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Lavastine (Saint-Martin) – Introdução

terça-feira 8 de novembro de 2022, por Cardoso de Castro

  

Introdução de Philippe Lavastine   à edição de 1946 da obra de Louis-Claude de Saint-Martin  , Tableau Naturel des rapports qui existent entre Dieu, l’Homme et l’Univers, produzida pelas Éditions du Griffon d’Or.

« Nous ne pouvons nous lire que dans Dieu lui-même et nous comprendre que dans sa propre splendeur. » SAINT-MARTIN, Ecce homo, p. 19. / “Não podemos ler-nos a não ser no próprio Deus e compreender-nos a não ser em seu próprio esplendor.” SAINT-MARTIN, Ecce homo, p 19.

Louis-Claude de Saint-Martin, chamado “o Filósofo Desconhecido” (1743-1803), a quem Joseph de Maistre   chamou “o mais instruído, mais sábio e mais elegante dos teósofos”, foi “uma das almas mais religiosas e mais puras que já passaram pela terra”, como escreveu Henri Martin em sua História da França; “o representante mais completo; o intérprete mais profundo e mais eloquente que o misticismo já teve em nosso país e o que mais influência exerceu”, conforme escreveu Victor Cousin  , um homem que recebeu “luzes sublimes”, segundo disse Mme. de Staël, e reabilitou para a época de Diderot e de Holbach todos os “ídolos metafísicos” que estes acreditaram ter derrubado. Ele restabeleceu contra a opinião de Garat “a existência de um sentido inato e a distinção entre as sensações e o conhecimento” [1]. Restaurou a ideia de que o homem pode conhecer intimamente “o princípio de seu ser, Causa ativa e inteligente” [2]. Retomou a ideia da queda, decadência de um estado primitivo, de realeza, no qual o homem, fiel a seu Modelo divino, conformava-se exatamente à sua tarefa de ser um portador de seu Fogo (SER É SER) [3], no meio de sua criação. Mas Adão desobedeceu a essa lei de liberdade absoluta, cedeu aos atrativos de sua substância sensível, e confundiu seu ser a ponto de esquecer o ser de seu ser, cometendo o ato que Saint-Martin denomina “Adultério primitivo”. A Cabala   chama a Terra de “Divina Noiva”, destinando ao homem o papel de mediador entre o Céu e a Terra. Pois esta é, ela própria, “celestial”, conforme dizia a cavalaria, e o homem não tem, pois, o direito de unir-se a ela em estado de impureza. Se o Valete do Rei se torna o valete de sua própria sensualidade, macula a Dama. “Visto que atendeste à voz de tua mulher, maldita é a Terra por tua causa” [4], dizem as Sagradas Escrituras num resumo admirável. Realmente, se o homem cede à mulher, no momento em que ela cede a Satã, nesse momento é a ela mesma que ele traiu. Por causa disso, a Natureza inteira ficará alterada, tornar-se-á diferente do que é. Mas o homem, diz Saint-Martin, pode restaurar a integridade de seu ser, desnaturado hoje até o ponto da animalidade. Pode encontrar a conformidade com a fórmula de identidade absoluta de seu Nome, isto é, tornar a ser livre. Se ele introduziu sua mácula no Universo, interrompendo, desse modo, as relações naturais de sua União com Deus, a Terra amaldiçoada se vinga, voltando-se contra o homem para fazê-lo expiar. Ora, diz Saint-Martin, o sofrimento é o que existe de mais apropriado para “reativar” as centelhas divinas que ainda se encontram, imortais, no mais decaído dos seres. Pela graça do sofrimento, subsiste pois, para cada um de nós, uma oportunidade de poder operar o que ele denomina “a Grande Obra da mudança da vontade” ou, segundo uma outra perspectiva, o restabelecimento, na Ordem própria, das quatro letras do nome de Adão, que correspondiam primitivamente às quatro letras do Nome divino, os quatro aromas de peso igual dos quais se compõe o Perfume, sem o qual, diz o livro do Êxodo, o homem nada pode fazer [5].

Louis Claude de Saint-Martin foi, a princípio, discípulo de um taumaturgo que desempenhou na Franco-Maçonaria da época um papel de fundador: Martinez de Pasqually, o Grande-Mestre Soberano da Ordem dos Élus Cohens, cuja história nos foi contada por R. Le Forestier [6]. A Ordem propunha-se nada menos do que “suprir as deficiências da Igreja, que deveriam ser total no fim dos tempos” [7]. E nossos Iluminados Martinistas trabalham firme no desenvolvimento de seus Poderes sobre os Espíritos perversos e os Espíritos divinos — pois, ensina Martinez — ao homem foi dado o Poder sobre as duas classes de espíritos — a fim de constituir esse novo poder espiritual, o qual permitiria que se continuasse a “garantir as comunicações com o mundo sobrenatural”. Tal era a tarefa empreendida... Mas parece que Saint-Martin considerou imediatamente “violentos demais” os procedimentos teúrgicos empregados por seu mestre e enfadonhos os ritos da magia cerimonial. Então retirou-se para praticar exclusivamente o caminho que estava “mais de acordo com seu coração”, ao qual chamou “caminho interior”. Parece, até, que mais tarde ele se reprovou por essa deserção, quando a leitura mais aprofundada de Jacob Boehme   o convenceu de que “M. de Pasqually possuía a chave ativa de tudo aquilo que nosso caro Boehme expõe em suas teorias, mas que não nos achava em condições de possuir.” [8] A doutrina de Saint-Martin, hostil a qualquer supranaturalismo, assim como a qualquer materialismo, é “a doutrina das harmonias da luz da natureza e da graça” [9]. Ela nada tem de panteísmo, porém insiste na onipresença do divino. Saint-Martin havia, a princípio, planejado dar a um de seus livros, L’Esprit des Choses (O Espírito das Coisas), este título ainda mais significativo: Les Révélations Naturelles (As Revelações Naturais). Para ele é um princípio natural que “nenhuma verdade religiosa deixe de fazer sua revelação própria no coração do homem”, se ele souber manter o pensamento, “espelho divino”, limpo de qualquer mácula. “Mas os sacerdotes”, diz ele, “fizeram da palavra mistério uma muralha para a religião. Bem que podiam estender véus sobre os pontos mais importantes, pregar-lhes o desenvolvimento como preço do trabalho e da constância e com isso provar seus prosélitos, exercendo ao mesmo tempo a inteligência e o zelo; mas não deviam tornar essas descobertas tão impraticáveis a ponto de o universo ficar, por esse motivo, desencorajado... em uma palavra, no lugar deles, eu teria pregado um mistério como uma verdade velada e não como uma verdade impenetrável.” Assim, Saint-Martin apenas fazia com que se desse novamente à palavra mistério o seu sentido primitivo, e não vejo o que se poderia responder a ele, senão reconhecer que o conteúdo substancial da maior parte dos mistérios está hoje perdido. Por outro lado, será tão difícil discernir que o argumento costumeiro (a fé não seria mais um mérito se pudesse ser uma evidência) só é inevitável para a fé... costumeira, uma fé tão fraca que não sabe mais criar a própria evidência e manter-se nela através de uma luta incessante? Albéric Thomas [10] declarou ser “pueril sustentar que Saint-Martin seja o continuador de Martinez de Pasqually”, pois, ao abandonar seu mestre, ele se teria tornado “um místico quem repugna qualquer gênero ativo”.

Esse julgamento é por demais severo. E, ao menos, não existe vestígio algum de quietismo na doutrina do homem que glorificava no Cristo um “herói da vontade” e cuja obra não passou de uma exortação ao “exercício de todas as virtudes que deixem a alma pronta para assenhorear-se de suas luzes e a fazê-las frutificar para a glória da Fonte” [11]. Em seu Traité sur l’Influence des Signes (Tratado sobre a Influência dos Símbolos), ele expôs seu método de autoconhecimento por meio de provas ativas. E Caro apresenta uma citação suficiente dessas provas em seu Essai sur la Vie et la Doctrine de Saint-Martin (1850). Escreve Saint-Martin: “Aqui (no que concerne à Ciência de si mesmo) somos, ao mesmo tempo, o sujeito anatômico e o doente ferido em todos os membros, o que acontece depois de uma dissecação Completa, feita em todos nós, os vivos, e é somente através de atos perscrutadores que podemos atingir os confins da Ciência.” Assim, Saint-Martin preconiza uma observação ativa, dolorosa, que somente poderia arrancar gritos da alma que a ela se submete, e que lhes deve arrancá-los, o que Caro, chocado em seu Cartesianismo comenta assim: “Não se trata mais, como se vê, do método experimental, calmo, lúcido, instrumento da verdadeira ciência: é uma ciência mística!... O ato perscrutador, para falarmos essa língua estranha, é quase um ato cirúrgico. Não se estuda o homem no desenvolvimento de sua vida regular: ele é colocado num estado violento, numa crise. É preciso pressionar, esmagar, quebrar-lhe a alma para forçá-la a responder. É preciso fazer com que ele proclame seu mal em altas vozes. Eis o que Saint-Martin denomina uma prova ativa.” E conclui doutamente: “Estamos longe do verdadeiro método e do bom senso.” Entretanto, essa é a ideia profunda de Saint-Martin e o centro de sua doutrina, que não é mais do que a da Cruz, Arma do Conhecimento. É preciso “dar madeira para ter o pão”, segundo a expressão do Profeta. É preciso passar pelo lagar para se conseguir o licor da imortalidade. É preciso participar voluntariamente nos sofrimentos do Cordeiro, pois não temos o direito de “nos eximirmos de contribuir com ele na obra como se ele tivesse de executá-la sozinho e sem o concurso de nossa livre vontade”, escreveu Saint-Martin. É nessa perspectiva que ele voltará incansavelmente à ideia de que o destino do homem, o sentido mesmo da vida, é “anunciar Deus ao mundo manifestando seus poderes, e não usurpando-os” [12]. Estamos aqui nos antípodas da atitude passiva. Foi um primeiro “êxtase” que acarretou a queda do primeiro homem, dizia Martinez abertamente [13]. Esse é um ensinamento que Saint-Martin jamais esqueceu. Mas é também o ensinamento tradicional que a espiritualidade, na época de Mme. Guyon e de Dutoit, havia esquecido de maneira perigosa. E por que se pregava o distanciamento do mundo? É que não se sabia mais que não é “este mundo” que é mau, mas que é má a nossa escravização ao mundo, pela qual nós o traímos, privando-o da Única coisa que Deus espera de nós: o Serviço ativo de manifestar-lhe seu Nome. A linguagem da religião ativa é a da admiração, da adoração e da vontade de representar, de encarnar, de santificar aqui no mundo o Nome admirado e amado. Retomando um pensamento de Saint-Martin, escreveu Franz von Baader  : “As Sagradas Escrituras dizem que o homem foi criado para ser a imagem de Deus. Em outras palavras, que o homem consegue gerar ou realizar essa imagem nele e por ele...” Assim dizia Vivekananda: “Não se trata de nos tornarmos cada vez mais puros, mas de manifestarmos a pureza que está em nós.”

Uma pureza, uma liberdade imortal, é o poder recebido por todo homem juntamente com o dom da vida. Mas “o homem acreditou-se mortal”, escreveu Saint-Martin, “porque encontrou em si qualquer coisa de mortal.” É preciso ensinar-lhe que isso não era Ele. Tudo se acha, pois, na parábola dos talentos: “Minha palavra, diz o Senhor, não deve ser por vós a mim devolvida sem conteúdo.” Saint-Martin teve, em grau bem elevado, o sentido do “esforço que é o homem por inteiro”, como disse Blanc de Saint-Bonnet. Mas sua visão não se limita jamais à perspectiva religiosa de salvação individual. “O homem verdadeiro”, diz a tradição do Extremo Oriente, “não se detém a completar a si mesmo: ele completa também as coisas.” Tem, assim, um papel intermediário no Cosmos, sendo o mediador indispensável entre o Céu e a Terra. Ninguém pode tornar-se verus homo sem tornar-se filho de Deus. Mas, como disse Mestre Eckhart  , “houvesse mil filhos, não poderiam ser senão o Único Filho”. Foi isso o que Joseph de Maistre chamou de “cristianismo exaltado” de Saint-Martin. No princípio, houve um sacrifício divino, qualquer coisa como uma negação do Princípio até à fraqueza das coisas e esse ato afirmativo do amor - um Sim tem a natureza de ser na medida em que tem amor - foi a criação. Mas, como disse, Tauler  , “a saída só existe por causa do regresso, e o rebaixamento do Criador teve como finalidade realizar uma elevação deste último.” O Criador pôs-se à disposição da Criatura; permanece em sua dependência; espera, com sua Inteligência, que ela reconheça a dívida e que seja libertada. Todas as criaturas nascem como uma dívida para com o Senhor. “Se apenas”, exclamou Saint-Martin, “pudéssemos jamais esquecer que Ele não nos deve nada...” O homem cai, segundo Saint-Martin, todas as vezes que deixa de desejar um ser superior a si mesmo, pois “a alma só pode viver em admiração.” E é essa necessidade de admiração que é a prova de Deus. “Quando o homem não mais admira, está vazio e nulo. Está como que mergulhado num sono espesso e tenebroso.” A Cabala denomina esse mundo como “mundo da Separação...” Mas, se um homem coloca em si a resolução de uma outra Separação, de um sacrifício, ele afirma Deus: força-se a ser livre, opera o ato salvador. E o que Saint-Martin chamava, juntamente com seu Mestre, de Reintegração, pode agora cumprir-se devagar. É a Páscoa de luz. Ora, todas as tradições conhecem, ao lado do Ioga individual, esse tipo de Ioga cósmico em que, por uma Alquimia   sacrificial, que está na própria natureza das coisas, produz-se incessantemente um processo de Redenção do Divino. Quer queira o homem, quer não, ele colabora nela. Mas se não participa, ritual ou conscientemente, dessa exaltação, não terá parte alguma nessa glória. Pois o Universo só tem realidade porque exerce uma função de espelho do Admirável. Se este mundo for apenas uma imagem, um Quadro Natural, será uma imagem viva, e não um quadro morto. Na verdade, o Modelo ainda está vivo no Quadro.


[1Discurso em resposta ao cidadão Garat, professar de entendimento humano... (1795).

[2Des erreurs et de la Vérité (Sobre os erros e a Verdade) (1775).

[3Eheieh asher aheieh, o que se costuma traduzir como: sum qui sum, sou aquele que sou.

[4Gênesis 3:17 - Tradução de João Ferreira de Almeida. Sociedade Bíblica do Brasil. Edição revista e atualizada no Brasil. (N.T.)

[5Yod, Pai. He, Natureza divina do Filho. Vav, Espírito, Mãe. He, Natureza humana do Filho. Pela repetição do segundo termo, o tetragrama simboliza a persistência do ternário divino no quaternário de sua manifestação cósmica (descida e subida). O ano com seus dois equinócios, sendo apenas um e, no entanto, dois, como as duas naturezas do Cristo, a fim de separar para reunir inverno e verão, Céu e Terra, Rei e Rainha, é uma clara imagem disso.

[6La Franc-Maçonnerie ocultiste e l’Ordre des Elus Cohens (A Franco-Maçonaria ocultista e a Ordem dos Elus Cohens). (Elus Cohens significa ”sacerdotes eleitos”.

[7Citado por Auguste VIATTE: Les sources occultes du romantisme (Fontes ocultas do romantismo).

[8Carta a Kirchberger, 11 de julho de 1796. (Tradução direta do original da carta: “Fico mesmo tentado a crer que M. Pasq., de quem me falais (e que, já que é preciso dizê-lo, era nosso mestre), possuía a chave ativa de tudo o que o nosso caro B. expõe em suas teorias, mas que não nos acreditava em condições de sermos portadores dessas altas verdades.” - N.T.)

[9Segundo testemunho de Franz von Baader, citado por E. SUSINI: F. von Baader et le romantisme mystique.

[10Nouvelle notice historique sur le martinesisme et le martinisme. Biblioteque rosicrucienne (Nova notícia histórica sobre o martinesismo e o martnismo. Biblioteca Rosacruz), no. 5, 1900.

[11Nouvel homme (O Novo Homem).

[12Era a doutrina dos alquimistas, que viam na Cruz o crisol em que o mundo devia ser refundido. I.N.R.I lia-se: Igne Natura Renovatur Integra. (N.T.: Toda a Natureza será renovada pelo Fogo.)

[13“L’homme est tombé dans l’extase” (O homem caiu no êxtase. N.T.) (Traité de la Réintégration des êtres dans leurs premières propriétés spirituelles et divines.)