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Barbuy: Kierkegaard (2) - Formas do Desespero
sexta-feira 8 de outubro de 2021, por
I — O ego é primeiramente uma síntese consciente de infinito e de finito, que se relaciona consigo mesma e cujo fim é tornar-se ela mesma, o que só pode fazer relacionando-se com Deus, que a colocou como síntese. Salvar-se é tornar-se si mesmo em suas relações com Deus. Este tornar-se si mesmo é certamente um vir-a-ser concreto, que não se pode cumprir nem só num, nem só noutro dos termos da antítese, senão se estabelece a desarmonia, o desespero, pela negação do finito, ou do infinito. O ego deve realizar em si a síntese do finito e do infinito; a evolução consiste pois em afastar-se indefinidamente em si mesmo numa infinitização, mas voltando ao [188] mesmo tempo indefinidamente a si mesmo numa finitização; e enquanto não chega a realizar-se, o ego não é ele mesmo; e não ser si mesmo é desespero [1].
Quando esta evolução se cumpre desarmonicamente temos duas formas de desespero:
O desespero do infinito ou a falta de finito: Sendo o ego síntese de finito que delimita e de infinito que ilimita, em toda vida humana que se crê infinita, ou quer sê-lo, cada instante é desespero. É um perder-se no imaginário, no informe; o imaginário não compreende só a imaginação, mas atinge ainda o conhecimento, o sentimento e a vontade; pode haver sentimento, conhecimento e vontade imaginários. A imaginação é proteu das faculdades, é agente de infinitização; o imaginário transporta o homem ao infinito, mas afastando-o de si mesmo. O ego se perde na imaginação, mas não se ganha a si mesmo. Evapora-se numa espécie de sensibilidade impessoal, inumana, sem concreção num indivíduo; o ego se destrói participando duma existência abstrata, como por ex., a ideia de “humanidade”. O sentimento imaginário versa cada vez mais no infinito, enquanto o ego se perde cada vez mais a si mesmo [2]. O ego se perde do mesmo modo no infinito do conhecimento que se torna imaginário; pois a lei do progresso do ego é que o conhecimento seja paralelo à consciência e que, quanto mais o ego conhece, tanto mais se conheça. Senão o conhecimento se torna monstruoso [3]. Como no sentimento e no conhecimento imaginário, assim também o ego se evapora no desespero do infinito pela vontade tornada imaginária.
Certamente a orientação para Deus dota o homem de. infinito; mas esse infinito, rompido o equilíbrio, e quando o [189] imaginário devorou o ego, só pode produzir uma embriaguez vazia. A perda de si mesmo porém pode passar e geralmente passa desapercebida.
O desespero no finito ou a falta de infinito: Se, em vez de nos evaporarmos no infinito, com a perda do finito e do concreto, nos dissolvemos no finito com a perda do infinito, temos o desespero oposto. O ego se realiza como síntese de infinito e de finito e o cumprimento de um não pode ser a negação de outro. O desespero na finitude é a indigência moral, que o vulgo denomina indigência intelectual ou estética, ocupando-se de tudo, menos do que realmente importa, que é o destino do ego. É o desespero banal, que consiste em polir as arestas da personalidade, as quais, ao contrário, deveríamos endurecer; o desesperado se amolda a toda circunstância social; é por toda parte benvindo, benquisto, oportuno, afável; adapta-se, isto é, aliena-se, perde-se nos outros. Torna-se uma rês do rebanho, uma repetição, um número, um zero; ele é os outros; perece devorado pelo grupal, pelo associativo; a socialização exprime esse desespero, que é a forma mais grosseira de desesperar, e a que menos se percebe. Muitos desesperados deste jaez passam à história: mas, foram eles verdadeiramente eles mesmos? O desespero da finitude é o dos que parecem saber viver no mundo, juntar sua fortuna, fazer sua carreira. Nunca arriscaram nada, tendo já perdido a única coisa que se pode arriscar e que é o próprio ego; vegetaram sem risco. Mas, no reino do espírito não tiveram ego, são ninguéns; por mais egoístas que sejam, não são egos em face de Deus.
II — Como síntese de finito e de infinito, o ego é também uma síntese de necessidade e de possível, que são essenciais ao seu desenvolvimento dialético. Disto nascem duas novas formas de desespero:
O desespero do possível ou a falta de necessidade: O ego é necessitado porque ele é ele mesmo; é circunscrito pelo que é; mas ao mesmo tempo é dotado de possível porque deve realizar-se [4]. Quando se desvanece no possível este último se [190] desdobra ao infinito; desdobra-se ao infinito porque nunca se torna, nunca se realiza; falta-lhe o real; não toma consciência de si, porque este si, enquanto atual é necessidade; olha-se só no espelho do seu próprio possível. Há duas expressões principais desta perdição no possível: uma é o desejo, a nostalgia; e outra a melancolia imaginativa (esperança, temor ou angústia). A nostalgia nos leva como a perseguir um pássaro imaginário, que sempre nos foge e nos faz perder o caminho. Em vez de relacionar o possível com o necessário, o desejo nos faz perder o caminho do retorno a nós mesmos. — Na melancolia nos comprometemos a perseguir um possível da nossa angústia, que por fim nos faz perecer na extremidade que mais temíamos.
O desespero da necessidade ou a falta de possível: quando inversamente falta o possível e uma existência está confinada ao necessário, ela é desesperada em todos os instantes. Sem possível, ou seja, sem esperanças não se pode respirar; há uma sufocação; quando falta o possível tudo é banalidade, necessidade. É o caso de todos os deterministas, os fatalistas, que são desesperados, que perderam o próprio eu e para os quais tudo é necessidade, determinação. Nesses vulgares indivíduos, sejam eles filósofos ou cientistas não há alternância entre o possível e o necessário, não há respiração, re-spiratio. O ser do determinista não respira, porque a necessidade, o determinismo, são irrespiráveis; são asfixiantes. O desespero do determinista está em que, tendo perdido Deus [5], também se perdeu a si. O determinista não pode realmente ter Deus, porque Deus é o possível puro, a ausência de necessidade. Se a Deus tudo não fosse possível, não poderíamos rezar. Rezamos, porque tudo é possível a Deus.
Além dos fatalistas e deterministas, há os filisteus, que se confinam ao provável; vivem de certa soma banal de experiências, no curso rotineiro das cousas. O determinista desespera do possível. O filisteu vegeta na segurança da vulgaridade.
III — O desespero é visto também sob a categoria da consciência, porque pode ser inconsciente e consciente. É o progresso da consciência que mede a intensidade sempre crescente [191] do desespero; seu grau mais alto é o do Demônio, espírito puro, consciência absoluta. Seu grau mais baixo é uma espécie de inocência, que não suspeita sequer do seu estado.
A insconsciência do desespero: Vem da inconsciência que o homem tem de ser um espírito. Para a salvação é pior que o desespero consciente, porque está separado dela por um passo a mais, um passo negativo. É verdade que, na ignorância, o desesperado está de algum modo garantido, não sabendo que tem um ego; mas esta garantia se lhe dá em seu próprio dano. Este desespero é o mais frequente, sendo comum a pagãos antigos e modernos. Mas enquanto os pagãos antigos estavam orientados para o espírito, os modernos são a negação mesma do espírito; são o nada do espírito. — Toda existência que se ignora a si mesma, que não toma consciência de si em Deus, mas ao contrário se funda em abstrações nebulosas, como o Estado, a Nação, e se vê a si mesmo como um enigma rebelde à introspecção, tal existência é sempre desespero. E é desespero inconsciente de si.
A consciência do desespero; conhecimento de si e desespero não se excluem, pois o desespero cresce com a consciência; e quanto mais temos a consciência do desespero, mais desesperados estamos. O contrário do desespero é a fé. No plano da consciência o desespero pode assumir duas formas: a) não querer ser si mesmo ou desespero-fraqueza; b) querer ser si mesmo ou desespero-desafio. Há entre ambos gradação e não oposição.
O não querer ser si mesmo é uma forma passiva, dir-se-ia feminina do desespero; o desespero como que parece vir de fora, qual uma pressão do exterior. O desesperado vive a vida dos outros, não quer ser ele mesmo; ou, pior ainda, não quer nem mesmo ser um ego. Na escala mais baixa, quer ser algum outro, deseja para si um novo ego; trata-se aqui de um desespero do imediato que assume feições do cômico: imagine-se um ego, que é eterno, querer ser outro e iludir-se com a possibilidade da metamorfose. . . envolvido em boa sociedade, assumindo ares novos, olha com desgosto seu antigo ego, como se tivesse um novo, quando na realidade já não tem nenhum. É um desespero quanto ao temporal, o que não impede que o desesperado pense às vezes na vida eterna: mas o pastor o tranquiliza, garantindo-lhe a salvação eterna. Ao lado deste, há o desespero quanto ao eterno: no fundo é o mesmo, sendo [192] sempre um desespero de si mesmo; mas enquanto o do temporal era um desespero-fraqueza, este agora é um desespero da fraqueza; aqui o desesperado tem a consciência da sua fraqueza. Sabe que desespera do eterno, de si mesmo, da sua fraqueza em dar tanta importância ao temporal. Com relação ao caso anterior, há aqui um crescimento da consciência do ego. Todavia, este desesperado, na consciência que tem do seu estado, recusa-se a ser ele mesmo; tem seu ego atento a si mesmo, mas como que aferrolhado, e ilude-se a enganar o tempo. Quando guarda o segredo do seu ego dá-se a forma do desespero que se denomina hermetismo. O desesperado tem, neste passo, às vezes, uma necessidade sincera de solidão, ao contrário dos falsos homens que só podem viver aos rebanhos e necessitam da segurança da sociabilidade para comer, beber, dormir e amar. A Antiguidade e a Idade Média compreenderam e respeitaram o significado deste desejo de solidão; mas a nossa época é tão miserável que a solidão a faz tremer [6].
Mas a paixão do ego em penetrar a própria fraqueza pode ser, no fundo, orgulho, e este desespero acabará por se condensar numa forma superior que toca os limites do desafio; ou então busca o esquecimento nas grandes empresas, na orgia dos sentidos, na devassidão. Vontade mórbida de não ser si mesmo. Se permanece taciturno, seu primeiro risco é o suicídio; mas o suicídio deixa de ser uma porta quando tal desesperado diminui o hermetismo, comunicando-se com alguém; inútil recurso, porque a confidência não atenua o desespero, antes, pode aumentá-lo nos herméticos; precisavam de um confidente; agora, gostariam de matá-lo.
O desespero de querer ser si mesmo: é um desafio à eternidade, porque o querer ser si mesmo significa querer ser um Ego absolutamente idêntico a si, um Ego Absoluto, Deus. O desespero-fraqueza consiste em não querer ser si mesmo; mas se a consciência cresce e sabemos porque é que não queremos ser nós mesmos, tudo se inverte, e temos o desafio, justamente porque então o desesperado quer ser ele mesmo. O desafio não vem por intermédio da pressão ambiente, mas diretamente do [193] ego, do fundo de si. Requer a consciência de um Ego infinito, que é a mais abstrata das formas do ego e dos seus possíveis. O desesperado dilata sua parcela de eternidade e de infinito, quer ser criador de si mesmo, fazer de seu ego o ego que ele quer tornar-se; quer desembaraçar-se de toda relação com o Poder que o criou e usurpa ao Ego Infinito a ideia da sua existência. Quer ser Deus e não pode. Não reconhecendo poder acima dele, carece de segurança interior. E, no desesperado esforço que faz por ser ele mesmo, por ser Deus, acaba por se aniquilar no seu contrário dialético, perdendo seu próprio ego, não sendo mais um ego. Sua aparente soberania está sujeita a esta contradição dialética. Perde-se na fábula e não passa de um fazedor de experiências; o que empreende permanece um enigma para ele mesmo. Constrói no vácuo; apenas termina o edifício, este se desvanece.
Há um jogo dialético que vai do ego ativo ao passivo; do não querer ao querer ser si mesmo. O desespero do temporal, o desespero-fraqueza, são no fundo o desespero do eterno. E desesperar do eterno é querer substituir-se ao eterno, querer ser absolutamente si mesmo, querer sobrepor-se a Deus, tornando-se Deus. Então o desesperado nutre o seu próprio tormento, tornando-o insolente; rejeita o socorro para ser si mesmo; rejeita todo socorro, até o divino [7]; por maiores que sejam seus males, tem o orgulho de os cultivar, para ser si mesmo, para ser Deus. A eternidade assusta, porque teme, não que a eternidade lhe conserve seus males; mas ao contrário, teme que a eternidade lhe tire seu tormento, sem o qual não pode convencer-se a si mesmo de que é si mesmo.
Após essa exposição sumária das formas do desespero, facilmente vemos que todos os seres humanos ou quase todos, salvo raras exceções, são desesperados. Façamos em torno desta conclusão algumas considerações, começando por perguntar se o desespero não será por acaso uma doença essencialmente cristã, ou uma doença protestante, ou uma doença [194] universal. Nietzsche foi um dos mais poderosos acusadores do cristianismo, atribuindo-lhe o crime de ter trazido ao mundo a noção do pecado; poderia quase dizer-se que o cristianismo adoeceu o homem, dando-lhe desde a origem um complexo de culpa: o pecado original e os pecados pessoais; esta acusação dirigida ao cristianismo por Nietzsche, filho de um pastor e educado no protestantismo, pode ser um sintoma da solidão espiritual a que o protestantismo lançou o homem. Mas segundo Kierkegaard , o desespero é uma doença universal: nenhum homem fora do cristianismo pode ter vivido sem desespero e nenhum também, dentro do cristianismo, a menos que se tenha integrado em Deus, realizando sua síntese dialética, até encontrar o repouso definitivo; porém, o desespero cristão é pior do que o pagão, porque é consciente. O Cristianismo terá então revelado ao homem o significado de sua existência, o perigo da doença mortal, a consciência do desespero. Kierkegaard fecha no círculo de ferro do desespero até mesmo a profunda resignação dos santos, a paz interior que deles dimana, a vida silenciosa dos claustros, a penitência dos monges do deserto. Todavia, mesmo dialeticamente, o deserto, o mosteiro, a resignação, o silêncio, podem ser o caminho do encontro consigo mesmo, da auto-realização em Deus.
Tudo se passa como se Kierkegaard tivesse generalizado seu próprio desespero; foi assim também que Freud generalizou um drama particular de sua família, querendo estendê-lo a todos os homens; foi assim que Adler, reagindo contra a fraqueza, generalizou para todos o “complexo de inferioridade”. Essa vontade de não querer ser si mesmo se exprime em Kierkegaard pelo uso dos pseudônimos com que lançou seus livros; e esse desespero-desafio, vontade desesperada de querer ser si mesmo, se exprime em sua vida no esforço tremendo que fez por se preservar, por se integrar no infinito, recusando-se até mesmo ao casamento, para não deixar de ser si mesmo.
Mas a profunda lição que decorre da teoria do desespero e da análise da angústia, consiste em por bem a descoberto um dos traços fundamentais do Cristianismo, que é o seu anti-coletivismo, a sua moral fundada na unidade, na sacralidade da pessoa. O que se salva ou se perde é o indivíduo, não as massas, as sociedades, a humanidade ou as nações. E Kierkegaard, conquanto não tenha vivido em cheio no inferno contemporâneo, no reino das máquinas e dos robôs manifesta o mais [195] completo desprezo pelo coletivo, o socializante, o maciço. Sua filosofia está hoje mais viva que nunca, porque se ajusta como perfeito molde à situação geral do homem atual, que representa uma das formas mais baixas do desespero, o querer fugir debalde a si mesmo, perdendo-se no ruído, na falsa arte, na falsa fraternidade, na falsa caridade, em tudo o que é falso. A existência é hoje uma gigantesca falsificação, uma fraude contra o espírito, quando até a cultura se reduziu à ilustração, à política, à socialização, negação do homem. Um século em que ninguém é si mesmo.
Kierkegaard foi um homem só, diante da eternidade, e em face de Deus. Teve a clara consciência da sua solidão e teve a coragem de afrontá-la. Mas não confundamos a solidão diante do social, com a solidão espiritual. A solidão diante do social é uma imposição do espírito; mas a solidão espiritual é uma forma de desespero. O fato de, psicologicamente, nunca ter tido mãe, pode ter iniciado Kierkegaard na solidão espiritual em que viveu: simbolicamente a mãe representa a harmonia entre o humano e o divino; e Cristo veio ao mundo por obra do Espírito, mas por meio de Maria. A ausência do culto da Mãe é um dos elementos luteranos que marcam o desespero religioso de Kierkegaard; desde Lutero, o culto de Maria se tornou patrimônio da Igreja tradicional e esta, por um secreto instinto, dá a esse culto uma importância cada vez maior, porque justamente ele responde à orfandade e à solidão espiritual cada vez maior do homem. A mãe celeste supre as deficiências da mãe terrestre, como o símbolo da Mãe Perfeita, que sofre todas as dores da Paixão do Filho; a Mãe consola e ampara e atenua a hostilidade do mundo; cria em torno de si um halo de serenidade e um exemplo de resignação, que dificilmente se poderá querer qualificar de desespero; sua invocação repercute interiormente como a “saúde dos enfermos”, o “refúgio dos pecadores”, a “consoladora dos aflitos”, a “rosa mística”, a “torre ebúrnea”; sua presença estabelece uma comunhão espiritual que tem a força das presenças invisíveis. Mas o pietismo em que Kierkegaard foi educado não só não acolhe o culto da Virgem Maria, como ainda, juntamente com esse culto, aboliu toda ideia de mediação e intercessão; e é difícil então dizer a que cousa nebulosa se reduz a comunhão dos santos e o [198] Corpo Místico, cuja cabeça é Cristo. Na Igreja Católica, Maria e os Santos não se adoram, mas se veneram e se invocam; e seu mérito é sempre referido a Cristo.
Outro traço luterano que influiu no desespero de Kierkegaard, foi o livre-exame, que estabelece o subjetivismo religioso: porque, se posso interpretar os textos sagrados por mim mesmo, então, em rigor, já não acredito na palavra divina do texto e sim na minha interpretação do texto; acredito afinal apenas em mim mesmo. A partir deste ponto se erige necessariamente o princípio do sacerdócio universal, ou seja, do livre-exame decorre que cada qual é sacerdote e não há mais necessidade de hierarquia eclesiástica, que as igrejas protestantes só conservam como elemento estranho, herança do catolicismo. Kierkegaard, por isso, escrevia sermões, não para os outros, mas para si mesmo; porque, se todos são sacerdotes é contraditório pregar a outrem uma verdade que é minha e não dele: com isto aumenta a solidão espiritual do homem e quando ele toma consciência dessa solidão, achando-se só e inerme diante do silencioso infinito, sua atitude é a do desespero, porque sua única salvação seria a esperança, mas no terror de não ter esperança, nutre o desespero. Tal situação não é um privilégio protestante; nenhum cristão se salva sem Esperança. Mas, o desespero de não ter esperança se sublinha em Kierkegaard pelo idealismo da sua filosofia e, quase poderia dizer-se, pelo seu solipsismo.
A solidão espiritual do indivíduo, o seu sentimento de culpa, agravam-se nas denominações religiosas que aboliram o sacramento da penitência, a confissão. A falta deste sacramento fecha o indivíduo no seu mundo interior, sem nunca lhe dar a certeza da absolvição, nem achar o termo da expiação; não consegue sair do seu tormento, abrindo uma porta espiritual para o invisível, através de um mediador concreto que o absolva e lhe imponha uma penitência em nome de Cristo. Ora, por quanto esta subjetividade possa enriquecer as sutilezas da vida interior, introvertendo o crente no mistério de si mesmo, não é certamente de molde a lhe dar paz de espírito; ao contrário, essa introspecção em Kierkegaard é que caracteriza a consciência do desespero. E nem por menos, abolida a confissão sacramental, foi ela posteriormente suprida pela psicanálise. Sucedâneo laicizado e rebaixado da confissão, a [197] psicanálise se destina a mascarar, nos católicos a falta de fé que se generaliza, e nos protestantes a ausência do sacramento.
Numa página de seu Diario, de 1837, Kierkegaard atribui a seu pai uma necessidade nunca satisfeita de confissão: “Como seria bom ter um verdadeiro e velho confessor, a quem verdadeiramente poder abrir-se”. Com tais palavras, Kierkegaard se exprime a si mesmo, tendo tentado confessar-se em todos os seus livros; e tendo falado da necessidade de confidências nos desesperados herméticos, que depois têm vontade de matar o confidente: porque o desejo de confissão podia muito bem apresentar-se ao rigoroso protestante Søren Kierkegaard, como tentação católica.
Um exame de consciência profundo, como é o que deve preceder a confissão, quando o penitente mergulha no mais íntimo de si mesmo, reconhecendo suas culpas, em vez de procurar escondê-las ou racionalizá-las, deve equivaler justamente ao que os psicanalistas poderiam pretender que a psicanálise fosse. Mas, a confissão religiosa não é apenas uma auto-análise feita diante de algum taumaturgo profano e por este dirigida; a confissão é uma análise profunda de si mesmo, feita diante de Deus, a quem o penitente sabe que nada se oculta e de quem recebe a absolvição, através do seu confessor; a confissão exige a fé na presença de Deus e na divindade de Cristo.
Kierkegaard fez de si mesmo essa análise, como nenhum psicanalista poderia ter feito; teria faltado a todo psicólogo a terrível acuidade do filósofo, a sua penetração metafísica, a visão dos conjuntos e dos possíveis; mas, esta análise, Kierkegaard não a fez diante de um Deus presente e sim em face de um Deus abismal, de um abismo que chamava o abismo. Porque ele, o triste, o melancólico, o profundo Kierkegaard, que viveu toda a sua vida em face de Deus, teve dEle a noção de um Infinito Ausente. Um Infinito que, no entanto, atesta de modo absoluto a sua existência, porque a sua ausência faz nascer o desespero. Se Deus não existisse, não teria podido existir o desespero de Kierkegaard; nem ele teria podido, quem sabe, realizar finalmente a síntese superior do seu ego, na paz da transparência divina. [198]
[1] Nesta exposição procuramos conservar, no possível, a linguagem de Kierkegaard.
[2] Porque de fato, o humanitarismo, o coletivismo, compreendido como fusão do indivíduo no todo, é um dos sintomas mais vivos do desespero, do ódio a si mesmo, da vontade de auto-destruição; a pessoa se anula nos outros, deixa de ser indivíduo e passa a ser a célula de um todo coletivo onde todos morrem como num pântano.
[3] Rejeita Kierkegaard todo conhecimento “objetivo”; e se aplicarmos o princípio, o conhecimento científico não é conhecimento, porque conhecer “cientificamente” não é conhecer-se; e por isso é que os cientistas são capazes de explicar o mundo; mas não são capazes de se explicarem a si mesmos. Conhecer é conhecer conhecendo-se, senão conhecer é desconhecer-se, i.é, nada conhecer.
[4] Como terão notado os leitores, a doutrina aristotélica da potência e do ato, destinada a explicar o ser e o vir-a-ser, o finito e o infinito, o real e o possível, aqui vem expressa na linguagem hegeliana. Somente o possível adquiriu um sentido mais forte desde Leibniz e seus seguidores, para os quais o possível é mais do que o ser, porque compreende não só o que é, mas também o que pode vir-a-ser. Esqueceram que, ao contrário, é o ser que compreende o possível, porque o possível só pode ser possível no ser e como existente, isto é, como ser.
[5] Que por isso mesmo nega com violência.
[6] Tal a época em que ninguém mais pode estar sozinho: quando todas as iniciativas visam estimular a sociabilidade, quando os inventos técnicos, que Kierkegaard não conheceu, eliminaram a possibilidade do indivíduo viver consigo mesmo. Tal a miséria da alienação da personalidade.
[7] O que certamente refuta a ridícula teologia dos que entendem que o diabo está no inferno porque Deus não o quer perdoar. Ao contrário, o diabo é que não quer ser perdoado, porque ele, se usarmos a tese de Kierkegaard, é o desespero por excelência, o desespero de querer ser Deus.