Página inicial > Sophia Perennis > Ananda Coomaraswamy > Coomaraswamy: Doutrina de Buda

Coomaraswamy: Doutrina de Buda

sexta-feira 29 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

BUDISMO — Pensamento Vivo de Buda  
Tradução Ary Vasconcelos
A DOUTRINA DE BUDA

Vós não o haveis de ver senão no momento em que dele não mais puderdes falar: pois seu conhecimento é um silêncio profundo e a supressão de todos os sentidos. HERMES TRISMEGISTO, Liv. X. 5.

Querer dar uma ideia adequada do conteúdo da doutrina budista nos seus primórdios é uma tarefa que apresenta dificuldades quase insuperáveis. Esta Lei Eterna (dhamma sanantana, akalika), que não era de modo algum uma criação intelectual de Buda por raciocínio, mas à qual ele se identificava, uma Lei ensinada por seus predecessores num passado remoto e que seria ainda ensinada por seus sucessores no futuro, o próprio Buda a declara profunda e difícil de compreender por ouvintes que tenham outra mentalidade e uma outra formação de espírito; é uma doutrina para aqueles que tenham poucas necessidades, não para aqueles que tenham muitas. Durante a sua vida e reiteradas vezes, Buda teve necessidade de corrigir as falsas interpretações de seu ensinamento; de explicar, por exemplo, em que sentido preciso era ou não era uma doutrina de "extirpação"; ela o era no sentido que era preciso "suprimir" o egoísmo, o mal e a dor; e não o era no sentido do aniquilamento de uma realidade. Aliás, o que ele ensinava era o aniquilamento de si mesmo: aquele que quiser a liberdade deve se ter literalmente renunciado; para o resíduo, os termos da lógica do dilema "ou isto ou aquilo", não são adequados; mas seria totalmente impróprio dizer-se do Arhat que "expirou" libertado pela sua hipergnose, que "ele não sabe nem vê" (Digha — Nikaya II, 68).

Se os erros já eram possíveis em vida de Buda, quando, como ele o disse, acabava de reabrir um Caminho antigo há muito desprezado e obliterado por uma falsa doutrina, quanto mais inevitáveis não serão as interpretações errôneas em nosso século de progresso, de expressão individualista, de busca incessante de uma nível mais elevado de vida material? Quase todos nós, salvo alguns teólogos de profissão, esquecemos que uma realidade suprema não poderia ser convenientemente definida a não ser por uma série de negações, dizendo-se somente o que ela não é. De qualquer maneira, como o fazia notar ainda Miss Horner em 1938, "o estudo do Budismo primitivo está ainda começando a balbuciar" (Livro da Disciplina, I, VI). Se o leitor encara o budismo como um caminho de evasão (no que não estará cometendo um erro) pode ainda se perguntar a que ele se aplica, de onde parte e aonde vai este caminho de evasão de que se nos afirma que "existe neste mundo" (Samyutta Nikaya I, 128).

O que agrava as dificuldades, são os erros de interpretação que se encontram ainda, mesmo nas obras dos eruditos. Um dos mais autorizados, por exemplo, não compreendeu que é preciso distinguir o "porvir" cuja cessação coincide com a obtenção da imortalidade, do "porvir provocado" da parte imortal de nosso ser. De fato, o "porvir" não é outra coisa que aquilo que hoje chamamos o "progresso" sem levar em conta o fato de que a transformação pode ser para melhor ou para pior; e não devemos esquecer que hoje, como então, "há deuses e homens que se comprazem com o porvir, e quando se lhes fala em fazer cessar o porvir, seus espíritos não são atraídos" (Visuddhimagga 594). Outro grande erudito afirma que o budismo primitivo "negava um Deus, negava uma Alma, negava a Eternidade" e se pretende, quase em toda parte que, segundo Buda, não existe o Eu. Não se observa, portanto, que o que Buda negou foi realidade do Ego sempre variável, da "individualidade" psicofísica; o que ele disse do Eu, do Descobridor da Verdade ou do "Assim vindo", do Homem Perfeito, depois da morte, é que nenhuma das expressões "vir a ser", "não vir a ser", "vem a ser e não vem a ser", "nem vem a ser nem não vem a ser", pode se aplicar a Ele ou a este qualquer coisa (Anguttara — Nikaya IV, 384 seg., 400-401; Udana 67, etc). Ou então ouvimos frequentemente afirmar que o budismo é uma doutrina "pessimista", a despeito do fato que o fim que ele nos propõe — a libertação de todos os sofrimentos mentais aos quais o homem está sujeito — é um fim que pode se atingir neste mundo e desde agora. É pelo menos não querer reconhecer que uma doutrina só se julga pelo fato de ela ser verdadeira ou falsa, não por ela nos agradar ou não.