Filosofia – Pensadores e Obras

Bergson

BERGSON (Henri), filósofo francês de origem judaica (Paris 1859 — id. 1941). Fêz estudos brilhantes, foi recebido na Escola normal superior aos dezenove anos, tornou-se doutor em letras aos trinta. Professor do Colégio de França de 1900 a 1914, foi eleito para a Academia francesa em 1914 e recebeu o prêmio Nobel em 1928. Suas reflexões sobre o misticismo anunciavam sua conversão ao catolicismo, mas tendo irrompido a guerra de 1939, preferiu permanecer solidário de seus correligionários perseguidos pelos alemães. Sucumbiu de pneumonia, depois de ter estado horas na fila para obtenção de tickets de alimentação. Sua reflexão parte de uma filosofia do eu psicológico (Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, 1889; Matéria e memória, 1896), aprofunda-se numa intuição da vida (A evolução criadora, 1907), expande-se finalmente numa filosofia do espírito (As duas fontes da moral e da religião, 1932). Sua teoria do “eu profundo” subjacente à personalidade “social”, e idêntica à experiência interior da duração, sua moral “aberta” dos gênios criadores, ficaram célebres. Diversos artigos, principalmente sobre a “intuição filosófica”, a “percepção da mudança”, como também análises profundas e originais sobre as relações entre a metafísica e a ciência, foram reunidos em O pensamento e o movente. Bergson também exprimiu a reflexão filosófica certamente mais justa sobre a teoria da relatividade, confirmada nas longas conversações que pôde manter com Einstein (Duração e simultaneidade, 1922). Inicialmente admirado sem reserva, depois criticado da mesma maneira, Bergson reassumiu hoje seu justo lugar como clássico na história da filosofia francesa. Sobre Bergson leia-se um belo estudo de Thibaudet e a Filosofia de Bergson de V. Jankelevitch. [Larousse]


A. Procedência e particularidades.

Henri Bergson (1859-1941) é o representante mais conceituado e original da nova “filosofia da vida”, a qual dele recebeu a forma mais acabada. Contudo, embora mais tarde se tenha posto à testa do movimento, não se pode dizer que tenha sido ele o seu fundador. Na própria França, a Action de Blondel precedeu o Essai sur les données immédiates de la conscience de Bergson, e também Le Roy, que mais tarde seria discípulo de Bergson, já anteriormente se havia manifestado contra o mecanicismo. Todo este movimento está em relação com a tendência espiritualista, voluntarista e personalista da filosofia francesa, que, iniciada por Maine de Biran, foi em seguida representada por Félix Ravaisson-Mollien (1813-1900), Jules Lachelier (1832-1918) e Emile Boutroux (1845-1921), de quem Bergson foi discípulo. Contudo, Bergson não se deixou influenciar somente por estes filósofos, mas também pela “critica da ciência”. Além disso, tomou igualmente muitas ideias das teorias evolucionistas e militaristas inglesas; ele próprio confessa que, de início, só a filosofia de Herbert Spencer lhe parecia ajustar-se à realidade, e sua própria filosofia proveio da tentativa de aprofundar os fundamentos do sistema spenceriano.

Contudo, semelhante tarefa levou-o finalmente a repudiar completamente o spencerismo, que não cessou de combater daí em diante. A atividade especulativa de Bergson exerceu-se, sobretudo, em quatro obras que mostram claramente sua evolução espiritual. O Essai sur les données immédiates de la conscience (1889) contém a sua teoria do conhecimento; Matière et Mémoire (1896) sua psicologia, L’Évolution créatrice (1907) sua metafísica fundada na biologia especulativa, Les deux sources de la Morale et de la Religion (1932) sua ética e filosofia da religião. Tôdas estas obras tiveram êxito extraordinário, que se explica não só porque Bergson expunha uma filosofia realmente nova e que correspondia às necessidades mais prementes da época, mas também porque a exprimia numa linguagem de rara beleza. Por esse motivo lhe foi atribuído, em 1927, o prêmio Nobel de literatura. A uma prodigiosa clareza, a uma artística matização das expressões e a uma impressionante potência de imaginação, alia ele extraordinária gravidade filosófica e uma acuidade dialética sem par. Além disso, suas obras apoiam-se em conhecimentos sólidos, adquiridos à custa de amplas e árduas pesquisas. Por tudo isto, Bergson foi capaz de superar, a um tempo, o positivismo e o idealismo do século XIX :é um dos pioneiros do espírito novo de nosso tempo.

B. Duração e intuição.

Segundo a concepção do senso comum, admitida igualmente pela ciência, as propriedades do mundo são a extensão, a multiplicidade numérica e o determinismo causal. O mundo compõe-se de corpos sólidos extensos, cujas partes se encontram espacialmente justapostas; é caracterizado por um espaço totalmente homogêneo e por separações precisas, e todos os acontecimentos são de antemão determinados por leis “invariáveis. A ciência da natureza nunca considera o movimento, mas só as posições sucessivas dos corpos; nunca as forças, mas só os seus efeitos; a imagem do mundo traçada pela ciência natural carece de dinamismo e de vida; o tempo, tal como o encara a ciência, não é, em última instância, senão espaço; e quando a ciência natural pretende medir o tempo, na realidade não mede senão o espaço.

Todavia, podemos descobrir em nós mesmos, embora com esforço, uma realidade inteiramente diferente. Esta realidade possui uma intensidade puramente qualitativa, compõe-se de elementos absolutamente heterogêneos, que, entretanto, se interpenetram, de sorte que não é possível discriminá-los claramente uns dos outros; e, por último, esta realidade interior é livre. Não é espacial nem calculável; de fato, não somente ela dura, senão que é duração pura, e, como tal, completamente diferente do espaço e do tempo das ciências da natureza. É um agir único e indivisível, um alor (élan) e um devir que não pode ser medido. Esta realidade encontra-se, em princípio, em constante fluir, nunca é, mas perpetuamente devem.

A faculdade humana que corresponde à matéria espacial é a inteligência, e esta caracteriza-se por sua exclusiva orientação para a ação. É a ação que comanda, sem mais, a forma da inteligência. Como para a ação necessitamos de coisas exatamente definidas, o objeto principal da inteligência é o fixo corpóreo, inorganizado, fragmentário; a inteligência não concebe claramente senão o imóvel. Seu domínio é a matéria. Ela a capta para transformar os corpos em instrumentos; é o órgão do homo faber e subordinado, essencialmente, à construção de instrumentos. Dentro do domínio da matéria e graças à sua afinidade essencial com a matéria, a inteligência não só capta os fenômenos, como também a essência das coisas. Bergson abandona o fenomenismo de Kant e dos positivistas, e confere à inteligência, no domínio do corpóreo, a capacidade de penetrar na essência das coisas. Segundo êle, a inteligência é também analítica, ou seja, capaz de decompor segundo qualquer lei ou sistema e de recompor de novo. Suas características são a clareza e a capacidade de distinguir.

Mas, ao mesmo tempo, a inteligência caracteriza-se igualmente pelo fato de, por natureza, lhe ser impossível compreender a duração real, a vida. Constituída de acordo com a matéria, ela transfere as formas materiais, extensivas, calculáveis, claras e determinadas, ao mundo da duração; interrompe a corrente vital única e introduz nela a descontinuidade, o espaço e a necessidade. Não pode sequer compreender o simples movimento local, como o provam os paradoxos de Zenão.

Só podemos conhecer a duração graças à intuição; mas com ela conhecemo-la diretamente e como algo íntimo. A intuição distingue-se por características que se contrapõem às características da inteligência, órgão do homo sapiens, a intuição não está ao serviço da prática; seu objeto é o fluente, o orgânico, o que está em marcha; só ela pode captar a duração. Enquanto a inteligência analisa, decompõe, para preparar a ação, a intuição é uma simples visão, que não decompõe nem compõe, mas vive a realidade da duração. Não se adquire facilmente a intuição; tão habituados estamos ao uso da inteligência que se torna necessária uma viragem íntima violenta, contrária a nossas inclinações naturais, para podermos exercitar a intuição, e só em momentos favoráveis e fugazes somos capazes de o fazer.

Em resumo, existem dois domínios: de um lado, o domínio da matéria espacial e rígida, subordinado à inteligência prática; de outro lado, o domínio da vida e da consciência que dura, ao qual corresponde a intuição. Sendo a atitude da inteligência exclusivamente prática, a filosofia não pode utilizar senão a intuição. Os conhecimentos, obtidos por este meio, não podem ser expressos em ideias claras e precisas, nem tampouco são possíveis as demonstrações. A só coisa, que o filósofo pode fazer, é ajudar os outros a experimentarem uma intuição semelhante à dele. Assim se explica a riqueza de imagens sugestivas que as obras de Beegson oferecem.

C. A teoria do conhecimento e a psicologia.

Bergson aplicou seu método intuitivo em primeiro lugar aos problemas da teoria do conhecimento. Tais problemas, diz ele, receberam até ao presente três soluções clássicas: o dualismo corrente, o kantismo e o idealismo. Contudo, estas três soluções estribam totalmente na falsa afirmação de que a percepção e a memória são puramente especulativas, independentes da ação, quando na realidade são completamente práticas, subordinadas à ação. Por sua vez, o corpo não é mais do que um centro de ação. Destes princípios se infere que a percepção não abarca senão uma parte da realidade; ela consiste, de fato, numa seleção de imagens, das que são necessárias para cumprir a ação. O idealismo engana-se; os objetos, de que o mundo se compõe, são “imagens verdadeiras” e não unicamente elementos da consciência. Tanto o realismo habitual como o de Kant cometem erro ainda maior, ao situarem entre a consciência e a realidade exterior o espaço homogêneo, que consideram como indiferente. De fato, o espaço é só urna forma subjetiva, em correspondência unicamente com a ação humana.

Bergson consolida sua teoria do conhecimento mediante uma psicologia definida. Em primeiro lugar, repudia o materialismo, que tira toda sua força do fato de a consciência depender do corpocomo se, do fato de um vestido oscilar e cair com o gancho a que está suspenso, tivéssemos de concluir que o vestido e o gancho são idênticos. Entre os fenômenos psicológicos e os fisiológicos não existe sequer um paralelismo, o qual, aliás, nada provaria. A prova disto é a memória pura. Com efeito, importa distinguir dois tipos de memória: uma memória mecânica, corporal, que consiste unicamente na repetição de uma função tornada automática, e a memória pura, que reside nas imagens da lembrança. Neste caso, não se pode falar de uma localização no cérebro, argumento principal aduzido pelos materialistas. Se houvesse uma tal localização exata, deveriam perder-se porções inteiras da memória por causa de certas lesões cerebrais; na realidade muitas vezes só se verifica um enfraquecimento geral da memória. Mais acertadamente talvez se pudesse comparar o cérebro a uma espécie de gabinete destinado a transmitir sinais. Sua função não é a vida propriamente espiritual. Por seu turno, a memória não é uma percepção atenuada, mas um fenômeno essencialmente diferente.

A psicologia associacionista estriba no duplo erro de conceber a duração como um espaço e o eu como um conjunto de coisas decalcadas pela matéria. Estes mesmos erros conduzem ao determinismo psicológico, que concebe os motivos como coisas simultâneas e o tempo como um caminho no espaço, donde se infere, naturalmente, a negação da liberdade. Na realidade, nossas ações provêm de nossa personalidade toda; a decisão cria algo de novo, o ato sai do eu, unicamente do eu e, portanto, é inteiramente livre. O fato de a liberdade ser negada tão frequentemente, apesar de sua evidência imediata, deve-se a que a inteligência forma um eu superficial, análogo ao corpo, e encobre dessa maneira o eu real mais profundo, que não é senão criação e duração.

D. Vida e evolução.

As duas doutrinas clássicas, pelas quais se pretendeu explicar a vida, a mecanicista e a teleológica, erram por igual, visto ambas negarem radicalmente a duração. Segundo a primeira, o organismo é uma máquina de antemão determinada por leis calculáveis, e, de acordo com a segunda, existe um plano acabado do mundo. Ambas, sob certo aspecto, ampliam demasiado a noção de inteligência; a inteligência é para operar e não para conhecer a vida. A filosofia precisa superar estas duas doutrinas, especialmente o mecanicismo que nega simplesmente fatos evidentes.

Do mesmo modo que no problema psicofísico, também no problema da vida é possível observar um fenômeno que mostra a falsidade do mecanicismo. Este fenômeno consiste na produção de órgãos estruturalmente análogos em linhas evolutivas muito diferentes; assim, por exemplo, o olho nos moluscos e nos vertebrados, cujas linhas de evolução devem ter-se separado muito antes do momento em que adquiriram a vista. Servindo-se deste fato e de muitas outras observações, Bergson repele o mecanicismo darwinista e neodarwinista e, em geral, a concepção mecanicista do órgão vivo. O órgão vivo deve ser considerado como a expressão complexa de uma função simples; pode ser comparado a um quadro composto de milhares de traços, mas que expressa a inspiração simples do artista. Sem dúvida, o organismo contém um mecanismo, parece até ser um mecanismo. Mas assim como num arco dividido em minúsculos segmentos, estes segmentos coincidem aparentemente com a tangente, assim também a vida examinada em suas minúcias com os métodos das ciências da natureza parece ser um mecanismo, mas não o é.

A vida como um todo não é nenhuma abstração. Em determinado momento surgiu em certos lugares do espaço uma corrente vital que, através dos organismos desenvolvidos, vai passando de um germe a outro. A corrente vital procura vencer os obstáculos que a matéria lhe opõe; a materialidade de um organismo representa a totalidade dos obstáculos contornados pela vida. A vida não procede logicamente, erra de quando em quando, acumula-se em becos sem saída ou até volta para trás. Contudo, o ímpeto vital geral persiste. A fim de poder desdobrar-se, o alor vital (élan vital) divide-se em várias direções. Assim, surgiu, em primeiro lugar, a grande divisão do reino vegetal e do reino animal: as plantas acumulam diretamente a energia, para que os animais possam hauri-la nelas e disponham da mesma como de matéria explosiva para a ação livre. As plantas estão ligadas à terra e nelas a consciência ainda se encontra entorpecida; só desperta no mundo animal.

O élan vital subdivide-se ainda no mundo animal em duas direções diferentes, como se experimentasse dois métodos: numa direção culmina nos insetos sociais, na outra encontra seu acabamento no homem. Na primeira direção, a vida busca mobilidade e flexibilidade mediante o instinto, ou seja, mediante a capacidade de utilizar ou até mesmo de criar instrumentos orgânicos; o instinto conhece seus objetos por simpatia, desde dentro, e age de modo infalível mas sempre uniforme. Ao invés, nos vertebrados desenvolve-se a inteligência, isto é, a faculdade de fabricar e utilizar instrumentos anorgânicos. Por sua essência profunda, a inteligência não se orienta para as coisas, mas para as relações, para as formas; conhece seu objeto só por fora. Contudo, suas formas vazias podem encher-se de inumeráveis objetivos e indefinidamente. A inteligência perfeita ultrapassa suas fronteiras primitivas e pode até encontrar aplicação fora do campo prático, para o qual foi propriamente criada.

Finalmente, aparece no homem, embora só em forma de fugazes arranques, a intuição, na qual o instinto se tornou desinteressado e capaz de refletir sobre si mesmo. Além disso, o homem é livre. Todo este curso evolutivo conduz, portanto, à libertação da consciência do homem, e este aparece como o fim último da organização vital sobre o nosso planeta.

E. Metafísica.

Se o filósofo consente em mergulhar no oceano de vida que nos cerca, pode tentar conceber a gênese dos corpos e da inteligência. Esta intuição mostra que não só a vida e a consciência, mas a realidade inteira é um devir. Não existem coisas, mas somente ações, e o ser é essencialmente devir. “O devir encerra mais do que o ser”. Só a nossa inteligência e, por conseguinte, a ciência nos representam os corpos como rígidos. Na realidade, o próprio mundo material é movimento, alor, embora certamente em descenso e dispersão. Com efeito existem no mundo duas espécies de movimento, um movimento ascendente — o da vida — e outro movimento descendente — o da matéria. A lei da matéria é a lei da degradação da energia; a vida luta contra esta lei, sem contudo poder aboli-la; quando muito, consegue retardar-lhe os efeitos. Poderíamos compreender este processo, comparando-o ao vapor que sai em jatos pelas fendas de um vaso. Este vapor em contato com o ar livre condensa-se em pequenas gotas que caem. Mas uma pequena parte do vapor não se condensa imediatamente e esforça-se por elevar as gotas que caem. De modo idêntico, do imenso reservatório da vida saem incessantemente uns como que jatos, cada um dos quais caindo forma um mundo; as gotas que caem são a matéria. Ou, para empregar outra imagem, o mundo com o movimento vital é comparável a um braço erguido que torna a cair, em consequência do relaxamento dos músculos: a matéria é como que um gesto criador que se desfaz. Mas estas imagens são insuficientes, porque a vida é do domínio psicológico e é inespacial.

Processo idêntico se passa na consciência. A intuição tem a mesma direção que a vida, a inteligência tem a direção contrária. Por isso a inteligência está essencialmente coordenada à matéria. A intuição, pelo contrário, mostra-nos a verdadeira realidade, na qual aparece a vida como onda gigantesca que se espraia e logo em seguida é contida em quase toda sua amplitude. Só num ponto foi vencido o obstáculo e o impulso encontra livre saída. Esta liberdade aparece na forma humana. Pelo que, não sem razão, a filosofia afirmou a liberdade do espírito em geral, sua independência relativamente à matéria e sua provável sobrevivência após a morte.

Entretanto, a filosofia extraviou-se, por haver utilizado a inteligência e seus conceitos. Valendo-se de minuciosas análises, Bergson mostra como surgiu a ideia da desordem (a saber, da contingência das duas ordens possíveis, a vital e a geométrica) e como se formou a ideia do nada, que é propriamente uma pseudo-ideia. Beegson investe contra os mais importantes sistemas filosóficos do passado. A metafísica de Platão e de Aristóteles, seguindo a propensão natural da inteligência, consequência dos conceitos que não fazem mais do que imitar a linguagem, subjugou a duração. Outro tanto acontece fundamentalmente, embora com diferenças de pormenor, nos sistemas modernos, como os de Descartes, Spinoza, Leibniz, no criticismo de Kant e principalmente em Spencer. Neste último é onde se manifesta com particular evidência o caráter cinematográfico de nosso pensamento: pretende captar e representar a evolução por uma sucessão de estados do ser que se desenvolve, e desconhece assim totalmente a verdadeira duração.

F. Ética.

Segundo Bergson, há duas espécies de moral, a moral fechada e a moral aberta. A moral fechada deriva dos fenômenos mais gerais da vida; consiste numa pressão exercida pela sociedade, e as ações que lhe correspondem são levadas a cabo de modo automático, instintivamente. Só em casos excepcionais se trava luta entre o eu individual e o social. A moral fechada é impessoal e triplamente fechada: visa a conservação dos costumes sociais, faz coincidir quase inteiramente o individual com o social, de sorte que a alma se move constantemente dentro do mesmo círculo, e, por último, é sempre função de um grupo limitado e nunca pode ser válida para a humanidade inteira, porque a coesão social, da qual é função, repousa em grande parte na necessidade de autodefesa.

A par desta moral fechada, que obriga absolutamente, existe a moral aberta. Esta aparece encarnada em personalidades eminentes, em santos e heróis, e não é moral social, mas humana e pessoal. Não consiste numa pressão, mas num apelo; não.é fixa, mas essencialmente progressiva e criadora. Ê aberta no sentido que abarca a vida inteira no amor, proporciona até o sentimento da liberdade e coincide com o próprio princípio da vida. Procede de uma emoção profunda que, do mesmo modo que o sentimento provocado pela música, carece de objeto.

Todavia, na realidade nem a moral fechada nem a moral aberta se apresentam em forma pura; toda aspiração procura consolidar-se numa obrigação e esta, por sua vez, procura captar a aspiração. Estas duas forças, das quais uma é in-fra-intelectual e outra supra-intelectual, operam no campo da inteligência, e por isso o moral é uma vida racional. Como quer que seja, a moral fechada e a aberta constituem duas manifestações complementares do mesmo valor vital.

G. Filosofia da religião.

A mesma divisão que se fêz na moral se aplica igualmente à religião: há uma religião estática e uma religião dinâmica. A religião estática consiste numa reação defensiva da natureza contra os efeitos da atividade da inteligência, que ameaçam oprimir o indivíduo ou dissolver a sociedade. A religião estática prende o homem à vida e o indivíduo à sociedade mediante fábulas que se assemelham a canções de berço. A religião é obra da “função fabuladora” da inteligência. A inteligência, em sentido estrito, ameaça desfazer a coesão social, e a natureza não pode opor-lhe o instinto, cujo lugar foi precisamente substituído no homem pela inteligência. Mas a natureza ajuda-se mediante a produção da função fabuladora. Se o homem sabe, pela inteligência, que tem de morrer, coisa que o animal não sabe, e se a inteligência lhe ensina que entre a tentativa e o êxito desejado existe o espaço desanimador do insondável, a natureza volta a ajudá-lo a suportar este conhecimento amargo, fabricando, graças à sua função fabuladora, deuses. O papel da função fabuladora nas sociedades humanas corresponde ao do instinto nas sociedades animais.

A religião dinâmica, o misticismo, é algo inteiramente diferente. Resulta de um retorno na direção donde procede o élan vital, e nasce da pressentida captação do inacessível a que a vida aspira. Este misticismo é próprio somente de homens extraordinários. Não se manifestou ainda entre os velhos gregos, como nem em forma perfeita na índia, onde não deixou de ser puramente especulativo. Contudo surgiu entre os grandes místicos cristãos, que possuíam uma saúde espiritual que se pode qualificar de perfeita. A religião cristã aparece como a cristalização deste misticismo, mas, por outro lado, constitui o seu fundamento, porque os místicos são todos imitadores originais, embora imperfeitos, daquele que nos deixou o Sermão da Montanha.

A experiência dos místicos permite-nos defender não só a probabilidade das concepções relativas à origem do élan vital, como também a afirmação da existência de Deus, que não se pode provar com argumentos lógicos. Os místicos ensinam também que Deus é o amor, e nada impede que os filósofos desenvolvam a ideia, sugerida por eles, de o mundo não ser mais do que um aspecto palpável deste amor e da necessidade divina de amor. À base da experiência dos místicos, corroborada pelas conclusões da psicologia, pode igualmente afirmar-se, com uma probabilidade que toca nas raias da certeza, a sobrevivência após a morte. [Buchenski]


Henri Bergson, nascido em Paris em 1859, professor na Escola Normal Superior e no Colégio de França, morreu na mesma cidade em 1941. Carreira e caráter equiparam-se pela natureza e pela elevação.

As grandes filosofias, como já vimos demasiadas vezes, valem pelo seu lado crítico ou negativo e, quando passam a construir, por maiores que sejam o seu brilho ou a sua profundeza, devem resignar-se a uma deficiência final. No momento em que Bergson surgiu, uma tarefa urgente se impunha no domínio do pensamento: era preciso desembaraçar o espírito e reintegrá-lo na posse dos seus direitos. A relação entre o fisiológico e o psicológico tornara-se uma relação causai mais ou menos confessada, ou pelo menos pretendia-se que as operações do espírito não se pudessem realizar sem uma ação ou determinadas modificações do cérebro. Era o sistema das localizações cerebrais. Bergson mostrou que a correlação não era tão rigorosa e que se um ponto do cérebro sofria uma lesão, tornando-se incapaz de exercer a função que se lhe atribuía, uma “suplência” podia surgir em outro ponto; noutras palavras, que a inteligência se serve do sistema nervoso, mas não é produto dele nem tampouco lhe está ligada necessariamente ou como uma natureza a alguma coisa da mesma natureza.

Tal é o tema do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência e de Matéria e memória, obras que apareceram respectivamente em 1889 e 1896. 0 que nelas se estabelece é essa presença e essa independência do espírito cujos dados fundamentais, se nos chegam através dos sentidos, nem por isso são menos imediatos e reveladores. O corpo não é uma simples duplicata do espírito, nem tampouco o engendra; é antes o seu ordenador e distribuidor. A memória é um todo que se conserva integralmente mas que não aparece de súbito e por inteiro, e que o cérebro tem a missão de filtrar, por assim dizer, e de organizar, ao sabor do tempo e das circunstâncias, garantindo destarte, conforme as palavras do próprio filósofo, “essa materialização crescente do imaterial que é característica da atividade vital…”

Existe, pois, de fato um “imaterial” e um “espírito”. Que vem a ser esse espírito assim reintegrado, donde vem ele e por que vias, quais sãos os seus próprios caminhos e a sua destinação? É em primeiro lugar, no fundo do nosso ser, esta força primeira que nos constitui e forma o nosso eu, este eu-profundo que, assim qualificado, indica a nossa fonte; é essa mesma força que, propagando-se através do espaço e do tempo, através da matéria e dos povos, os organiza, distribui-se entre eles e mostra-se sob essas aparências que são as nossas e em que é mister aprendamos a sentir e a conhecer uma energia sempre atuante e oculta.

“Ímpeto vital”, “evolução criadora” — título, esta última, de uma obra — eis as fórmulas bergsonianas por excelência, cujo sentido bem compreendemos. O mundo é um efeito do espírito em marcha, em fluxo perene, e tudo que vemos representa aproximações sucessivas, um avanço criador e livre rumo a um ideal de criação e de liberdade.

Nossos erros provêm de uma armadilha que nós mesmos preparamos e onde caímos, de um equívoco a respeito da nossa própria atividade. Ao nos exprimirmos em termos de espaço, congelamo-nos e imobilizamo-nos; inteiriçamo-nos no abstrato, esquecendo o concreto que permanecia latente no fundo das nossas afirmações. A verdadeira realidade nos escapava porque pretendíamos vê-la nesses conceitos que eram o fruto da nossa operação intelectual e que não faziam mais do que formulá-la, — nesses conceitos, em suma, que eram um sinal e um termo. A realidade é bem diferente; ela não é um símbolo vocal, a expressão inerte de uma linguagem que não passa de mera tradução; é “movência” e movimento; descora-se e pára, isto é, petrifica-se e morre, justamente ao ser expressa. E com efeito, é além ou aquém do nosso discurso ou dos nossos exercícios discursivos que cumpre procurar-nos, a saber: no movimento dessa realidade, única subsistente e atuante, que os produziu.

Temos confundido o tempo e a duração. De acordo com a fórmula justa de Aristóteles, o tempo é a medida do movimento; a duração é ainda outra coisa: é uma continuidade, a nossa própria continuidade viva, uma continuidade substancial e, numa palavra, o próprio “estofo” da vida.

Como se vê, esta filosofia — e nisto reside a sua originalidade, o seu método — é uma substituição do estático pelo dinâmico, por vezes uma composição de ambos. Era o que declarava expressamente a última e belíssima obra de Bergson, publicada em 1932: As duas fontes da moral e da religião. Oferece-nos ela a moral tão esperada do nosso autor, e esta moral é significativa.

Duas forças se exercem no interior do corpo social, como aliás do próprio indivíduo, duas forças que os guiam, os formam e lhes marcam o ritmo histórico. Por uma delas, essencialmente restritiva e inibitória, o adquirido tende a se conservar, ergue-se uma barreira contra toda inovação que tenda a comprometer um equilíbrio sempre precário, a abalar as instituições estabelecidas, a modificar os hábitos ou a subverter a escala de valores — a inovar, em suma. É a religião estática ou a forma estática da religião, e é também a guerra aberta, uma guerra sem quartel, contra o espírito revolucionário. A outra é a reivindicação deste mesmo espírito, são as suas audácias, os seus triunfos, os seus reveses, o ímpeto irresistível das forças novas, a necessidade que têm os seres originais de se manifestarem, de se imporem, o meio, enfim, de satisfazer esta outra necessidade que quer que as coisas envelheçam, morram e sejam substituídas. Bem sabemos que a história dos homens é feita desse ataque e dessa defesa, que ambos são legítimos mas, por nossa desgraça, não se podem acomodar pacificamente, pois as ruínas resistem com obstinação e o desejo de reconstruir leva a brandir o camartelo com demasiado açodamento contra muros que ainda se mantinham muito bem de pé…

O espírito, por outro lado, não trabalha apenas sobre dados materiais ou matemáticos. Possui uma capacidade não pequena para construir hipóteses e trabalha sobre o imaginário com o mesmo entusiasmo, pelo menos, e com a mesma destreza que sobre o real. Possui uma “função fabuladora” e a exerce; é capaz de fazer deuses e não abdica dessa capacidade. E com esta afirmação encerra-se o livro: que o universo é uma “máquina de fabricar deuses”.

Estas palavras bastante perturbadoras nos levam a expressar nossas reservas, que são graves, no tocante a esta prestigiosa filosofia. Espíritos maldosos poderão pensar que se o universo “faz” deuses, seria bem possível que ele “fizesse” também Deus, e que a criatura tivesse inventado assim o seu criador. Que pensa a respeito o Pe. Sertillanges, que tão generosos esforços envidou para aproximar Bergson do catolicismo?

A dizer verdade, ficamos um pouco decepcionados quando consideramos a doutrina com algum sangue-frio, defendendo-nos dos prestígios a que me referi, fascinação do estilo e graças sutis do pensamento. Bergson, por certo, teve ganho de causa contra o materialismo e o idealismo, contra os sistemas que suprimem o espírito e contra aqueles que o evaporam pretendendo que tudo seja espírito. Mostrou também os abusos do conceito puro, conquanto tenha exagerado talvez o vazio do conceito, e lembrou com razão que o pensamento se torna uma coisa ilusória e oca logo que perde o contato com a vida, isto é, com o sentimento e o movimento.

Mas que vinha a ser exatamente esse espírito cujas fulgura-ções criam mundos e essa duração que assumia visos de divindade? Existem objetos que duram, mas a duração que é? E se existe ou se pode imaginar um Deus bergsoniano, que Deus será esse? Bem o compreenderam os teólogos. É um Deus infinitamente pouco pessoal, todo diluído, se assim se pode dizer, e imanente, um Deus que parece distanciado de toda transcendência e que foge à medida que o buscamos. No pensamento de Bergson, tudo nos escorrega entre os dedos quando julgamos apanhá-lo; fica apenas o fogo de artifício desse espírito cuja substância escapa incoercivelmente.

Não é pequeno, entretanto, o mérito de Bergson: arrancou a filosofia da rodeira científico-materialista em que se atolara, prestando-lhe assim relevante serviço. Se, por um lado, correu o risco de dar uma nova forma a essa doutrina da evolução que já fora obrigada a confessar a sua deficiência, por outro lado voltou a um espírito desembaraçado das condições corporais a que se pretendera avassalá-lo e das quais se quisera derivá-lo, e instituiu uma “experiência” desse espírito. Introduziu ou reintroduziu na especulação essa vida que a filosofia clássica era acusada de ter estancado e que os nossos atuais fenomenologistas se jactam com tanta satisfação de ter encontrado também, esquecendo que só o fizeram depois dele. Bergson é, enfim, um momento e um herói da história da filosofia.

Após ter conhecido o esplendor que se sabe e exercido uma acentuada influência sobre a psicologia, a moral, as ideias correntes e a literatura, o bergsonismo entrou subitamente numa espécie de crepúsculo que lhe mascara a importância e os méritos, e convém acrescentar que ele se ressente também do ruído que fazem atualmente as doutrinas da moda, ruído que abafa qualquer outro. Teve mestres de subido valor em Edmond Le Roy, sucessor de Bergson no Colégio de França, e em Segond, autor de um livro sutil sobre A oração. [Truc]