se simultaneamente todos os pontos da periferia.
Não há pensamento filosófico, realmente capaz de prescindir da intuição do ser e dos seus problemas, e a mesma filosofia contemporânea dos valores, bem como as formas já transadas do idealismo, do positivismo e do materialismo, erigindo-se em correntes de pensamento anti-substancialista, longe de eliminar o ser de suas cogitações, nada mais fazem do que subtraí-lo ficticiamente da sua linguagem, — porque o pensamento do ser e a meditação sobre a natureza do que é, são tão inerentes à filosofia, como a filosofia ê inerente do objetivo das suas indagações.
Assim o tema do ser, que não pudemos infelizmente, nos limites deste trabalho, desenvolver em toda a sua amplitude, é o único que nos possa conduzir ao âmago e à essência da filosofia. Dada a magnitude do tema, seja-nos perdoado o havermos tratado sumariamente problemas de grande relevo, que se levantam a cada passo no decurso destas páginas, deixando à margem outros que mereceriam a maior atenção. Mas o nosso propósito não podia ser o de redigir um tratado e sim apenas o de expor de maneira sucinta e com justa modéstia, os fundamentos da atualidade do pensamento do ser. O ser é objeto essencial da filosofia — constitui a filosofia mesma — e foi em vão que estes três últimos séculos de pensamento, nas suas linhas dominantes, tentaram contornar o pensamento substancial do ser, dando-se a si mesmos a ilusão de o haverem superado, pelo simples fato de se manterem ao seu derredor sem chegar até o seu núcleo.
Se não há na filosofia tema de maior importância que o do ser, não há outro também que seja tão propício ao estudo de todas as correntes filosóficas. Todo aquele que forja ou que desenvolve uma visão determinada do mundo e da vida, coloca-se dentro de um ponto de vista, através do qual se torna possível a exposição coerente e a crítica rigorosa de todos os demais, constituindo também essa crítica uma revisão permanente do seu próprio ponto de partida. Não há nada mais nefasto no ensino da filosofia do que a exposição desordenada, heterogênea, sem nexo, de assuntos dispersos, destituídos de todo significado, porque não referidos a uma posição determinada, destituídos de toda coerência porque não governados por uma atitude dominante. A filosofia é uma vivência e não um conjunto de fórmulas. E formação e não apenas informação.
Menos perigoso não é o hábito de tratar sociologicamente a filosofia, hábito que o autor deste trabalho procurou rigorosamente evitar, pela muita preocupação que sempre lhe trouxeram os problemas da história e da sociologia e pelo conhecimento nítido de que a filosofia e a sociologia abrangem zonas distintas e de que não há nada mais absurdo nem mais anti-sociológico do que tratar sociologicamente os problemas da filosofia.
Cumpre ainda, com a devida vênia, assinalar que a constante referência ao pensamento bergsoniano no decurso destas páginas, se deve à profunda admiração que se tem pela filosofia de Bergson , que pôde, por si só, libertar a geração que lhe sucedeu das pesadas mortalhas do materialismo e do positivismo, em que no século passado se viram sepultar as mais autênticas aspirações da vida para a sabedoria e para a verdade. A obra de Bergson não é grande apenas pela justeza das suas observações que anulam o materialismo e o positivismo, senão também pelos seus erros, que reconduzem, pela sua consideração, à filosofia autêntica do ser.
E finalmente, nos limites desta tese, não nos foi possível abordar senão alguns aspectos da filosofia do ser, eliminando por fim as citações eruditas que nada mais faziam do que sobrecarregá-la. Citaram-se apenas alguns autores, dos inúmeros cuja leitura no correr dos anos influiu nas presentes considerações.
HERALDO BARBUY São Paulo, 7 de fevereiro de 1950