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Ouaknin: Palavra na Criação e na Revelação

sexta-feira 3 de maio de 2024, por Cardoso de Castro

  

É importante revelar a distinção que existe em hebreu entre “amira” e “dibbour”. Dois textos servem aqui de pontos de referência: o capítulo da Criação do Mundo e aquele de Gordon Estado Primordial no Monte Sinai.

O Midrach ensina: “O mundo foi criado com dez maamarot”.

A palavra maamarot é o plural de maamar, da raiz “amar”, “dizer”.

Dez vezes, com efeito, se encontra repetida no primeiro capítulo do Gênesis a expressão Vayomer Elohim: “E Deus disse”. Um olhar sobre o texto mostra que não há com efeito senão nove expressões Vayomer, donde o Midrach encontra a necessidade de comentar: a palavra Bereschit (“No princípio, primeira palavra do Gênesis) é também um maamar, como se dissesse: “Vayomer: Bereschit”.

A “amira”, o “dizer” de Deus, é portanto esta palavra criadora que engendra a existência e que determina a História: palavra criadora do mundo, que se entende como relação ontológica entre a palavra e a coisa ou, como doadora de sentido do mundo.

O segundo texto, aquele da doação das Tábuas da Lei no Sinai, é chamado no Midrach, conforme o texto da Torá ele mesmo (Ex 20,1): “Asseret hadibrot”, que o uso popular mas errado sempre traduziu pelos “Dez Mandamentos”.

Em hebreu, o mandamento se diz Mitsva, a expressão deveria portanto ser: “Asseret hamitsvot”, o que não é o caso.

A história do comentário bíblico é também a história de uma confusão prejudicial entre amira e dibbour. Quantos autores são felizes de exibir como demonstração a coincidência em hebreu da “palavra” e da “coisa” no termo davar! Assim prosseguindo sua análises...

Que contrassenso radical, que faz perder ao texto bíblico uma de suas dimensões essenciais!

Quando da criação do mundo não houve jamais “davar”, só o termo “amira” é empregado.

O davar sob a ofrma mais corrente Vayedabere, só aparece no versículo 15 do oitavo capítulo do Gênesis. Ocorrência importante posto que nela é formulada pela primeira vez a expressão mais repetida do Pentateuco  : “Vayedabere... lemor”, “E Deus falou a ... em dizendo”.

A regra hermenêutica da primeira ocorrência nos ensina que uma palavra ou uma expressão encontram seu sentido essencial na sua primeira aparição no texto bíblico. Metodologicamente, é para ela que se deve voltar para estudar uma noção qualquer que seja.

A primeira ocorrência do “dibbour” nos desvela uma relação estreita entre o dibbour e a amira. Pode haver uma amira sem dibbour mas não o dibbour sem a amira. No caso de um dibbour solitário, seja a amira revestiu uma outra forma, seja estamos em presença de uma anomalia que nos convida à análise.

Antes de precisar o sentido exato destas duas palavras seria oportuno compreender a origem da confusão cometida por numerosos autores.

Tudo tem lugar a partir do prólogo do Evangelho de João: “No princípio era o Verbo”.

O texto original em grego diz: “En arche em o logos”. O que é traduzido pelo português “Verbo”, derivado do latim “verbum”, dá a palavra grega logos. Deve-se entender portanto: “No princípio era o logos”.

Apesar da possibilidade de introduzir diferentes sutilidades teológicas, todos os comentadores se acordam sobre o sentido desta frase. Ela representa um comentário e um aprofundamento do primeiro versículo do Gênesis: “No princípio, Elohim criou o céu e a terra...”.

Deus criou o universo pela palavra: afirmação do caráter criador de Deus e afirmação do poder criador da palavra.

A frase de João não faria senão traduzir — e retomar sobre novas bases, nele acordando um sentido novo — uma muito antiga tradição (aquela do Gênesis) em reduzindo a extensão pela a assimilação do logos à figura messiânica de Jesus.

Na formulação grega concernindo o dom da Lei, os dibberot se tornam logoi, retomados na célebre expressão de “Decálogo”.

Assim o prólogo de João concernindo a criação do mundo pela palavra utiliza o termo de logos que é o termo que designa a Lei nos “Dez Mandamentos”.

Duas interpretações diferentes podem ser propostas: seja, dizemos que a versão grega não dá conta das diferenças lexicais internas à língua hebraica, o que se verifica na tradução grega dos Nomes de Deus, que não sublinha as utilizações do Tetragrama ou de Elohim de maneira sistemática. Seja, João anuncia um outro princípio, que não mais é uma simples paráfrase da Gênesis e que passa pela vontade de suprimir a noção de “amira” para lhe substituir o “dibbour”, Logos na criação de logos na Lei. Coincidência da Criação e da Gordon Estado Primordial.

É evidente que o desafio essencial é aquele do estatuto da Lei mas não entraremos aqui nesta difícil problemática (v. Dez Mandamentos).

Os tradutores hebraicos de João, de maneira muito mais tardia (a tradução data do século XIX), confirmam esta análise. A frase de João é dada por: Berechi haya hadavar, quer dizer: “No princípio era o davar”.

Toda a dimensão da “amira” — os assara maamarot — anulada em uma palavra!

Esta referência ao texto de João parece estar sem qualquer dúvida na origem da utilização da palavra “davar” para evocar a coincidência em hebreu da “palavra” e da “coisa” quando da criação do mundo.

Só uma tal confusão pôde dar à expressão ABRACADABRA que significa literalmente: “Ele criou como ele falou”.

Abracadabra é assim uma expressão da Cabala   Cristã que assimila a criação pela palavra ao termo de “dibbour” e não ao termo de “amira”. Um pensamento hebraico teria forjado a expressão ABRACAAMRA.

Voltemos a nossa primeira ocorrência do “dibbour” (Gn 8,15). O contexto é aquele do fim do Dilúvio. As águas voltaram ao seu estágio anterior, a terra emergiu d enovo. A data deste fim do Dilúvio é até mesmo precisada no texto, no versículo 14: “No segundo mês, no vigésimo sétimo dia do mês, a terra secou”.

E o texto encadeia: “E Elohim dalou (veyedabere) a Noé dizendo (lemor)”.

O texto prossegue: “Saia da arca...”.

Em hebreu: Tse mine hateva.

A palavra “Arca”, na expressão “Arca de Noé”. se diz em hebreu teva (tav-bet-he) e significa uma “caixa” ou uma... (palavra).

A tradição hassídica, que reporta os ensinamentos de Baal Chem Tov, insiste muito sobre estes sentidos de “palavra” como tradução de teva.

“Saia da arca” significaria assim: “Saia da palavra...”

A primeira ocorrência de dibbour seria em relação com a injunção de “sair da palavra”!


Ver online : Marc-Alain Ouaknin