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Deus está morto

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Foi Hegel, e não Nietzsche  , quem? pela primeira vez declarou que o “sentimento? subjacente à religião na Era Moderna é o sentimento: Deus? está morto.” Sessenta? anos atrás, a Enciclopédia Britânica já se sentia segura para tratar a “metafísica” como filosofia? “sob seu nome mais desacreditado.” E se quisermos retraçar ainda mais esse descrédito?, encontraremos Kant   entre os mais destacados detratores, mas não o Kant da Crítica da razão pura, que Moses Mendelssohn chamou de “destruidor de tudo”, alies Zermalmer, mas o Kant em seus escritos pré-críticos, em que ele espontaneamente admite que “era seu destino? apaixonar-se pela metafísica”; mas em que fala também de seu “abismo? sem fundo”, seu “chão escorregadio” e sua terra? utópica de “leite e mel” (Schlaraffenland) onde vivem, como em uma [10] aeronave, os “visionários da razão”, de tal modo? que “não existe tolice que não possa servir de argumento para sabedoria? sem fundamentos.” Tudo o que se precisa dizer hoje em dia sobre esse assunto foi dito admiravelmente por Richard McKeon: na longa e complicada história do pensamento?, esta “ciência espantosa” nunca produziu “uma convicção generalizada em relação à (sua) função... nem, de fato?, um consenso significativo de opinião em relação ao seu tema?.” É bastante surpreendente perante esta história de difamação que o próprio termo? “metafísica” tenha sido capaz de sobreviver. Fica-se tentado a suspeitar que Kant estava certo quando, já muito velho, e após ter desferido um golpe fatal na “ciência espantosa”, profetizou que os homens certamente retomariam à metafísica “como se retoma à mulher? amada depois de uma briga” (wie zu einer entzweiten Geliebten).

Isso não me parece provável ou mesmo desejável. Antes, portanto, de começarmos aespecular sobre as possíveis vantagens de nossa atual situação, seriaprudeníe refletir sobre o que realmente queremos dizer quando observamos que a teologia?, a filosofia e a metafísica chegaram a um fim?. Certamente não é que Deus esteja morto, algo sobre o qual o nosso conhecimento? é tão pequeno quanto o que temos sobre a própria existência de Deus (tão pequeno, de fato, que mesmo a palavra? “existência” está mal? empregada); mas que a maneira pela qual Deus foi pensado durante milhares de anos não é mais convincente; se algo está morto, só pode ser? o pensamento tradicional sobre Deus. E algo semelhante vale também para o fim da filosofia metafísica: não que as velhas questões tão antigas quanto o próprio aparecimento do homem sobre a Terra tenham se tomado “sem sentido?”, mas a maneira pela qual foram feitas e respondidas perdeu a razoabilidade.

O que chegou a um fim foi a distinção básica entre o sensorial e o supra-sensorial, juntamente com a noção pelo menos tão antiga quanto Parmênides   de que o que quer que não seja dado? aos sentidos — Deus, ou o Ser, ou os Primeiros Princípios e Causas (archai), ou as Ideias — é mais real?, mais verdadeiro, mais significativo do que aquilo que aparece, que está não apenas além da percepção sensorial, mas acima do mundo? dos sentidos. O que está “morto” não é apenas a localização de tais “verdades eternas”, mas a própria distinção. Enquanto isso, os poucos defensores da metafísica, em um tom cada vez mais estridente, nos alertaram sobre o perigo do niilismo? inerente a essa afirmação. Embora disponham de um importante argumento a seu favor, eles próprios raramente o invocam: de fato, é verdade? que uma vez descartado o domínio supra-sensível, fica também aniquilado o seu oposto, o mundo das aparências tal como foi compreendido ao longo de tantos séculos. O sensível como é ainda compreendido pelos positivistas não pode sobreviver à morte? do supra-sensível. Ninguém sabia disso melhor do que Nietzsche, que, com sua descrição poética e metafórica do assassinato de Deus, [1] tanta confusão produziu sobre esse assunto. Numa importante passagem de O crepúsculo dos ídolos, ele esclarece o que a palavra “Deus” significava na história anterior. Era meramente um símbolo para o domínio supra-sensorial tal como foi compreendido pela metafísica; agora, em vez de “Deus”, utiliza a expressão “mundo verdadeiro” e diz: “Abolimos o mundo verdadeiro. O que permaneceu? Talvez o mundo das aparências? [11] Mas não! Junto com o mundo verdadeiro, abolimos também o mundo das aparências.” [2]

A descoberta de Nietzsche de que “a eliminação do supra-sensível elimina também o meramente sensível, e, portanto, a diferença entre eles” (Heidegger  ), [3] é tão óbvia que desafia qualquer tentativa de datá-la historicamente; qualquer pensamento que se construa em termos de dois mundos já implica que esses dois mundos estejam inseparavelmente ligados entre si. Assim, todos os modernos e elaborados argumentos contra o positivismo   foram antecipados pela simplicidade insuperável do pequeno diálogo de Demócrito entre o espírito?, o órgão do supra-sensível, e os sentidos. As percepções sensoriais são ilusões, diz o espírito; elas mudam segundo as condições de nosso corpo?; doce, amargo, cor?, e assim por diante, existem somente nomo, por convenção entre os homens, e não physei, segundo a verdadeira natureza? das aparências. Ao que os sentidos respondem: “Espírito infeliz! Tu nos derrotas enquanto de nós obténs a tua evidência [pisteis, tudo em que se pode confiar]? Nossa derrota será a tua ruína.” [4] Em outras palavras, uma vez que o equilíbrio sempre precário entre os dois mundos está perdido, não importa se o “verdadeiro mundo” aboliu o “mundo aparente”, ou se foi o contrário; rompe-se todo o quadro de referências em que nosso pensamento estava acostumado a se orientar. Nesses termos, nada? mais parece fazer muito sentido. [ArendtVE:9-11]

Observações

[1The Gay Science, livro III, n° 125, “The madman”.

[2“How the ‘True World’ finally became a fable”, 6.

[3“Nietzsches Wort ‘Gott ist tot’”, in Holzwege, Frankfurt, 1962, p. 193.

[4B125 e B9.