Bergson (EC:1-3) – existência

Bento Prado Neto

A existência de que estamos mais certos e que melhor conhecemos é incontestavelmente a nossa, pois de todos os outros objetos temos noções que podem ser julgadas exteriores e superficiais, ao passo que percebemos a nós mesmos interiormente, profundamente. Que constatamos então? Qual é, nesse caso privilegiado, o sentido preciso da palavraexistir”?…

Constato em primeiro lugar que passo, de um estado para outro. Tenho calor ou tenho frio, estou alegre ou estou triste, trabalho ou não faço nada, olho o que está à minha volta ou penso em outra coisa. Sensações, sentimentos, volições, representações, são essas as modificações entre as quais minha existência se divide e que a colorem alternadamente. Portanto, mudo sem cessar. Mas isso não é tudo. A mudança é bem mais radical do que se poderia pensar num primeiro momento.

Com efeito, falo de cada um de meus estados como se formasse um bloco. Embora diga que mudo, parece-me que a mudança reside na passagem de um estado ao estado seguinte: no que se refere a cada estado, tomado em separado, quero crer que continua o mesmo durante todo o tempo em que se produz. Contudo, um leve esforço de atenção revelar-me-ia que não há afeto, não há representação ou volição que não se modifique a todo instante; se um estado de alma cessasse de variar, sua duração deixaria de fluir. Tomemos o mais estável dos estados internos, a percepção visual de um objeto exterior imóvel. Por mais que o objeto permaneça o mesmo, por mais que eu olhe para ele do mesmo lado, pelo mesmo ângulo, sob a mesma luz, a visão que tenho dele não difere menos daquela que acabo de ter, quando mais não seja porque ela está um instante mais velha. Minha memória está aí, empurrando algo desse passado para dentro desse presente. Meu estado de alma, ao avançar pela estrada do tempo, infla-se continuamente com a duração que vai reunindo; por assim dizer, faz bola de neve consigo mesmo. Com mais forte razão isso ocorre com os estados mais profundamente interiores, sensações, afetos, desejos etc., que não correspondem, como uma simples percepção visual, a um objeto exterior invariável. Mas é cômodo não prestar atenção a essa mudança ininterrupta e só notá-la quando se torna grande o suficiente para imprimir uma nova atitude ao corpo, uma nova direção à atenção. Nesse momento preciso, descobrimos que mudamos de estado. A verdade é que mudamos sem cessar e que o próprio estado já é mudança.

Quer dizer que não há diferença essencial entre passar de um estado a outro e persistir no mesmo estado. Se, por um lado, o estado que “continua o mesmo” é mais variado do que achamos que seja, a passagem de um estado a outro, pelo contrário, parece-se mais do que imaginamos com um mesmo estado que se prolonga; a transição é contínua. Mas, precisamente por fecharmos os olhos à incessante variação de cada estado psicológico, somos obrigados, quando a variação se tomou tão considerável que se impõe à nossa atenção, a falar como se um novo estado tivesse se justaposto ao precedente. Supomos que este, por sua vez, permanece invariável, e assim por diante, indefinidamente. A aparente descontinuidade da vida psicológica decorre, pois, do fato de que nossa atenção se fixa nela por uma série de atos descontínuos: ali onde há apenas uma suave ladeira, cremos perceber, ao seguirmos a linha quebrada de nossos atos de atenção, os degraus de uma escada. É verdade que nossa vida psicológica é cheia de imprevistos. Surgem mil e um incidentes que parecem contrastar com o que os precede e não se vincular àquilo que os segue. Mas a descontinuidade com que aparecem destaca-se sobre a continuidade de um fundo onde eles se desenham e ao qual devem os próprios intervalos que os separam: são os toques de timbale ressoando de quando em quando na sinfonia. Nossa atenção se fixa neles porque a interessam mais, mas cada um deles vem inserido na massa fluida de nossa existência psicológica inteira. Cada um deles não é senão o ponto mais bem iluminado de uma zona movente que compreende tudo o que sentimos, pensamos, queremos, tudo o que somos, enfim, num determinado momento. É essa zona inteira que, na verdade, constitui nosso estado. Mas, de estados assim definidos, pode-se dizer que não são elementos distintos. Continuam-se uns aos outros num escoamento sem fim.

Original

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