Uma vez que o problema do ser desemboca essencialmente no problema de Deus, as controvérsias travadas em torno do ser acabam por tornar-se em controvérsias em torno de Deus. Por isso, toda filosofia, com sua resposta à pergunta sobre o ser, toma, de algum modo, posição em referência a Deus. Sua noção de Deus mostra, da maneira mais profunda, de que espírito é filha e torna patente, tanto quanto possível, sua grandeza e sua orientação. Esta pedra de toque evidencia que a “philosophia perennis” (Filosofia) supera de longe as demais filosofias, no que tange ao conteúdo de verdade.
Deus é o fundamento primário (Ur-grund) da multiplicidade de entes, que constitui o universo (Mundo), até mesmo de todo ente em geral. Tudo se fundamenta nele, atendendo a que todos os seres provêm dele, como Causa eficiente primeira (causa, criação), e por Ele são atraídos como último fim, atendendo a que todos participam de sua plenitude (participação), oferecendo assim uma imagem ou, ao menos, um rasto de sua magnificência. O fundamento primário, enquanto tal, não se baseia em nenhum outro, mas só em sisi mesmo; a Causa primeira e última de todo ente deve ser in-causada, existe em virtude da absoluta necessidade de sua própria essência (a-se-itas: ascidade: ser-por-si). Pelo que, em Deus coincidem plenamente essência e existência; Ele não só tem ser como um ente, ou seja, como possuidor-de-ser, mas é o próprio Ser em pessoa, o Ser subsistente (subsistência). Nisto consiste a essência metafísica de Deus, que o constitui intimamente e o destaca de tudo o mais.
Em oposição a ela, sua essência física compreende, juntamente com o ser subsistente, todas as suas perfeições, implicadas neste como em sua raiz mais íntima. Na medida em que estas perfeições determinam mais proximamente o Ser subsistente, denominamo-las atributos (propriedades) divinos. Não formam estes, em Deus, uma pluralidade; são, antes, uma simples (simplicidade) e, não obstante, infinita plenitude. Como não intuímos imediatamente esta plenitude, nem a abarcamos numa só olhada, somos obrigados a formar dela uma imagem fragmentária, e isso imediatamente, ou seja, por meio de nossos conceitos oriundos das coisas terrenas (ideia de Deus). Mais exatamente, só podem ser atribuídas a Deus as perfeições paras, as que, por sua essência, designam um ser puro (sabedoria, bondade, poder); não porém as perfeições mistas, em cuja essência o ser se imiscui com o não-ser ou com a imperfeição (p. ex., os afetos sensíveis que só podem ser atribuídos a Deus em sentido metafórico (analogia).
Só a consideração dos atributos divinos em particular permite que brilhe ante nós a noção de Deus em toda sua sublimidade. Enquanto Ser em pessoa, Deus é a plenitude integral do ser e, portanto, é infinito. Nele, o ser não está limitado por qualquer espécie de não-ser; por isso, Ele é ser puro, Atualidade pura (actus purus; ato, potência), a qual, visto o devir pressupor um não-ser ainda, desde o princípio repousa em si, completa. Por isso, Deus sobrepuja inefavelmente o ente finito, que está em devir (transcendência), sendo todavia simultaneamente imanente a este, como seu fundamento último e primitivo (imanência). Como a corporeidade (o ser-corpo) inclui essencialmente não-ser, Deus é espírito puro e, por conseguinte, um ser pessoal (pessoa) o qual, conhecendo-se e amando-se, se possui e governa tudo o mais com sua providência. O homem entra em relação pessoal com esta altíssima Majestade por meio da religião, a qual prepara a perfeição suprema do homem pela posse de Deus na outra vida (imortalidade).
Todo desvio desta depurada concepção da Divindade significa um fracasso. Isto aplica-se tanto ao politeísmo (teísmo) quanto ao panteísmo, que submerge Deus no devir mundano, sem o distinguir suficientemente deste, e amiúde o converte num fundamento primitivo, cego e impessoal (Schopenhauer). Afim ao panteísmo é a concepção, segundo a qual Deus é causa de si mesmo (causa sui: Spinoza), produz-se a si mesmo (auto-geração) ou se põe a si mesmo, p. ex., pelo pensamento (Fichte, Schell). Contudo erram ainda mais os que não vêem em Deus senão uma lei abstrata do universo (Renan, Taine), ou a suma de todas as leis (nomoteísmo), ou o mundo dos valores (filosofia dos valores). — Lotz. [Brugger]
DEUS – examinaremos neste artigo 1) o problema de Deus, dando especial atenção às ideias principais que o homem teve, pelo menos no ocidente. 2) a questão da natureza de Deus tal como foi explicada por teólogos e filósofos, e 3) as provas da existência de Deus.
1) O PROBLEMA DE DEUS: consideraremos aqui três ideias: a religiosa, a filosófica e a vulgar. a primeira sublinha em Deus a relação ou, para alguns autores, a falta de relação em que se encontra relativamente ao homem. Daí a insistência em motivos tais como a existência da criaturidade, o caráter pessoal do divino, a dependência absoluta – ou a transcendência absoluta -, etc. A segunda sublinha a relação de Deus relativamente ao mundo. por isso Deus é visto, segundo esta ideia, como um absoluto, como fundamento das existências, como causa primeira, como finalidade suprema, etc. A terceira destaca o modo como Deus surge na existência quotidiana, quer de uma forma constante, como horizonte permanente, quer de uma forma ocasional. Os meios de apropriação de Deus são também diferentes, de acordo com as ideias correspondentes: na primeira, Deus é sentido como no fundo da própria personalidade, a qual, por outro lado, se considera indigna d’Ele; na segunda, Deus é pensado como ente supremo; na terceira, é invocado como Pai. Convém notar que as três ideias em questão não costumam existir separadamente: o homem religioso, o filósofo e o homem vulgar podem coexistir numa mesma personalidade humana.
O filósofo tende a fazer de Deus objeto de especulação racional. Isto explica as conhecidas concepções dos filósofos, algumas das quais vamos mencionar: Deus é um ente infinito; é o que é em si e por si se concebe. É um absoluto ou, melhor dizendo, o Absoluto; é o princípio do universo; o Primeiro Motor, a causa primeira; é o Espírito ou a Razão universais; é o Bem; é o Uno; é o que está para além de todo o ser; é o fundamento do mundo e até o próprio mundo entendido no seu fundamento; é a finalidade para que tudo tende, etc. Algumas destas concepções foram elaboradas e aperfeiçoadas por filósofos cristãos; outras procedem da tradição grega; outras parece que estavam íntimas em certas estruturas permanentes da razão humana.
2) A NATUREZA DE DEUS: levantam-se vários problemas a este respeito. Entre eles destacamos: a) a questão da relação entre a omnipotência divina e a liberdade humana; b) a questão da relação entre a omnisciência e a omnipotência. a) no decurso da história, defrontaram-se duas posições fundamentais. Segundo uma, a omnipotência de Deus suprime por completo a liberdade humana. Segundo a outra, a liberdade humana não é incompatível com a omnipotência de Deus. A primeira posição pode formular-se com propósitos muito diversos: para sublinhar pura e simplesmente a impossibilidade de comparar os atributos de Deus com os do homem ou de qualquer das coisas criadas e destacar deste modo a surpreendente grandeza de Deus; para mostrar que, se quiser manter a liberdade humana, não há outro remédio senão atenuar a doutrina da absoluta omnipotência, ou para pôr em prova que o alvedrio é inteiramente servo e que a salvação do homem depende inteiramente da “arbitrariedade divina”, etc. Em contrapartida, costuma formular-se a segunda posição com um único propósito: o desejo de salvar, ao mesmo tempo, um dos atributos de Deus e uma das propriedades humanas mais essenciais. Argui-se, para o efeito, que por ter criado o mundo num ato de amor, unido a um ato de poder e de sabedoria, Deus outorgou ao homem uma liberdade da qual este pode usar ou abusar, que o aproxima ou o afasta de Deus, mas que, em todo o caso, lhe outorga uma dignidade suprema à qual não pode renunciar sem deixar de ser homem.
b) um problema importante é o de saber o que é que constitui Deus como tal. Contudo note-se que não se trata de saber o que Deus é realmente, mas só o que é para nós, segundo o nosso intelecto. Foram várias as respostas. 1) a essência divina é constituída, como foi proposto por alguns autores nominalistas, pela reunião atual de todas as perfeições divinas; 2) a essência de Deus é a asseidade ou o ser por si; 3) a essência de Deus é a infinitude; 4) a pessoa divina é radicalmente omnipotente. 5) a pessoa divina é, acima de tudo, omnisciente; comum a estas posições é a ideia de que Deus é uma realidade incorporal, simples, uma personalidade, a atualidade pura e a perfeição radical. Comum a elas, é também a afirmação de que Deus é a infinitude, bondade, verdade e amor supremos. As posições mais fundamentais são as duas últimas.
Há quem tenha defendido que a omnipotência de Deus não pode ser limitada por nada, que se trata de uma potência absoluta. As próprias “verdades eternas” têm de estar submetidas ao poder de Deus; melhor dizendo, são o resultado de um decreto divino arbitrário. Portanto, o constitutivo da natureza de Deus é a vontade absoluta: verdades eternas, leis da natureza e liberdade humana dependem dessa Vontade; chama-se por isso a essa concepção voluntarismo.
Há quem acentue mais o saber do que o poder de Deus. Quando esta posição é levada às suas últimas consequências, acaba-se por identificar Deus com as “verdades eternas” ou com as “leis do universo”. Por isso, os inimigos desta concepção argumentam que leva imediatamente à negação da existência de Deus. Os partidários dela, em contrapartida, assinalam que Deus não pode deixar de ser Saber Sumo. À concepção em questão foi dado o nome de intelectualismo.
3) PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS: as provas a que chamámos tradicionais podem dividir-se em três grupos:
1) A prova de Santo Anselmo, que, desde Kant, se chama ontológica. Muitos filósofos aderiram a ela de um ou outro modo: Descartes, Malebranche, Leibniz, Hegel.
2) A prova a posteriori não é, usualmente, uma prova empírica, pois baseia-se no argumento ou série de argumentos a posteriori de caráter racional. Os defensores desta prova – entre eles S. Tomás – insistem em que a existência de Deus é algo evidente por si, mas não o é quanto a nós. Os partidários desta prova dividem, com efeito, qualquer proposição analítica imediata em dois grupos: a) proposição cujo predicado está incluído no conceito de sujeito (conceito que não possuímos); b) proposição analítica imediata também relativamente ao nosso entendimento. Ora, visto que a proposição “Deus existe” é só analítica imediata considerada em si, já que em Deus são uma e a mesma coisa real e formalmente essência e existência, devem procurar-se para a sua demonstração outros argumentos além de declará-la evidente. Entre esses argumentos, para nós, destacam-se as cinco vias de S. Tomás.
3) a prova a priori, tal como foi defendida por João Duns Escoto e outros autores. Segundo eles, para que uma proposição seja evidente por si, é mister que possamos conhecê-la também imediatamente e enunciá-la pela mera explicação dos seus termos. Observou-se que a escolha do tipo de prova depende a concepção que se tenha de Deus (ou, pelo menos, da sua relação com a criatura) e da inteligência humana que a apreende. [Ferrater]
(gr. theos; lat. Deus; in. God; fr. Dieu; al. Gott; it. Dió).
São duas as qualificações fundamentais que os filósofos (e não só elas) atribuíram e atribuem a Deus: a de Causa e a de Bem. Na primeira, Deus é o princípio que torna possível o mundo ou o ser em geral. Na segunda, é a fonte ou a garantia de tudo o que há de excelente no mundo, sobretudo no mundo humano. Trata-se, como é óbvio, de qualificações bastante genéricas que só têm sentido preciso no âmbito das filosofias que as empregam. Podemos, por isso, distinguir as várias concepções de Deus partindo dos significados específicos que essas qualificações adquirem; portanto: 1) quanto à relação de Deus com o mundo, pela qual Deus é Causa; e 2) quanto à relação de Deus com a ordem moral, pela qual Deus é Bem. Como, ademais, é possível conceber que da divindade podem participar vários entes ou que ela é própria de um só ente, e como, por outro lado, é possível admitir várias vias de acesso do homem a Deus, também é possível admitir outros dois modos de distinguir as concepções de Deus; 3) quanto à relação de Deus consigo mesmo, ou seja, com sua divindade; 4) quanto aos acessos possíveis do homem a Deus. Esses quatro modos de distinguir as concepções de Deus, que podem ser encontrados ao longo da história da filosofia ocidental, têm a vantagem de seguir com suficiente fidelidade as interações históricas da noção em exame, ou seja, os pontos que serviram de base para as principais disputas filosóficas.
1. DEUS E O MUNDO.
Concepção para a qual Deus como causa é o aspecto fundamental de Deus: as formas do atets-mo são negações da causalidade de Deus Mas na história da filosofia essa causalidade foi entendida de maneiras diferentes e segundo essas diferenças é possível distinguir as três concepções seguintes: A) Deus como criador da ordem do mundo, como causa ordenadora; B) Deus como natureza do mundo, como causa neces-sitante, C) Deus como criador do mundo, como causa criadora.
A) Deus como criador da ordem do mundo. Essa concepção é provavelmente a mais antiga da história da filosofia; o primeiro a enunciá-la claramente foi Anaxágoras, que considerou o Intelecto como divindade que ordena o mundo (Aécio, I, 7, 14). O caráter criador do Intelecto decorre do fato de Anaxágoras negar, como afirma Alexandre (De fato, 2), a existência de um destino necessitante; isso significa que considerava o Intelecto como causa livre, portanto criadora (v. criação). Mas não se tratava certamente de uma criação a partir do nada, assim como não se tratou de criação a partir do nada na doutrina de Platão e de Aristóteles. Para Platão, Deus é o Artífice ou Demiurgo do mundo, cujo poder criador é limitado (1) pelo modelo que ele imita e que é o mundo das substâncias ou realidades eternas (Tim., 29 a) e (2) pela matriz material que, com sua necessidade, resiste à obra inteligente do Demiurgo (Ibid., 50 d ss.). As características da divindade platônica são, além do poder superior (mas, pelos motivos acima, não ilimitado), a inteligência e a bondade. Graças a esta última, criação é um ato livre, que tem em vista a multiplicação do bem (Ibid., 29 e). A doutrina de Aristóteles não difere substancialmente da platônica. Sobretudo nos últimos diálogos (p. ex., Pol., 269 e), Platão insistira no conceito de Deus como primeiro motor ou “guia de todas as coisas que se movem” e é precisamente esse conceito que se torna ponto de partida da teologia aristotélica. Para Aristóteles, Deus é o primeiro motor ao qual necessariamente se filia a cadeia dos movimentos (Fís., VIII, 7; Met., XII, 6); ou a primeira causa de que decorrem séries causais, inclusive a das causas finais (Met., II, 2). Mas é justamente no sentido de causa final que Deus é criador da ordem do universo, que Aristóteles compara a uma família ou a um exército. “Todas as coisas estão ordenadas uma em relação à outra, mas nem todas do mesmo modo: os peixes, os pássaros, as plantas têm ordens diferentes. Todavia, uma coisa não está para outra como se nada tivesse a ver com outras, mas tudo está coordenado com um único ser. Isso é, p. ex., o que ocorre numa casa onde os homens livres não podem fazer o que lhes apraz, mas onde todas as coisas, ou pelo menos a maior parte delas, acontece segundo uma ordem, ao passo que os escravos e os animais contribuem com pouco para o bem-estar comum e fazem muito por acaso” (Ibid., XII, 10, 1075 a 12). Do mesmo modo, o bem de um exército consiste “ao mesmo tempo em sua ordem e em seu comandante, mas especialmente neste último, pois ele não é o resultado da ordem, mas é a ordem que depende dele” (Ibid, 1075 a 13). Deus, portanto, é como o comandante de um exército ou o chefe de uma casa: é quem produz e mantém a ordem que constitui a bondade do conjunto. Essa é também a doutrina de Platão; exposta de forma menos mítica, ou seja, fora do mito teogônico. Aristóteles não atribui novas características à divindade, mas esclarece e determina as que Platão já lhe atribuíra. Assim, Deus é não só o primeiro motor: é motor imóvel e, como tal, eterno e afastado das coisas sensíveis; não tem grandeza (logo, é indivisível, e sem partes) e é dotado da potência necessária para mover o mundo por tempo infinito (Ibid., VIII, 7, 1073 a, 3). Não é só intelecto, como já dissera Platão: é inteligência sempre em ato, cujo objeto é o objeto mais alto e excelente, ou seja, ela mesma; é intelecto do intelecto ou pensamento do pensamento (Ibid., XII, 9, 1074 b 30 ss.). O intelecto na verdade também pode cochilar e ter por objeto coisas inferiores a si mesmo: o intelecto divino deve ficar acima dessas eventualidades. Além disso, a distinção entre a potência e o ato e a reconhecida superioridade do ato em relação à potência permitem que Aristóteles defina Deus como ato puro, atualidade absolutamente desprovida de matéria ou de potencialidade, dando assim um significado mais rigoroso e filosófico à “incorporeidade” da inteligência divina, já reconhecida a partir de Ana-xágoras (Ibid., XII, 6,1071 b, 12 ss.). Aristóteles esclareceu também o conceito da bem-aven-turança divina: “Deus”, diz ele, “experimenta sempre Orna felicidade simples e única porque a atividade (que é acompanhado pelo prazer) não consiste só no movimento, mas também na imobilidade, e a felicidade está mais no repouso que no movimento” (Et. Nic, VII, 1154 b 26). Enfim, a perfeição de Deus torna-o auto-suficiente: ao contrário do homem, não tem necessidade de amigos: “A causa disso é que para nós o bem vem de algo que não somos nós, mas ele é o bem para si mesmo” (Et. eud., VII, 12, 1245 b 17). Embora muitas dessas determinações tenham sido adotadas e utilizadas por doutrinas diferentes, é fácil perceber que estão estreitamente vinculadas ao conceito platônico-aristotélico de criador da ordem do mundo. Tanto para Aristóteles quanto para Platão, a estrutura substancial do universo está além dos limites da criação divina. Certamente, a imagem da divindade que assume como modelo de sua ação criadora o mundo das substâncias eternas não tem mais sentido para Aristóteles (e para o próprio Platão era um “mito”, um discurso simplesmente “verossímil”). Mas para Platão, assim como para Aristóteles, a estrutura
substancial do universo é eterna, ou seja, não suscetível de princípio ou de fim. De fato, só a coisa individual composta de matéria e forma tem nascimento e morte, segundo Aristóteles, ao passo que a substância que é forma ou razão de ser, ou a que é matéria, não nasce nem perece (Met., VIII, 1,1042 a 30). Deus mesmo participa dessa eternidade da substância, pois ele é substância (Ibid., XII, 7, 1073 a 3) e substância no mesmo sentido em que o são as substâncias finitas (Et. Nic, I, 6, 1096 a 24). A superioridade de Deus consiste apenas na perfeição de sua vida, não em sua realidade ou em seu ser, pois, como diz Aristóteles, “nenhuma substância é mais ou menos substância do que outra” (Cal, V, 2 b 25).
A noção de Deus como criador da ordem do mundo, que chegou à plenitude em Aristóteles, não foi reproposta nos mesmos termos ao longo da história da filosofia. O panteísmo estoico e neoplatônico, antes, e o criacionismo cristão, depois, impõem outras concepções de Deus que se alternam com mais frequência na história do pensamento. A ela, porém, podem filiar-se as concepções de Deus que, no mundo moderno, tendem a reconhecer limitações nos poderes da divindade e a excluir dela os caracteres infinitos e absolutos. Essa é, p. ex., a concepção de muitos iluministas e que foi bem expressa por Voltaire: “Toda obra que nos mostra os meios e um fim revela um artífice: logo, este universo composto de meios, cada um com seu fim, revela um artífice poderosíssimo e inteligentíssimo” (Dictionnairephilosophique, art. Deus; Traité de métaphysique, 2). Mas a qualificação de artífice é também a única que Voltaire considera atribuível a Deus De fato, ele se recusa a admitir qualquer intervenção de Deus no homem e no mundo moral. Deus é somente o autor da ordem do mundo; o bem e o mal não são mandamentos divinos, mas atributos do que é útil ou prejudicial à sociedade (Traité, 9). No séc. XIX uma concepção análoga foi defendida por Stuart Mill: para este, um Deus finito, limitado em seu poder pela matéria e pela forma que utilizou, é tudo o que a experiência do mundo permite concluir acerca de um criador do mundo (Three Essays on Religion, 1874). Peirce e James repropuseram, mais recentemente, um conceito análogo de Deus Peirce recusa-se a considerá-lo em sentido próprio onisciente e onipotente (Coll. Pap., 6. 508-09). James, por sua vez, afirma que “Deus não é o absoluto, mas é ele mesmo parte de um sistema, e que sua função não é inteiramente diferente da função das outras partes menores, portanto da nossa. Tendo um ambiente, existindo no tempo e operando na história como nós, ele deixa de ser diferente de tudo o que é humano, escapa à estática intemporalidade do perfeito absoluto” (A Pluralistic Universe, 1909, p. 318). Embora desse modo Deus seja investido de mais caracteres humanos do que nas doutrinas de Platão ou Aristóteles, o conceito clássico do Deus ordenador, cujo poder é limitado por certas estruturas substanciais, ainda é o traço característico dessas concepções.
B) Deus como natureza do mundo. Sob este título podem ser agrupadas todas as concepções de Deus que de algum modo admitam uma relação intrínseca, substancial ou essencial dele com o mundo, de tal maneira que o mundo seja entendido como continuação ou prolongamento da vida de Deus Deve-se notar que a própria concepção de Deus como criador da ordem do mundo, mesmo demarcando uma separação entre o mundo e Deus, estabelece a semelhança entre eles. Platão chama o mundo de “Deus gerado” (Tira., 34 b), e Aristóteles relata com aprovação a crença comum de que os corpos celestes são deuses e de que “o divino abrange toda a natureza” (Met., XII, 8, 1074 b 2). Mas essa conexão torna-se mais estreita e essencial na concepção de que ora nos ocupamos e que pode ser designada genericamente pelo nome de panteísmo. Nesta, um laço necessário ata o mundo a Deus e Deus ao mundo: Deus não seria Deus sem o mundo, assim como o mundo não seria mundo sem Deus Isso não implica, porém, a perfeita identidade e coincidência entre Deus e o mundo; ou melhor, essa identidade ou coincidência só se verifica no sentido que vai do mundo para Deus e não no que vai de Deus para o mundo. Em outros termos, o mundo não é inteiramente Deus: está incluído na vida divina como seu elemento necessário, mas não a esgota. A exigência apresentada pelo chamado panenteísmo na realidade é típica de todas as formas do panteísmo histórico, como se poderá facilmente verificar pela digressão que segue. A característica do panteísmo pode ser expressa dizendo que ele não estabelece nenhuma diferença entre causalidade divina e causalidade natural. No interior do panteísmo, podem-se distinguir três modos principais de vincular mundo e Deus, quais sejam: 1) o mundo é a emanação de Deus; 2) o mundo é a manifestação ou revelação de Deus; 3) o mundo é a realização de Deus O primeiro e o segundo desses modos via de regra se unem, o mesmo ocorrendo com o segundo e o terceiro; não se acham, porém, explicitamente vinculados o primeiro e o terceiro.
O panteísmo assumiu pela primeira vez forma acabada no estoicismo. Os estoicos “chamavam Deus de mundo, sendo Deus a qualidade própria de toda substância, imortal e não gerado, criador da ordem universal, o qual, segundo os ciclos dos tempos, consuma em si toda a realidade e novamente a gera de si” (D.L., VII, 137). E diziam que “Deus impregna todo o universo e toma vários nomes conforme as matérias diferentes em que penetra” (Aécio, Plac, 1,7, 33). Os estoicos também afirmavam que Deus é corpo (Stoicorum fragm., ed. Arnim, II, pp. 306-11), porque só o corpo pode ser causa, pode agir (Dióg. L., VII, 56): doutrina que retoma em Tertuliano (De carne Christi, 11; De anima, 18) e em Hobbes (Leviath., I, 12). O reconhecimento da causalidade de Deus no mundo torna-o partícipe da condição geral da causalidade mundana, ou seja, da corporeidade. Os precedentes dessa doutrina foram vistos tanto na doutrina de Heráclito, do Logos ou Fogo divino que tudo penetra (Fr. 30, 50, Diels), quanto na identificação feita por Xenófanes de Colofão entre Deus e o Uno e o Todo (Simplício, Fís., 22). Mas a expressão mais madura do panteísmo deve ser vista no neoplatonismo, particularmente em Plotino. Este elabora, ainda que em forma de imagens, a noção de emanação que se tornaria indispensável ao panteísmo, permitindo entender o modo como de Deus deriva um mundo que não se separa dele. A relação entre Deus e o mundo é assim esclarecida: 1) o mundo deriva, necessariamente, de Deus assim como o perfume emana necessariamente do corpo perfumado, e a luz, de sua fonte; 2) por esse laço de necessidade, o mundo é parte ou aspecto de Deus, ainda que parte diminuída ou inferior, pois o perfume ou a luz que se afasta de sua fonte é inferior à própria fonte; 3) Deus é superior ao mundo, embora idêntico a ele, na medida em que possui ordem, perfeição e beleza. Esses são os caracteres que Plotino atribui a Deus Deus é o Uno em face dos muitos que dele emanam (Enn., III, 8, 9). “Ele é a potência de tudo; está acima da vida e é causa da vida; a atividade da vida, que é tudo, não é a realidade primeira, mas deriva do Uno como de uma fonte” (Ibid., III, 8, 10).
Do Uno emana, em primeiro lugar, a Inteligência na qual residem as estruturas substanciais do ser e que, por isso, Plotino identifica com o próprio Ser, e, em segundo lugar, a Alma, que penetra e governa o mundo (Ibid., V, 1, 6). O mundo, emanado da Inteligência e governado pela Alma, é cópia perfeita da divindade emanadora, sendo eterno e incorruptível como o modelo (Ibid, V, 81, 12); ele “é um Deus bem-aventurado que se basta a si mesmo” (Ibid., III, 5,5). A noção de emanação, para a qual “o ser gerado existe necessariamente junto com o seu gerador e só é separado dele por sua própria alteridade” (Ibid., V, 1, 6), vê o mundo como parte integrante de Deus, e Deus como origem única do processo emanativo, algo superior ao mundo e inexprimível nos termos do mundo. Deus propriamente não é nem ser ou substância, nem vida, ou inteligência, por ser superior a essas coisas: elas, porém como emanações suas, fazem parte dele. Proclo cunha as palavras adequadas: “Deus é supersubstancial, super-vital e superinteligente” (Inst. theol, 115); essas palavras se tornam nos primórdios da Escolástica cristã com Scotus Erigena: para ele, Deus não é substância, mas supersubstância; não é verdade, mas superverdade, etc. (Dedivis. nat, I, 14). Mas, ao mesmo tempo, o mundo é Deus, ou melhor, como diz Scotus Erigena, manifestação de Deus, teofania. O processo da teofania vai de Deus ao Verbo, do Verbo ao mundo e do mundo retorna a Deus Desse modo, “Deus está acima de todas as coisas e em todas elas; é a substância de todas as coisas porque só ele é; e conquanto seja tudo em todas as coisas, não deixa de ser tudo fora de todas as coisas” (Ibid., IV, 5).
A característica da divindade nessa concepção é sua “supersubstancialidade”, seu ser acima do ser (de qualquer espécie de realidade). Por essa característica, já em Plotino, Deus só parece acessível a um arrebatamento excepcional ou sobrenatural, ou seja, ao êxtase místico (Enn., VI, 7, 35). Por esse mesmo caráter, Deus não pode ser objeto de uma ciência positiva, que determine sua natureza, mas só de uma “teologia negativa” que ajude a compreendê-lo determinando o que ele não é. O conceito de teologia negativa, que está em Proclo (Theol. plat., II, 10-11) difundiu-se na filosofia cristã por obra do pseudo-Dionísio, o Areopagita, com a sua Theologia mystica. O conceito de Deus como Supersubstância emanante, da ascensão mística que culmina no êxtase e da teologia negativa são os três aspectos fundamentais do
conceito panteísta de Deus que compreende em si o mundo e é idêntico à sua natureza última. Qualquer dessas determinações, ao aparecer na história da filosofia, tende a reproduzir as outras. Teologia negativa e misticismo foram, ao que sabemos, as características do pan-teísmo de Amalric de Bène e de Davi de Dinant no séc. XII: o primeiro via em Deus a essência ou forma das coisas; o segundo, a matéria das próprias coisas (Tomás de Aquino, In Sent., II, d. 17, q. 1, a. 1). Essas mesmas características reparecem na mística do Mestre Eckhart (séc. XIV), para quem Deus é “uma Essência supra-essencial e um Nada supra-ente” (Deutsche Mystiker, edição Pfeiffer, II, pp. 318-19), de tal modo que dele nada se pode dizer senão que é uma “quietude erma”, ao mesmo tempo em que é preciso reconhecê-lo como a verdadeira essência das criaturas. “Se Deus por um momento se retirasse delas, diz Eckhart, “elas se reduziriam ao nada” (Ibid., p. 136). No séc. XV, Nicolau de Cusa retoma a mesma concepção: Deus é a essência ou a substância do mundo e o mundo é um Deus contraído, no sentido de que é um Deus que se determina e se individualiza numa multiplicidade de coisas singulares (Dedocta ignor., II, 4). Deus é tudo em todas as coisas e todas as coisas estão em Deus, já que ele é “a essência de todas as essências” e portanto a complicação e a explicação da multiplicidade cósmica: o ponto no qual a multiplicidade se unifica e do qual começa a diversificar-se (Ibid., II, 5; I, 2). Giordano Bruno, por sua vez, utiliza a tese neoplatônica e mística da transcendência e da incognoscibilidade de Deus para limitar-se a considerar Deus como natureza. Como tal, Deus é a causa e o princípio do mundo: causa no sentido de determinar as coisas que constituem o mundo, permanecendo distinto delas; princípio no sentido de constituir o próprio ser das coisas naturais (De la causa, II, em Op. ital, I, 177). Em nenhum dos casos se distingue da natureza: “A natureza é Deus mesmo ou é a virtude divina que se manifesta nas coisas” (Summa ter. met, em Op. lat. IV, 101). Quase simultaneamente, Jacob Boehme considerava Deus como “um nada eterno” (Mysterium magnum, I, 2) e como raiz do mundo natural, que não foi criado do nada, mas de Deus, e nada mais é que a revelação ou a explicação da essência divina (De tribus principiis, 7, 23). Não têm um significado muito diferente as fórmulas com que, no séc. XIX, Schelling expressou o conceito de Deus do ponto de vista de sua filosofia da natureza. Deus é unidade, identidade ou indiferença do espírito e da natureza, da liberdade e da necessidade, da consciência e da inconsciência (Werke, I, III, pp. 578 ss.). Essa identidade ou indiferença nada mais é que a identidade panteísta entre o mundo e Deus “D e o universo”, diz Schelling, “são uma coisa só ou são aspectos distintos de uma única e mesma coisa. Deus é o universo considerado pelo lado da identidade e é o todo porque é todo o real, fora do qual nada existe” (Ibid, I, IV, 128).
Mas a doutrina de Schelling implica a noção de que o mundo é não só a revelação de Deus, mas também sua realização. Essa noção tem origem em Spinoza, embora não se encontre nele: deriva do racionalismo geometrizante de Spinoza, pelo qual Deus não mais se identifica com o mundo, mas com a ordem do mundo, mais precisamente com a ordem racional, geo-metricamente explicável, do mundo. Diz Spinoza: “Nada há de contingente nas coisas, mas tudo é determinado a existir e a atuar de certo modo pela necessidade da natureza divina” (Et., I, 29). Embora se possa distinguir entre natureza naturante que é Deus, e natureza “naturada”, que são as coisas derivadas de Deus (Ibid., scol.), na realidade a natureza nada mais é que a ordem necessária das coisas, e essa ordem é Deus “De, qualquer modo que concebermos a natureza”, sob o atributo da extensão, do pensamento ou de qualquer outro, sempre encontraremos uma só e mesma ordem, uma só e mesma conexão de causas, isto é, uma só e mesma realidade” (Ibid., II, 7, scol.). Assim, para Spinoza Deus não é a Unidade inefável da qual as coisas brotam por emanação, nem a Causa criadora da ordem, mas essa mesma ordem em sua necessidade. Isso implica que a derivação necessária e recíproca das coisas, segundo o ideal da racionalidade geométrica, é a realização de Deus, pensamento este que foi explicitado no Romantismo justamente como referência à doutrina de Spinoza. A concepção de que Deus se revela e ao mesmo tempo se realiza no mundo, mais precisamente na necessidade racional do mundo, fundamental no Romantismo. Sua melhor expressão está em Hegel. Este começa insistindo na necessidade da revelação de Deus: se Deus não se revelasse, seria um Deus invejoso. “Quando, na religião, se toma a sério a palavra Deus, é também por ele, que é conteúdo e princípio da religião, que pode e deve começar a determinação do pensamento; e se a Deus for negada a revelação, não restará outro conteúdo a atribuir-lhe senão a inveja. Mas se a palavra espírito deve ter um sentido, ela significa a revelação de si” (Enc., § 564). Ora, essa revelação não é só revelação, é a realização de Deus como autoconsciência de si que ele alcança no homem. “Deus é Deus só enquanto se sabe: seu saber-se é sua autoconsciência no homem e o saber que o homem tem de Deus, que progride até o saber-se do homem em Deus” (Ibid, § 564). Desse ponto de vista, a distinção entre “Essência eterna” e sua manifestação é um estágio provisório, superado pelo retorno da manifestação à essência eterna e pela realização da unidade de ambas. Hegel distingue três momentos do conceito de Deus: “em cada um deles o conteúdo absoluto é representado d) como conteúdo eterno que permanece na posse de si em sua manifestação; b) como distinção entre essência eterna e sua manifestação que, mediante essa distinção, torna-se o mundo da aparência onde está o conteúdo; c) como infinito retorno e conciliação do mundo alheado da essência, assim como esta retorna do mundo da aparência para a unidade de sua plenitude” (Ibid., § 566). A realidade plena de Deus consiste em reconhecer-se realizado no mundo e através do mundo.
Essa concepção de que ao mundo está confiada a realização de Deus ou pelo menos sua realização última e total, constitui a inspiração (e a característica) dominante do panteísmo contemporâneo. Bergson exprime esse pensamento quando identifica Deus com o esforço criador da vida (Deux sources, p. 235), ou seja, com o movimento pelo qual a vida vai além de suas formas estáticas e definidas, encaminando-se para a criação de novas formas mais perfeitas. Do amor místico pela humanidade que é a ponta avançada do ímpeto vital, Bergson espera a renovação da humanidade e a retomada “da função essencial do universo, que é uma máquina de fazer deuses” (Ibid., p. 234). A expressão “máquina de fazer deuses” é muito significativa; expressa bem a crença de que o mundo deve ser a realização de Deus Em outros filósofos retornam velhas fórmulas, como a do mundo enquanto “corpo de Deus”, mas com novo significado: só se incorporando, Deus realiza-se como tal. Alexander diz: “Deus é o mundo inteiro porquanto possui a qualidade da deidade. O mundo inteiro é o corpo desse ser; a deidade é seu espírito. Mas o possuidor da deidade não é real, é ideal: como existente real, Deus é o mundo infinito no seu nisus para a deidade, ou, para adotar uma frase de Leibniz, enquanto está grávido de deidade” (Space, Time and Deity, II, p. 535). Portanto, cabe ao mundo parir Deus, ou sem metáforas, é na via de evolução natural que vai aparecer, em certo momento, a qualidade de deidade que encontrará substância em certo número de seres (Ibid, p. 365). Essa mesma relação entre Deus e o mundo foi expressa por Whitehead com as seguintes antíteses: “É verdade que Deus é permanente e que o mundo é fluente, assim como é verdade que o mundo é permanente e Deus é fluente. É verdade que Deus é uno e que o mundo é múltiplo, assim como é verdade que o mundo é uno e Deus é múltiplo. É verdade que o mundo, em face de Deus, é eminentemente real, e que Deus, em face do mundo, é eminentemente real. É verdade que o mundo é imanente em Deus e que Deus é imanente no mundo. É verdade que Deus transcende o mundo, e que o mundo transcende Deus É verdade que Deus cria o mundo, e que o mundo cria Deus” (Process and Reality, pp. 527-28). Essas antíteses significam que, se Deus espera do mundo a sua realização, o mundo espera de Deus a sua unidade. “O mundo”, diz Whitehead, “é a multiplicidade das atualidades finitas que buscam unidade perfeita. Nem Deus nem o mundo atingem completitude estática. Ambos estão na forja do último fundamento metafísico, o avanço criativo para o novo. Cada um deles, tanto Deus quanto o mundo, é instrumento da novidade do outro” (Ibid., p. 529). Mesmo para o velho panteísmo, o mundo como emanação ou revelação de Deus condicionava, de certo modo, a realidade de Deus “Deus não existia antes de criar todas as coisas”, dizia Scotus Erigena (Dedivis. nat., I, 72), defendendo a coeternidade do mundo e de Deus E, de fato, o que seria um corpo perfumado que não emanasse perfume, ou uma luz que não expandisse raios em torno de si? A própria noção de emanação torna o mundo e, em geral, tudo o que de Deus dimana, parte integrante de Deus e condição de sua realidade. Todavia, é só no mundo moderno — a partir do Romantismo (que teve em grande apreço a lição de Spinoza), — que se passa a afirmar explicitamente que Deus é, de algum modo, criação do mundo. Às vezes, como em Hegel, Deus já é real no mundo, em todas as determinações do mundo, porque é o próprio espírito, ou seja, a racionalidade autoconsciente, que se realiza nele como tal. Outras vezes, Deus é o termo do processo evolutivo, a fase na qual esse processo atinge unidade ou perfeição. Em todos os casos, o panteísmo contemporâneo inverteu o ponto de vista tradicional: não é Deus que dá corpo, substância ou realidade ao mundo, mas o mundo que dá corpo, substância ou realidade a Deus
O Deus como criador. Segundo a concepção de causa criadora, Deus não é somente o primeiro motor e a causa primeira do devir e da ordem do mundo, mas também o autor da estrutura substancial do próprio mundo. Essa estrutura, constituída pelas substâncias, formas ou razões últimas das coisas, não é coeterna com ele (como na concepção clássica), mas produzida por ele. Produzida não por um processo necessário, mas com causalidade livre, graças à qual o mundo se separa de Deus no próprio ato de nascimento de seu ser. Por outro lado, nessa concepção, Deus não é mais o super-ser, mas o ser do qual provêm outros seres. Segundo essa concepção, as características da divindade derivam da noção de criação, em seu significado próprio e específico (v. criação). Deve-se notar que esse significado só foi elaborado com o intuito de distingui-lo por oposição à ordenação e à emanação. Em hebraico, grego e latim, assim como nas línguas modernas, o verbo “criar” tem sentido genérico, referindo-se, indiferentemente, à obra de um artesão ou à de um criador; é só através da elaboração filosófica que essa noção chega a configurar-se em suas características.
Essa elaboração começa com Fílon de Alexandria (séc. I), que por meio da interpretação alegórica do Velho Testamento definiu o conceito de Deus ora em oposição às doutrinas da filosofia grega, ora em consonância com elas. Foi o primeiro a afirmar que Deus tirou o mundo “do não-ser para o ser” (De vita Mosis, II, 8) e que ele não só foi Demiurgo como também o verdadeiro fundador do mundo (De somniis, I, 13). Mas nem mesmo Fílon entendeu esse conceito, em todo o seu rigor, pois às vezes assimila criação e imposição de ordem à matéria desordenada e amorfa (Quis rer. div. heres., 32). A noção de Deus criador vai-se determinando com mais clareza na polêmica cristã contra os gnósticos: Irineu, p. ex., afirma que Deus não tem necessidade de intermediários para a criação (Adv. haer, II, 1,1). Lactâncio, por sua vez, negava que, para a criação, Deus tivesse necessidade de matéria preexistente (Inst. div., II, 9). Contra o emanatismo, Orígenes afirmava que Deus não pode ser considerado nem como o todo nem como uma parte do todo, porque seu ser é homogêneo, absoluto e indivisível (Contra Cels., I, 23), sendo também superior à própria substância já que não participa dela: participa-se de Deus, mas Deus não participa de nada (De Princ, VI, 64). Além disso, a unicidade de Deus, na qual os filósofos cristãos insistem tanto para opor-se ao politeísmo pagão quanto para eliminar da noção de Trindade qualquer resíduo de multiplicidade de divindades, leva-os a acentuar a separação entre Deus e o mundo, pois se Deus, de algum modo, participasse do mundo, participaria também da multiplicidade e da diversidade que o constituem (Gregório de Nissa, Or. catech., 1). Pelo mesmo motivo, é acentuada a eternidade, ou seja, a imutabilidade de Deus em face da mutabilidade e da temporalidade do mundo. Para S. Agostinho, Deus, enquanto Ser, é o fundamento de tudo o que é, o criador de tudo.
Com efeito, a mutabilidade do mundo que está ao nosso redor demonstra que ele não é o ser e que, portanto, precisou ser criado por um Ser eterno (Conf., XI, 4). Antes da criação não havia tempo e não havia nem mesmo um “antes”: não tem sentido, pois, perguntar o que Deus fazia “então”. A eternidade está acima de todo tempo e em Deus o passado e o futuro nada são. O tempo foi criado juntamente com o mundo (Ibid, XI, 13). No séc. XI Anselmo resumia em Monologhn os resultados de um trabalho já secular, esclarecendo os caracteres da criação a partir do nada como “um salto do nada para alguma coisa” (Mon., 8) e insistindo na impossibilidade de admitir que a matéria ou outra realidade qualquer preexistisse à obra de criação divina. As coisas são tão-somente por participação no ser; isso significa que sua existência provém unicamente de Deus (Ibid., 7). Anselmo admitia que na mente divina estivesse o modelo ou a ideia das coisas produzidas, mas este também, apesar de preceder à criação do mundo, foi criado por Deus (Ibid. ,11). Contrariando, porém, um dos caracteres de Deus criador (a liberdade de criar), a doutrina de Abelardo dizia que a criação é um ato necessário de Deus, ou seja, um ato que não pode não ocorrer, visto que Deus não pode não querer o bem e que a criação é um bem (Theol. christ., V, P. L., 178, col. 1325).
A característica fundamental da doutrina da causa criadora é que Deus é o ser do qual dependem todos os outros seres. Mas foi só através do neoplatonismo árabe que se desenvolveu o corolário implícito nessa concepção, chegando-se à determinação de um atributo que depois passaria a ser o primeiro e fundamental atributo dessa doutrina: o da necessidade do ser divino. De fato, se as coisas do mundo extraem seu ser de Deus, este só pode extraí-lo de si mesmo, ou seja, Deus é o ser por natureza ou por essência, ao passo que as coisas têm o ser por participação ou por derivação de Deus Desse modo, determina-se uma cisão no ser: de um lado o ser de Deus, do outro o das criaturas; de um lado o ser por si, do outro o ser por participação; de um lado o ser necessário, do outro o ser possível. Essa distinção foi introduzida por Al Farabi (séc. IX), e graças a Avicena (séc. XI) prevaleceu na Escolástica árabe e cristã, tornando-se um de seus princípios fundamentais. Avicena interpreta a relação entre necessidade e possibilidade nos termos da relação aristotélica entre forma e matéria. A forma, como existência em ato, é necessidade; a matéria é possibilidade. O que não é necessário por sisi mesmo é necessariamente composto de potência e ato, portanto não é simples. Tal é o ser das criaturas. Mas o ser que é necessário por si é absolutamente simples, desprovido de possibilidade e de matéria: é Deus (Met., II, 1, 3). A distinção entre ser necessário e ser possível e a definição de Deus como ser necessário foram introduzidas na escolástica cristã por Guilherme de Alvérnia (De Trinitate, 7) e tornaram-se fundamento da teologia de Alberto Magno e de Tomás de Aquino. Este último exprime a necessidade do ser divino como identidade entre essência e existência em Deus: Deus é o ser cuja essência implica existência. De fato, tudo aquilo que se acha em alguma coisa por participação deve ser necessariamente causado por aquilo em que se acha por essência; por isso, o ser de todas as coisas é criado ou produzido por aquilo que possui o ser por essência própria, isto é, por ser necessário (S. Th., I, q. 2, a. 3; q. 44, a. 1). A necessidade é, em outros termos a definição da própria natureza de Deus Pois embora a proposição “Deus existe”, que expressa essa definição, não seja de per si conhecida no que se refere a nós (que podemos não entender o significado do nome Deus e interpretá-lo, p. ex., como corpo), é todavia conhecida por si, secundum se, ou seja, em si mesma necessária (Ibid, I, q. 2, a. 1).
A característica de necessidade, à qual o pensamento filosófico chegou relativamente tarde, torna-se fundamental para todas as doutrinas de Deus que surgem depois. Nicolau de Cusa define Deus como “necessidade absoluta” (De docta ignor., I, 22). Às vezes essa característica é tomada como ponto de partida da prova ontológica, como faz Descartes, para quem “a existência necessária está contida na natureza ou no conceito de Deus, de tal modo que é verdade dizer que a existência necessária está em Deus ou que Deus existe” (Secondes Réponses, prop. I, Démonstration). Outras vezes nega-se a legitimidade de semelhante prova, mas assume-se igualmente a necessidade como definição de Deus; é o que faz p. ex. Leibniz. “É preciso”, diz ele, “procurar a razão da existência do mundo, que é a totalidade das coisas contingentes, e é preciso procurá-la na substância que traz consigo a razão de sua existência e que é, portanto, necessária e eterna” (Théod., I, § 7). Portanto, substância necessária, para Leibniz, é Deus (Monad., 38). Nesse aspecto, são poucas as novidades apresentadas pelas concepções de Deus como causa criadora na filosofia moderna e contemporânea. Limitam-se a repetir as características tradicionais, a começar da necessidade, que na maioria das vezes é assumida como ponto de partida para uma demonstração ontológica. É o que fazem, p. ex. Lotze (Microkosmus, III, p. 457) e, na sua esteira, muitos representantes do espiritualismo contemporâneo. A única exceção a essa tendência é constituída por Kierkegaard e por todos os que se inspiram diretamente em sua concepção de Deus Segundo Kierkegaard, a relação entre Deus e o mundo é incompreensível e só pode ser esclarecida negativamente com a noção de diferença absoluta, de “salto” entre o mundo e Deus (Diário, VIII, A, 414). Portanto, Kierkegaard não utiliza a noção de causa para determinar a relação entre o mundo e Deus, evitando atribuir a Deus a categoria de necessidade. Deus é “aquele para o qual tudo é possível” (Die Krankheit zum Tode, I, c; trad. it., Fabro, p. 247); essa definição de Deus torna a fé possível por ser o fundamento da confiança naquele que pode sempre encontrar uma possibilidade de salvação para o homem mas exclui a certeza fundada na necessidade da natureza divina. É óbvio que, desse ponto de vista, a própria qualificação de Deus como criador do mundo torna-se incompreensível, sendo indiferente afirmá-la ou negá-la. O mesmo vale para a doutrina contemporânea que, nesse aspecto, mais se aproxima da inspiração de Kierkegaard: a de Jaspers. Qualificar a transcendência do ser com os atributos tradicionalmente dados a Deus ou como Deus mesmo é, segundo Jaspers, anular a distância entre a transcendência e o homem, ou seja, anular a transcendência como tal. A única cifra ou sinal da transcendência é o fracasso que o homem sofre quando tenta alcançar a transcendência. Esse fracasso é o único e autêntico sinal da transcendência, que é negada por todas as tentativas de torná-la próxima e acessível, pensando-a com os termos tradicionais da divindade (Phil, III, 3, pp. 166 ss.).
2. DEUS E O MUNDO MORAL.
A relação entre Deus e o mundo moral (ou mundo dos valores) é o segundo aspecto de distinção das várias concepções de Deus Sob esse aspecto é possível isolar, em primeiro lugar, as doutrinas que não atribuem a Deus nenhuma função de ordem moral. Essas doutrinas, porém, são raríssimas, pois constituem formas de um quase-ateísmo; pode-se mencionar Voltaire. Paradoxalmente, Voltaire disse que a divindade se desinteressa completamente pela conduta dos homens. Azar dos cordeiros que se deixam devorar pelos lobos. “Mas se um cordeiro fosse dizer a um lobo: ‘Faltas ao bem moral, Deus te punirá’, o lobo responderia: ‘Faço o meu bem físico e parece que Deus não está muito preocupado em saber se te como ou não’” (Traité de mét, 9). Contudo, esse ponto de vista, que é compartilhado por outros iluministas, aparece raramente na história da filosofia, em que a relação entre Deus e a ordem moral tende a tomar como modelo a relação entre Deus e o mundo físico. Nesse aspecto, podem ser distinguidas três concepções fundamentais: a) a que considera Deus como garantia da ordem moral do mundo; b) a que o identifica com a ordem moral; c) a que o considera criador da ordem moral.
a) Deus como garantia da ordem moral. Por essa concepção, a ordem moral, do mesmo modo que a ordem substancial do mundo, é independente de Deus; mas Deus concorre de modo mais ou menos eficaz para mantê-la ou para realizá-la, acrescentando-lhe sua garantia. É essa a concepção de Platão e Aristóteles, segundo os quais Deus, apesar de criador da ordem natural, não tem nenhuma responsabilidade sobre a ordem moral que é confiada aos homens, limitando-se a apoiá-la e a encorajá-la com sanções próprias. No mito de Er, Platão atribui à parca Láquesis as seguintes palavras, dirigidas às almas que estão prestes a escolher um novo ciclo de vida: “A virtude não tolera senhores; cada um participará dela mais ou menos, conforme a honre mais ou menos. Cada um é imputável por sua escolha: a divindade não é imputável” (Rep., X, 617 e). E na realidade o Demiurgo predispõe todas as coisas “para não ser causa da maldade futura dos seres individuais” (Tim., 42 d). Para Platão, a virtude, assim como o vício (logo, a totalidade da ordem moral), faz parte da esfera de causalidade dos seres criados. Todavia, ser virtuoso significa também “ser amigo da divindade”, e isso significa “ser semelhante” à divindade. “A divindade é para nós a medida de todas as coisas, muito mais do que pode sê-lo um homem, como dizem hoje” (Leis, IV, 716 c). Analogamente, segundo Aristóteles, a divindade exerce sua função apenas no mundo natural e só por essa função é possível determinar seus atributos fundamentais (Motor imóvel, Causa primeira, Pensamento do pensamento, etc). Contudo, até Aristóteles admite, conforme as crenças populares, que, “se os deuses se preocupam de algum modo com as obras humanas, como parece, é verossímil que lhes agrade ver nos homens algo de excelente e que com estes tenham a maior afinidade, o que só pode ser inteligência” (Et. Nic, X, 9, 1179 a 24). A característica negativa dessa concepção é a ausência da noção de providência, ou seja, de uma ordem racional criada por Deus ou que seja Deus, em que os homens e seus comportamentos encontrem lugar. Sua característica positiva é ser Deus garante da ordem moral, conquanto não estabeleça seus caminhos e seus modos de realização. No mundo moderno essas características são encontradas nos defensores da religião natural, a religião sem revelação por parte de Deus, confiada unicamente às forças da razão. Grócio, p. ex., afirma que os enunciados da religião natural são quatro: “Primeiro: Deus existe e é uno; segundo: Deus não é coisa nenhuma que se veja, mas é muito superior a elas; terceiro: as coisas humanas são cuidadas por Deus e julgadas com perfeita equidade; quarto: Deus é o artífice de todas as coisas exteriores” (De iure belli, II, 20, 45). Crenças semelhantes, que excluem das coisas humanas o plano providencial, embora reconhecendo a ajuda e a garantia divina, são frequentes nos filósofos dos sécs. XVII e XVIII. Talvez sua melhor expressão esteja em Rous-seau e em Kant. Segundo Rousseau, Deus intervém para pôr em ação “as leis da ordem universal”, agindo de tal modo que, nesta vida, quem se comportar corretamente e for infeliz será recompensado na outra. Aliás, para Rousseau, a exigência de ver assim garantida a ordem moral é o único motivo razoável para crer na imortalidade da alma (Emílio, IV). Do mesmo modo, para Kant, a existência de Deus é um postulado da razão prática pois só Deus torna possível a união de virtude e felicidade em que consiste o sumo bem, que é o objeto da lei moral (Crít. R. Prática, I, cap. 2, § 5). “Desse modo”, diz Kant, “mediante o conceito do sumo bem, a lei moral conduz à religião, ao conhecimento de todos os deveres na forma de mandamentos divinos; não como sanções, ou seja, como decretos arbitrários e por sisi mesmo acidentais de uma vontade alheia, mas como leis essenciais de toda vontade livre por si mesma, que, porém, devem ser consideradas mandamentos do Ser supremo, porque só de uma vontade moralmente perfeita (santa e boa) e ao mesmo tempo onipotente podemos esperar o sumo bem, que a lei moral nos obriga a ter como objeto de nossos esforços; portanto, podemos esperar alcançá-lo mediante o acordo com essa vontade perfeita”. Consequentemente, para Kant Deus é 1) criador onipotente do céu e da terra, e, do ponto de vista moral, legislador santo; 2) conservador do gênero humano como seu benévolo governante e curador moral; 3) guarda de suas próprias leis, ou seja, justo juiz” (Religion, III, II, Obs. ger.). Essa solução de Kant ficou sendo típica da concepção em exame, que limita o poder moral de Deus a uma garantia que não determina de modo algum a ação dos homens, mas, ao contrário, de certo modo é solicitada pela própria autonomia dessa ação.
b) Deus como ordem moral do mundo. Essa concepção, como a outra de Deus criador da ordem moral, apoia-se no conceito de providência, de ordem racional que compreende não só os eventos do mundo mas também as ações humanas, ordem que é Deus mesmo ou que vem de Deus Os primeiros a formular o conceito de providência foram os estoicos, que deram esse nome ou o nome de destino ao governo racional do mundo, ou seja, “a razão pela qual as coisas passadas aconteceram, as presentes acontecem e as futuras acontecerão” (Stobeo, Ecl, I, 79). Os estoicos identificaram essa razão, destino ou natureza com Deus, “presente nas coisas e nos fatos todos, e que assim utiliza todas as coisas segundo sua natureza, para a economia do todo” (Alexandre, De fato, 22, pp. 191, 30).
Do ponto de vista dessa identificação não deveria nascer o problema da liberdade humana: essa liberdade deveria ser identificada com a necessidade do desígnio providencial ou ser negada como coisa impossível. A ação do homem só pode adequar-se à ordem racional do todo porque o homem é uma parte desse todo. E com efeito sabemos que os estoicos reconheciam a necessidade do agir humano; só para Crisipo o assentimento voluntário do homem intervinha como fator concomitante, sendo comparável à forma do cilindro, que contribui para que ele gire sobre o plano inclinado (Cícero, De fato, 41-43). Plotino retoma o mesmo conceito de providência: “De todas as coisas forma-se um ser único e uma só providência; se começamos pelas coisas inferiores ela é destino; no alto, é só providência. Tudo no mundo inteligível é ou razão ou, acima da razão, Inteligência e Alma pura. Tudo o que desce de lá é providência, ou seja, tudo o que está na Alma pura e tudo o que vem da Alma para os seres animados” (Enn., III, 3, 5). A ação que emana de Deus coincide, em outros termos, com sua ação providencial: os seres haurem de Deus não só o ser e a vida, mas também a ordem das ações em que seu ser e sua vida são exercidos. Plotino procura não buscar na ordem providencial a origem do mal, mas o atribui a uma espécie de acréscimo acidental que alguns seres fazem à ordem da providência (Ibid., III, 3, 5). Mas, para ele, a providência e Deus identificam-se, pois “do Princípio que permanece imóvel em sisi mesmo provêm os seres individuais, assim como de uma raiz, que permanece fixa em si mesma, provém a planta: é uma floração múltipla que redunda na divisão dos seres, mas na qual cada um carrega a imagem do Princípio” (Ibid., III, 3, 7).
Sem dúvida, muitas dessas expressões e imagens poderão ser empregadas, como de fato serão, pelas doutrinas que reconhecem em Deus o criador da ordem moral, mas não o identificam com essa ordem, embora só encontrem seu significado literal nessa identificação. A negação da liberdade humana, ou melhor, a interpretação dessa liberdade como necessidade, é um de seus corolários. Giordano Bruno expressou esse corolário com a doutrina de que, embora as orações não possam influir nos decretos do destino, que é inexorável, o próprio destino deseja que lhe supliquem para fazer o que estabelecera fazer. “Quer ainda o fado que, conquanto até Júpiter saiba ser ele imutável, e que outra coisa não pode ser senão aquilo que deve ser e será, não deixe de, por tais meios, correr celeremente para seu destino” (Op. cit., I, 31). Por sua vez, Espinosa nega que Deus seja causa livre no sentido de poder agir diferente do modo como age: ele é livre apenas no sentido de que age “só pelas leis de sua natureza” (Et., I, 17).
Assim, em Spinoza, a noção de providência identifica-se com a noção de necessidade: necessidade segundo a qual todas as coisas derivam da natureza de Deus, como única Causa perfeita e onipotente (Et., I, 33, scol. 22). Fichte só fazia repropor a tese de Spinoza quando, num texto que lhe valeu a acusação de ateísmo (Do fundamento da nossa fé no governo divino do mundo, 1798), identificava Deus com a “ordenação moral viva e atuante”, negando que Deus fosse “uma substância particular”, diferente dessa ordenação. Essa identificação ficou como fundamento do Romantismo. Hegel diz: “O verdadeiro bem, a razão divina e universal, é também potência de realização de si mesmo. Em sua representação mais concreta, esse bem, essa razão, é Deus O que a filosofia vê e ensina é que nenhuma força prevalece sobre a força do bem, ou seja, de Deus, de tal modo que a impeça de atuar: Deus prevalece, e a história do mundo não representa outra coisa senão o plano da providência. Deus governa o mundo: o conteúdo de seu governo, a execução de seu plano, e a história universal” (Phil. der Geschichte, ed. Lasson, p. 55). Não obstante a ambiguidade de certas expressões, o sentido da doutrina hegeliana aqui recapitulada é evidente: Deus é a razão que habita o mundo, e a razão que habita o mundo é a própria realidade histórica. De um século a esta parte essa doutrina foi repetida com frequência, sendo às vezes designada “doutrina da providência imanente”. Ainda serve de base para algumas correntes que visam renovar a teologia cristã e a empenhar o cristianismo numa ação mais direta e eficaz no mundo. Assim, p. ex., Bonhoeffer identifica a realidade com o bem e ambos com Deus. Por um lado, o bem é a realidade porque não é uma fórmula geral: o real é impossível sem o bem. Por outro lado, Deus é a “realidade última” não no sentido de ser uma ideia ou a meta final da realidade, mas no sentido de que “todas as coisas se mostram distorcidas se não são vistas nem reconhecidas em Deus”. Desse ponto de vista, a ética cristã é “a realização, entre as criaturas de Deus, da realidade reveladora de Deus em Cristo” (Ethik, 1949, II; trad. in., pp. 55 ss.). A novidade de doutrinas desse tipo consiste, por um lado, no abandono das tradicionais especulações teológicas e, por outro, na ênfase na função do Cristo; “Deus e o mundo estão compreendidos em seu nome; portanto, não se pode falar de Deus e do mundo sem falar de Cristo” (Ibid, p. 61). Mas o pressuposto teórico é sempre o mesmo: a identidade de Deus com o mundo moral.
c) Deus como criador da ordem moral. Essa terceira concepção é caracterizada: 1) pela distinção entre Deus e sua ação providencial, sendo Deus causa livre da ordem moral; 2) pela tentativa de salvar a liberdade do homem. O ponto de partida dessa concepção continua sendo a noção de providência, da forma elaborada por estoicos e neoplatônicos. Boécio assim a distingue da concepção de destino.- “A providência é a própria razão divina constituída como princípio soberano de tudo, que ordena todas as coisas, ao passo que o destino é a ordem que rege as coisas em seu movimento e por meio do qual a providência as liga, dando a cada uma o lugar que lhe compete” (Phil. cons., IV, 6, 10). Essa distinção não equivale, obviamente, a uma separação: providência e destino em última análise coincidem, já que o primeiro é a unidade da ordem vista pela inteligência divina, e o segundo é essa mesma ordem enquanto realizada no tempo. O problema a que uma e outro dão origem é o do livre-arbítrio, característico dessa concepção de Deus Boécio antecipa o esquema de todas as soluções que depois lhe serão dadas, afirmando que as ações humanas estão incluídas, justamente em sua liberdade, na ordem providencial (ibid., V, 6). Com forma mais precisa e circunstanciada, a mesma solução (à qual, em geral, se ativeram os filósofos medievais) foi reproposta por Tomás de Aquino: este afirma, por um lado, o caráter integral ou totalitário da ação providencial, e por outro julga a providência conciliável com a liberdade humana, que se insere, como tal, no quadro da providência. Diz Tomás de Aquino: “É próprio da providência ordenar as coisas para um fim. Depois da bondade divina, que é um fim separado das coisas, o bem principal, existindo nas próprias coisas, é a perfeição do universo; esta não existiria se não se encontrassem nas coisas todos os graus do ser. Daí se segue que é da divina providência produzir todos os graus do ser e, por isso e para certos efeitos, ela preparou causas necessárias, a fim de que acontecessem necessariamente, mas para outros efeitos preparou causas contingentes a fim de que acontecessem contingentemente em conformidade com a condição das causas próximas”. Por isso, “acontece infalível e necessariamente aquilo que a providência divina dispõe que aconteça assim, mas acontece de forma contingente aquilo que a providência divina quer fazer assim acontecer” (5. Th., I, q. 22, a. 2). Não se trata, obviamente, de uma solução isenta de dificuldades, pois não é fácil entender como a realização de um desígnio perfeito e minucioso pode ser confiada, mesmo que em parte, ou em parte mínima, ao comportamento imprevisível de um fator arbitrário. Mas essa é a solução repetida constantemente no âmbito dessa concepção, que tende a ressaltar a liberdade da causalidade divina com vistas à solução do outro problema fundamental da teodiceia, o do mal, expresso pela velha fórmula: “Si Deus est, unde malum? Si non est, unde bonum?” Os escritores dos sécs. XVII e XVIII (especialmente Bayle, os deístas e Leibniz) discutiram longamente esses problemas, sem encontrar novas soluções (v. mal). De um lado, Bayle dava destaque à insuficiência das soluções tradicionais e julgava esses problemas insolúveis; de outro, Leibniz repropu