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Watts Huxley

segunda-feira 1º de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

Alan Watts   — Tabu
Excertos da trad. de Olavo de Carvalho

O BUDISMO DE ALDOUS HUXLEY  

A última obra importante de Aldous Huxley, seu romance utópico Island, exprime sua filosofia em sua completa maturidade, e deveria ser lida mais como obra filosófica que como um romance. Durante os anos que separam a publicação de Ends and Means de Island, segui com vivo interesse o desenvolvimento de Huxley. No início de seu "período místico" (cerca de 1937), pendia para esse tipo de espiritualidade que considera a existência material como uma queda na escravidão bestial da carne, e a diferenciação, a individualidade dos seres, como uma espécie de erro do cosmo — que seria preciso corrigir por práticas ascéticas de ioga que restabeleceria o estado original da consciência homogênea, unitária. É uma espiritualidade análoga ao budismo hinayana e de certos tipos de vedanta, que concebem o fim mais elevado da vida como um nirvana onde são apagadas todas as manifestações múltiplas.

Mas, em Island, Huxley revelou um "materialismo espiritual" generoso, muito próximo do budismo mahayana — que seguramente lhe era familiar. O mahayana (o grande veículo) que nasce na Índia por volta de 100 a.C. — 400 d.C. é a forma de budismo que emigrou para a China, Tibete, Mongólia, Coréia e Japão e que seus discípulos opõem ao hinayana (ou pequeno veículo) que predomina na Ásia do Sul. A característica do mahayana é que considera o nirvana como formando uma única realidade com o mundo físico (samsara), sendo a diferença entre os dois estados dada pelo estado de consciência. Foi esse fator que permitiu ao budismo mahayana ser misturado à cultura e se tornar um modo de vida, não apenas para os monges, mas também para os laicos dos dois sexos.

Isso pode ser apenas uma impressão subjetiva, mas fiquei espantado com a atitude do budismo mahayana que foi, entre todas as religiões e filosofias, de uma humanidade, de uma sinceridade, de uma riqueza de imaginação, de um refinamento intelectual e de uma influência civilizadora sem iguais — sem mesmo a ajuda da tecnologia ocidental. Quando de minha última visita ao doutor Susuki, este insistiu sobre o lado natural do budismo e chegou mesmo a afirmar que se pode sentir a essência num incenso feito de madeira de aloés (jinko), que, de uma certa maneira, destila e concentra todas nossas lembranças felizes do odor da madeira e das árvores.

Assim, portanto, no budismo mahayana, o homem mais evoluído não é o ascético arhan que se mantém numa contemplação quase perpétua, mas o bodhisattva, para quem a vida e a atividade quotidianas são completamente compatíveis com o estado de nirvana, e que vive nesse mundo por compaixão a seu próximo, trabalhando a seu lado para fazê-lo partilhar seu estado de percepção. É significativo, inclusive, que esta filosofia tenha agradado a um ocidental tão culto quanto Huxley, apaixonado não apenas pelas artes e literatura, mas também por problemas sociológicos, educacionais e econômicos do mundo moderno.

Eu não digo isto par afirmar que Huxley foi um prosélito de uma certa forma de budismo, posto que os mahayanistas raramente se interessam por propaganda sectária, ou em contabilizar seus adeptos, suas disciplinas, aproximando-se mais das pesquisas tais como as da psicologia e da filosofia que das religiões militantes. Pois o mahayana não é tanto uma ideologia quanto um conjunto de métodos para retificar nossa percepção e nosso conceito de vida. Sua essência não está numa teoria mas num modo de se dar conta — quase uma sensação — da relatividade, isto é, da interdependência de todas as coisas e de todos os eventos.

A consciência humana é habitualmente fixada, subjugada pela aparente separação das coisas e também de si mesmo. Uma tal consciência do mundo filtra, ou deixa de lado, o fato de que todos os fenômenos ocorrem juntos, são inseparáveis — tanto quanto o à frente ocorre junto com o atrás, ou como o pólo de um ímã não pode existir sem o outro. Assim nosso pensamento habitual não considera que o ser e o não ser, a vida e a morte, o eu e o outro, o sólido e o espaço, o pulso e o intervalo, ocorrem juntos numa mesma unidade fundamental. Somos então roídos pelo medo que a morte submerja a vida, que o não ser engolfe o ser, e que o observador que sou "eu" desapareça, deixando atrás de si apenas um mundo de objetos ou de "outros".

Esta visão do mundo como nada mais sendo que um conjunto de coisas distintas, que uma série de eventos independentes, dá ao indivíduo o sentimento de não ser mais que uma parte fugidia da realidade — uma coisa entre outras coisas. Segundo o mahayana não há coisas, consideradas como entidades disjuntas. Aquilo que chamamos "coisas" são, na verdade, gestos do universo, isto é, de um sistema de energia que é na realidade o único "eu" que possuímos, mas que não podemos nem definir, nem classificar — do mesmo modo que não podemos (nem possuímos, aliás, necessidade) olhar diretamente nossos próprios olhos. Portanto, pode-se ser consciente desse sistema de energia indefinível, que, em seu conjunto, é o que é, é aquele que é, na realidade, cada indivíduo.

Uma tal consciência nos permite participar de todos os jogos da vida — nas configurações e nos gestos do universo — sem temor e com compaixão, apercebendo-nos de que cada outro eu é, sob sua aparência exterior, o mesmo eu que o nosso. E uma tal compaixão — con-sentir, sofrer com qualquer um — não é uma simples piedade, no sentido de "o infeliz encontra outros infelizes". Funda-se, antes, no conhecimento de que a existência é essencialmente exuberância, que a "energia é a alegria eterna" e que, tão pouco provável quanto isto possa parecer, todas as espécies de seres têm seu lugar, em alguma parte no vasto espectro do êxtase, que, no mahayana, se chama o sam-bhogakaya, "o corpo da beatitude perfeita".

Numerosos são aqueles que crêem que, sem angústia, não haveria nenhuma motivação da vida criadora. "Para que eu seja sábio, é preciso que alguém me bata." Mas criar não é apenas fugir para escapar à punição e ao pavor: quem de nós gostaria de se ver sobre a mesa cirúrgica, o cirurgião, angustiado, inclinado sobre nós, e, em sua mão trêmula, o bisturi? A questão aqui é que brandimos agora, com mão trêmula, o incrível instrumento cirúrgico que é a tecnologia, e o problema que atormentava Huxley era o de que um tal poder não pudesse ser manejado de modo positivo pelos homens atônitos e alienados, tendo, frente à natureza, uma atitude francamente hostil. Os budistas mahayanistas jamais possuíram nossa tecnologia, mas possuíam a arte e a praticaram num alto grau de perfeição (na China e no Japão) como uma cooperação entre o homem e a natureza — de fato, como uma obra da própria natureza. E se uma relação desse tipo, isto é, de que a ciência pode ser a obra da natureza, e de que o indivíduo forma apenas um corpo com seu meio, pudesse impregnar, um dia, a tecnologia do Ocidente?