Que a angústia apareça é aquilo ao redor do que tudo gira. O homem é uma síntese do psíquico e do corpóreo. Porém, uma síntese é inconcebível quando os dois termos não se põem de acordo num terceiro. Este terceiro é o espírito. Na inocência, o homem não é meramente um animal. De resto, se o fosse a qualquer momento de sua vida, jamais chegaria a ser homem. O espírito está, pois, presente, mas como espírito imediato, como sonhando. Enquanto se acha então presente é, de certa maneira, um poder hostil, pois perturba continuamente a relação entre alma e corpo, que decerto subsiste sem, porém, subsistir, já que só receberá subsistência graças ao espírito. De outra parte, o espírito é um poder amistoso, que quer precisamente constituir a relação. Qual é, pois, a relação do homem com este poder ambíguo, como se relaciona o espírito consigo mesmo e com sua condição? Ele se relaciona como angústia. O espírito não pode desembaraçar-se de si mesmo; tampouco pode apreender-se a si mesmo, enquanto ele se mantiver fora de si mesmo; nem tampouco o homem pode mergulhar no vegetativo, de jeito nenhum, pois ele está determinado, afinal, enquanto espírito; não pode fugir da angústia, pois ele a ama; amá-la propriamente ele não pode, porque ele foge dela. Agora a inocência está em seu ápice. Ela é ignorância, mas não uma brutalidade animal, e sim uma ignorância que é qualificada pelo espírito, mas que justamente é angústia, porque sua ignorância se refere a nada. Aqui não há nenhum saber sobre bem e mal etc., mas a realidade inteira do saber projeta-se na angústia como o enorme nada da ignorância.
(KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia : uma simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário. Tr. Álvaro Luiz Montenegro Valls. Petrópolis: Vozes, 2017, §5)