Página inicial > Barbuy, Heraldo > Barbuy: Três concepções do ser
Barbuy: Três concepções do ser
quarta-feira 6 de outubro de 2021, por
Ora o ser pode afirmar-se de dois modos e negar-se de um modo. O ser pode afirmar-se univocamente. O ser pode afirmar-se analogicamente. E o ser pode negar-se equivocamente. O unívoco, o equívoco, o análogo, tais são os três aspectos debaixo de um ou outro dos quais podemos considerar o que é, do ponto de vista lógico. [1]
Se dissermos que o ser é unívoco, colocar-nos-emos no ponto de vista lógico, sem atentar para a inteligibilidade análoga do real e afirmaremos que a palavra ser designa sempre um só e o mesmo objeto; afirmamos o Ser mas negamos os seres, que se tornarão simples aparências; toda a realidade se reduzirá a um único ser e desta concepção nascerão as mais variadas formas da filosofia monista, todos os panteísmos e todos os idealismos absolutos, bem como todo materialismo.
Se porém dissermos que o ser é equívoco, afirmaremos que em cada caso a palavra ser designa um objeto diferente; reconheceremos a multiplicidade dos seres, mas não poderemos reconhecer a possibilidade do conhecimento, o qual não é senão conhecimento do que é comum, genérico, idêntico em muitos seres. Assim nasce o ceticismo duma concepção equívoca do ser, (subordinado ao conhecer) e negando toda possibilidade do conhecimento. [2]
Ora, se ao contrário afirmamos a analogia do ser, afirmaremos que a palavra ser tem significações parcialmente distintas, indicando porém uma unidade ôntica, a qual não faz de todos os seres um único ser, nem de cada um deles um objeto inteiramente distinto. Quer dizer, ao afirmar a analogia do ser, adequamos a inteligência ao inteligível, realizamos uma adaequatio intellectus cum re (porque os seres existentes se apresentam todos como seres mas cada um a seu modo) e afirmamos que tudo quanto é, é, mas nem tudo quanto é possui o ser da mesma maneira e segundo a mesma definição.
De modo que, esquematicamente, e abstraídas as diversidades internas, as três possíveis atitudes da filosofia diante do mistério do ser se resumem no seguinte: Se o ser é unívoco, há o Ser, mas não há os seres. Se o ser é equívoco, há seres, mas não há Ser (se bem que o ceticismo nada possa afirmar, nem negar). Se o ser é análogo, há os seres e há o Ser, e neste caso a inteligência se adapta à realidade, sem querer adaptar a realidade ao pensamento. Na concepção análoga do ser, a verdade lógica coincide com a verdade ontológica.
Que a concepção análoga do ser seja a única explicativa da estrutura ôntica da realidade, é o que se pode ver pelas contradições internas de toda concepção unívoca do ser.
[1] Em lógica, chama-se unívoco o termo que designa sempre uma só e a mesma cousa. Todos os termos unívocos possuem um só significado e da mesma maneira, secundum eamdem rationem. Todos os praedicabilia, os universais, gênero, espécie, diferença, próprio, acidente são unívocos. Assim o universal “homem” se aplica do mesmo modo e da mesma maneira a todos os homens.
Chama-se equivoco, o termo que tem duas ou mais significações diversas, tal por exemplo, o termo “pena” com seus vários sentidos distintos. Existem os equívocos a cusu e os equívocos a consilio: estes últimos se estendem às metáforas e às comparações, tal por exemplo a famosa imagem em que Jesus compara Pedro à pedra, sendo as palavras Pedro e pedra idênticas no dialeto arameu: Cephas.
Análogo é o termo que, como o termo equívoco, designa objetos distintos, mas não inteiramente diversos, porém em parte semelhantes e em parte distintos; assim se diz de um corpo que é sadio, de um fruto que é sadio e de um espírito que é sadio; neste caso o corpo é sadio e é com relação a ele que as outras cousas são ditas sadias (analogia proportionalitatis). Porém se compararmos o fruto sadio e o espírito sadio, atribuímos a mesma qualidade a duas cousas em relação a uma terceira, que se torna, no exemplo, a principal. O principal neste caso é o summum analogatum. A analogia que há entre a substância e o acidente é uma analogia de proporção, não de atribuição.
Sobre a importância da distinção lógica e matafísica entre unívoco, equívoco e análogo, vide Ios. Gredt, Lógica Materialis. “Elemento” art. 167 e seg. — Met. art. 621 a 703. —
[2] O mais poderoso dos argumentos céticos, a que os gregos denominavam diallélon, consiste em dizer que não podemos admitir a exatidão da certeza, porque não podemos demonstrar a aptidão das nossas faculdades cognitivas a penetrar a essência do real. Para demonstrar a legitimidade das faculdades cognitivas, nós nos serviríamos dessas mesmas faculdades, o que seria um círculo vicioso.
No entanto, este argumento é ele mesmo um círculo vicioso: porque, se os céticos não admitem a legitimidade da inteligência para a captação do ser, como podem afirmar essa ilegitimidade em nome da mesma inteligência? Ademais, o ceticismo afronta o senso comum, porque os princípios de razão enunciam verdades de evidência, que justamente, por serem evidentes não necessitam de demonstração; essas verdades evidentes são intuições intelectuais, axiomáticas, das quais parte o discurso e onde o discurso termina, como diziam os escolásticos. A noção equívoca do ser é ela também um grande equívoco, porque se a mesma palavra pode designar dois ou mais objetos diferentes, o que importa não é a palavra e sim os objetos designados. Porém o idealismo, que reduz a realidade a puros conceitos, facilmente incorre no equívoco do ceticismo, porque toma a realidade pelo conceito equívoco, quando em verdade esse conceito se predica duma realidade, mas não é a realidade mesma. A menos que queiramos que o mundo das essências platônicas, mundo de ideias conceptuais, seja a realidade, e a verdadeira realidade não seja mais que uma sombra e um mito. Neste caso o ceticismo só é possível fora do senso comum e dos limites da ontologia realista. Este realismo reconhece que, se a razão frequentemente se engana, é graças à razão que percebemos o engano.
Uma forma contemporânea do ceticismo (além do relativismo positivista) é o irracionalismo, o qual, principalmente com Bergson, nos diz que quando dizemos ser não dizemos cousa alguma, porque não há ser, mas unicamente vir-a-ser. Sobre este tipo de fenomenismo discorremos na primeira parte do atual trabalho.