Página inicial > Barbuy, Heraldo > Barbuy: Physis e Natureza
Barbuy: Physis e Natureza
quinta-feira 7 de outubro de 2021, por
Sabe-se que as origens da filosofia se encontram na meditação sobre o mistério e a essência da Natureza. Os pré-socráticos têm sido habitualmente mal compreendidos e por vezes considerados materialistas ou cientistas embrionários que apenas anunciaram os grandes progressos da ciência que veio depois deles. Basta contudo ler os fragmentos dos pré-socráticos [1] para que o sentido do seu pensamento apareça totalmente diverso do que é apresentado pelos autores comuns. Vê-se que nos pré-socráticos a Natureza é objeto de intuições cósmicas e profundas. E vê-se também a impressionante unidade do pensamento grego desde Thales até Aristóteles. Há por certo uma distinção aparente entre a filosofia como intuição cósmica do Ser, tal como se apresenta nos pré-socráticos, e a filosofia como ciência da essência e da existência dos seres, tal como aparece em Platão e Aristóteles. Mas essa distinção é apenas aparente e constitui o resultado de um desenvolvimento coerente, que não altera a posição primeira da cogitação sobre a essência da Natureza. Segundo Platão o filósofo é aquele cujas disposições inatas levam facilmente para a Ideia de cada ser; a Dialética, que é o nome platônico da filosofia, constitui uma ciência da essência e da existência de todos os seres; os livros V, VI e VII da República são expressivos neste sentido. Do mesmo modo Aristóteles considera a filosofia uma ciência do Ser na sua unidade profunda, como o demonstra todo o texto da Metafísica e particularmente o L. IV, G. e E. [87]
Mas antes de se tornar com Platão a Dialética da essência dos seres, a filosofia não procurava saber o que é que as cousas são ou no que consistem [2]; voltava-se antes para a Natureza enquanto mistério das origens; a filosofia se constitui tal inicialmente porque se perguntou a si mesma porque é que algo é, quando o que é poderia não ser. Sob a penumbra da poesia e do mito, os pré-socráticos viram, no que é, um reflexo da Luz e da Sombra e um mistério da Natureza.
Bastaria alargar um pouco as meditações de Heidegger sobre o sentido íntimo da Physis a propósito da poesia de Hölderlin ou então bastaria procurar os fundamentos mythicos da filosofia da Physis e ver-se-ia que não é só até Anaximandro , como pretende Heidegger, mas até o fim de sua grande tradição, que a filosofia grega conservou como archetypo o que Platão, numa passagem famosa, denominava o realmente real, ou a essência dessa realidade que foi a Physis. A busca do Ser, como fonte, fundamento e suporte dos seres, marcou justamente a filosofia grega desde Thales até Aristóteles, passando por Platão. O Ser e a Natureza estão intimamente ligados, porque não pode haver Natureza, onde não houver o Ser que a manifeste.
A Physis grega é uma Natureza sagrada porque é o lugar da manifestação do Ser; o nada relativo, a Physis indefinível que se levante da visão pré-socrática da realidade, constitui como um fundo, do qual se erguem as existências, como os perfis que se desenham na sombra, ao clarão de uma luz fecundante. Os seres são como a irradiação do Ser e é o Ser que mantém os seres que não poderiam manifestar-se fora do seu influxo. Tal, desde Thales até Aristóteles, olhando o princípio sombrio de onde os seres saem, ou a luz que faz emergirem os seres, a filosofia grega apresenta uma surpreendente coerência interior.
Se os gregos falavam de um Kosmos, como de um princípio de ordem, é porque supunham a preexistência do chãos, como confusão, indeterminação e noite. Se perguntavam qual é a realidade da qual o real se destaca, a Physis era essa realidade, do qual o real era determinado; mas se por outro lado perguntavam qual é a realidade que faz com que o real se [88] destaque da noite sombria da Physis, não deslocavam o mistério, porque buscavam esse realmente real que preocupou a filosofia platônica.
A visão dos seres, como o que se desenha por um momento sobre a Noite originária da Physis, como o que a luz do inteligível faz emergir da obscuridade do Chaos, essa visão pré-socrática revive na filosofia platônica, onde a realidade aparente nasce de um jogo de luz e de sombra, como tão bem atesta a doutrina das Ideias e particularmente o mito da Caverna (Rep., L. VII).
Pode pois Heidegger interpretar arbitrariamente a filosofia de Platão, quando diz que desde Anaximandro até Nietzsche a filosofia não foi mais do que um errar no meio dos entes com o esquecimento do Ser e quando declara que desde Anaximandro a filosofia grega não foi senão um pensamento de fabricação, um pensamento do que se produz e se fabrica. A interpretação de Heidegger pode ser gratuita e arbitrária, — porque se encontra em Platão e Aristóteles, pelo menos a visão da Natureza como tensão, como equilíbrio instável e luta dos contrários, como crescimento e desaparição, como fenômeno e realidade profunda. Toda a filosofia platônica é dominada pela visão da luz eterna que brilha na obscuridade da Physis.
A verdade mítica da Água em Thales, como princípio úmido do qual tudo se nutre e cresce, essa Água que leva o ser nascente no ventre materno, supõe como fecundidade, o casamento de Okeanos e Thetys, do qual nasceu toda geração. Essa Água mítica é a Physis, mas essa Physis, segundo Thales é o princípio condutor da potência divina que a percorre toda inteira. A Physis é uma Noite dilacerada e fecundada pelo clarão da luz divina.
E pois que os gregos não tinham esperado ainda o espírito e a natureza e que a natureza era verdadeiramente o sagrado em que se manifesta e opera a potência divina, eles contemplavam a realidade ora na Physis, ora no Divino. Dois princípios que se fundem, se separam e se reúnem na mitologia grega, mas que nunca a abandonam.
Os seres se determinam a partir do Indeterminado de que fala Anaximandro. Mas é o Fogo de Heráclito , símbolo da Luz, que cria os seres na Physis. Heráclito fala de um rio, [89] que é a imagem de tudo quanto passa; mas não é verdade que, segundo Heráclito, não há senão o que passa; o Fogo não passa; é o Fogo que faz com que as cousas passem sem passar ele próprio; não desceremos duas vezes ao rio da Physis porque esse rio nunca será o mesmo; o rio que se destacou da noite originária é o reino movediço, onde tudo é tensão, e onde a harmonia só é possível pela conversão dos contrários; a geração dos seres vem do conflito, polemos; tudo resulta das oposições recíprocas e é por isso que tudo flui à maneira de um rio, onde duas vezes não desceremos porque nem nós, nem o rio, seremos duas vezes os mesmos.
O Fogo e o rio desenvolvem o mesmo papel em Anaxímenes , sob os nomes do Fogo e da umidade, movidos pelo sopro do Ar; é um Ar que é movimento e fonte de movimento, sendo ele próprio eterno, um Ar que é infinito enquanto eterno e finito enquanto manifestação física; esse Ar, que move a Physis, é um pneuma, spiritus, sopro divino. Se pois as cousas vêm do Ar ou do Fogo, da Água ou da Terra, ou dos quatro elementos segundo uma antiga tradição a que se filiam Empédocles e outros, a fascinação da Physis não abandonou nunca o pensamento grego. Os pré-socráticos foram censurados por Aristóteles por não haverem descoberto a doutrina das quatro causas, e não por haverem buscado a origem dos seres na Physis; seu erro consistiu em haverem procurado a origem dos seres unicamente na natureza da matéria; são censurados porque não fizeram ver o princípio ordenador do Kosmos sobre o Chaos da Physis. Não destacaram claramente a substância formal e a causa final que pendem do princípio do Kosmos e não do Chaos. Aristóteles vem completá-los, não refutá-los.
A Physis é em suma o princípio de irrupção e nascimento (como diz a palavra Natura, que traduz Physis e vem de nasci). Aristóteles poderá ter chamado Physicos os primeiros filósofos. Porque, segundo ele, esses filósofos se voltaram unicamente para a Physis e não para o Logos que a ordena. Isto não quer dizer que a Physis não esteja presente com os quatro elementos que a constituem. A Physis segundo Aristóteles é coeterna ao Motor Imóvel. Ela pode tornar-se matéria-prima, como o informe — o que não tem forma — e que é potência pura; e como potência pura, a Natureza é um todo anterior às partes. (Foi a época moderna que reduziu a Natureza à quantidade morta, ao fragmentário, à adição e à inércia, tal [90] como fazem essas ciências da natureza, que supõem a negação da natureza das cousas). A Natureza aristotélica é um todo anterior às partes, por isso que é potência pura e matéria-prima. Esta Matéria porém é uma Hyle, algo completamente estranho ao que se pretende dizer hoje com a palavra “matéria”. Procurar a origem do materialismo nos gregos é absurdo porque, como sublinhava em suas exegeses o professor Eudoro de Sousa , não há em grego nenhuma palavra que diga “matéria” no sentido atual do termo; (a mesma observação poderíamos estender aos hindus, nos quais certas histórias da ¡filosofía querem apontar correntes “materialistas”).
A Matéria grega é uma realidade viva, Hyle significando floresta, bosque, como princípio maternal; é uma palavra que se traduz exatamente por madeira ou Matéria, que vem de mater. A Matéria é o princípio materno. É por isso que a Matéria é um todo dotado de potência germinativa e irruptiva, Aristóteles a dá como preexistente à fecundação do Logos. É como o Chaos que preexiste ao Kosmos. É aquilo de que as cousas se fazem, desenvolvendo-se na Terra, de onde irrompem os seres físicos, umedecidos pela Água, vivificados pelo Ar, iluminados e inflamados pelo Fogo. Esta Physis, esta Hyle, é banhada pela escuridão da Noite originária e pelo clarão das Ideias platônicas. Ela é, segundo Heidegger, a saída para o aberto, o que volta incessantemente a si mesmo, o que se insinua e o que se desvanece. É matriz e maternidade; é campo no qual a semente cria flores. É o plano íntimo do fenômeno, do que aparece, mostrando o que é, como um ponto em que por um momento a luz se fixa na escuridão da sombra.
Não é pois ao pensamento tradicional que se possa mover a acusação de haver oposto o homem vivo à natureza morta; os filósofos tradicionais não conceberam a matéria qual a mecânica do inerte, nem o espírito como negação do corpo. Nunca procuraram a origem do mundo no que se chama atualmente “matéria”. Acreditavam no corpo esses filósofos para os quais o fenômeno revelava a Physis sob o rasgo da luz eterna. Acreditavam no corpo e na terra, porque estavam ligados ao que é concreto; não haviam feito da realidade um conjunto de relações abstratas. A filosofia tradicional era Metafísica e não Ontologia.
A Physis grega é um cenário onde se desenrola a tragédia divina, saindo da obscuridade sem forma. É o ponto em que [91] o jogo da sombra e da luz torna inteligíveis os fenômenos, sob a projeção do que Platão denominava o realmente real. A filosofia grega era uma estética da visão, do theorein aristotélico, theoria significando contemplação. Uma filosofia estética não podia deixar de acreditar no corpo, que é a expressão da Beleza, posta, segundo os escolásticos, na integridade, na proporção e na claridade da forma. A forma é o princípio imaterial da claridade que anima e dá expressão ao corpo. A Physis não era objeto de análises, mas de contemplação. Contemplação que é como a sabedoria, a sophia do que se delineia rio espelho, speculum da Natureza.
A Natureza antiga não tem relação alguma com o que denominamos hoje mundo. O mundo é para nós entidade “física”, entidade “material” ou conjunto de relações matematicamente compreensíveis. É um conjunto de esferas girando no espaço para cumprir as leis da física teórica. Mas a física teórica não é a ciência da Harmonia das Esferas. Que significa pois essa palavra Mundus, seja etrusca sua origem, ou romana? — O Mundus — como a Physis em vários sentidos — é um ponto de conexão entre os reinos da sombra e os reinos da luz divina. O Mundus, como diz Kérényi [3] é uma arché, onde vem a dar o reino subterrâneo e anterior dos antepassados. Era um círculo profundo como um poço, sulcus primigenius, de onde se invocavam talvez aqueles que estavam sob a terra e aqueles que estavam no céu, a sombra e a luz. Porque o Mundus compreende os mortos e os vivos, o visível e o invisível, o mortal e o divino. E por isso é que cada sulcus primigenius era um Centro do Mundo. — Não tendo compreendido a Natureza como quantidade e massa, o Centro não era para os povos clássicos o que é para nós. Os antigos podiam saber, depois do pitagórico Philolaos e depois de Aristarco de Samos, que a terra gira em torno do sol; mas nem por isso o Mundus deixou de ser um Centro; o Centro para os antigos tinha um sentido, era um centro de significações [4]. [92]
A Physis responde aos princípios de matéria e forma que estão presentes nos pré-socráticos sob os nomes de Chaos e Kosmos, Indeterminado e Fogo, Calor e Frio, Infernal e Divino. O homem, justamente por estar situado nesse ponto de intersecção do infernal e do divino, é a sede de uma luta dos contrários, atraído pela Noite do obscuro e fascinado pelo clarão luminoso do que não passa: sente-se como a vítima de uma guerra eterna, o polemos de Heráclito, cujas forças lhe escapam; e por isso se interpreta a si mesmo como protagonista da catástrofe, gerada pelas paixões, pelos ódios e pelos amores dos deuses. Mas, por isso mesmo que o homem está posto numa convergência entre a luz e a sombra, Platão lhe pede que se volte para o eterno, para o imutável, como para a purificação e a liberdade. Não deve perder-se na ilusão do que não é realmente real. Pois, o que aparece como real aos olhos vulgares, é o sinal de uma realidade mais funda; a realidade aparente é mistura de ser e não-ser, de matéria e forma, de potência e ato, tudo o que passa na melancolia de Heráclito. Porque Platão e Aristóteles fundaram a mais grega de todas as metafísicas, que supõe, oculta e revela em suas consequências todo o pensamento pré-socrático. A instabilidade das cousas vem da interpenetração sempre inconstante do ser e do nada, da forma e da matéria, da luz e da sombra. O Fogo e o rio estão presentes em Platão e Aristóteles.
A Natureza não morreu no realismo aristotélico, mas antes acompanhou a sua sorte e morreu com ele. Nem se vê porque é que a filosofia aristotélico-platônica possa ter sido um pensamento de fabricação. Enquanto o realismo foi uma filosofia viva, a Natureza não estava morta. Há em Heidegger uma contradição que consiste em querer ser realista e ao’ mesmo tempo ver a passagem do realismo ao representativismo como uma espécie de passo para a frente. Foi o representativismo, o criticismo, o empirismo, o racionalismo, o idealismo relativo e absoluto, o positivismo e o materialismo que fizeram desaparecer a Natureza e produziram a solidão do homem. A Natureza era a grande amiga onde murmuravam as fontes visíveis e falavam as vozes do invisível: Virgílio viu ainda a Natureza como essa vivência do visível e do invisível, como a poesia do bucólico e como a paz do silêncio remoto. Mas [93] como poderia ainda haver Natureza, numa época como a nossa, quando a poesia já morreu e quando a técnica se apresenta como um triunfo do homem sobre a natureza?
A Natureza ficou vazia de sentido, juntamente com essas filosofias modernas que esterilizaram o conteúdo do fenômeno; a morte do fenômeno e a manipulação da Natureza são fatos inseparáveis.
O phenômeno perdeu todo sentido desde que, por um lado, foi transformado numa projeção do sujeito — sujeito individual, geral ou absoluto, não importa — e desde que o espaço e o tempo foram vistos como projeções da sensibilidade individual ou do espírito absoluto.
A Natureza foi outrora como a corporalidade e a expressão do divino; os lugares e os tempos eram lugares e tempos naturais. Cada lugar do espaço era ele próprio, com a marca do seu gênio. Havia a paisagem natal e o Mundus com a sua vizinhança; cada ser tinha o seu lugar próprio. O1 tempo não era feito de momentos homogêneos e iguais; o momento privilegiado era uma cousa que existia, que era real, e marcava cada existência com o seu signo. O tempo era ritmo e não monotonia; não era essa mono-tonalidade, que é a repetição mecânica e desolante da vida jogada fora do espaço e fora do tempo. Quando o tempo morreu, ele matou a vida mesma. Num tempo feito de momentos iguais, num tempo científico, não há o momento privilegiado; tanto faz nascer ou morrer, tudo é indiferente: o momento da nossa morte é um momento qualquer, tal hora e tal minuto do relógio, sob a pressa das agências funerárias, na confusão das moradas coletivas; Sartre disse que nós morremos à toa, morremos sem sentido, nous mourons par dessus le marché; morremos como se fosse nada, porque não há mais nenhum momento privilegiado.
Ora bem, no tempo reduzido à cronometria e no espaço reduzido à uniformidade, como poderia ainda haver Natureza se toda a realidade que fazia a Natureza, não é mais real para nós, não é real para as ciências “da natureza”? A Natureza foi destruída pelas filosofias da representatividade e da subjetividade. Pelas filosofias que julgaram que a Natureza não era mais que um fantasma projetado pelo sujeito. Pelas filosofias que negaram o fenômeno, como foco de luz e sombra, que aniquilaram o fenômeno como revelador do Ser. O [94] homem pôde viver na realidade natural enquanto o espaço e o tempo pertenceram à Natureza. Mas quando Kant , tirando a conclusão das premissas postas por Descartes e reproduzindo Leibniz , tornou subjetivos o espaço e o tempo, a Natureza já estava morta, já não podia haver Natureza. A Natureza se tornou desde então objeto de técnicas e manipulações científicas, mas não foi mais a Natureza como luz e sombra, como pintura divina, como cousa para que se volvia a contemplação estética como sabedoria da vida.
A Natureza se tornou então, ou bem esse fenômeno que nós próprios criamos do fundo da nossa subjetividade, ou bem essa cousa-em-si, de que fala Kant, da qual não se sabe nem mesmo se existe, pois ela é o incognoscível absoluto, do qual não se pode nada saber, nem mesmo se é ou não. O espaço e o tempo, sendo produtos do sujeito, a realidade sendo feita só de relações abstratas, o terror existencialista se apoderou do homem, porque nós não estamos nunca em parte alguma e em nenhum tempo, porque somos nós que levamos o espaço e o tempo, em nossa dilacerante, pungente solidão. É inútil exorcisar o terror com as fórmulas existencialistas: viver é estar no mundo; estamos no mundo; nós estamos realmente no mundo. Essas fórmulas existencialistas conseguem apenas mascarar a íntima certeza de que não estamos em parte alguma. — Não estamos mais numa Natureza; já não estamos nem mesmo numa terra ou num planeta; somos pontos ínfimos do espaço infinito, longe de nosso Mundus e da nossa Physis.
Por outro lado, não há nada mais falso do que dizer que estamos num plano em que não há senão o homem. É fácil dizer que toda a filosofia depois de Anaximandro não foi senão humanismo e antropologismo; é preciso saber de que homem se trata quando se fala em humanismo, como falam Sartre e seus apagados discípulos. Trata-se do homem-massa, do homem mecânico, do homem cibernético? — Porque o homem propriamente dito é indissolúvel na Natureza. E não há hoje mais homens porque não há mais Natureza; não só não há mais uma Natureza para o homem como também não se crê mais numa natureza do homem; o positivismo e o materialismo entenderam que o vivo e o inerte não se distinguem pela natureza, mas apenas pelo grau da complicação, da complexidade e da quantidade crescente. O sujeito mesmo já não pôde existir depois de ter sido reduzido a um objeto qualquer [95] da “natureza” “material”, um ponto de cruzamento de “leis” físicas e químicas. Eliminada a natureza do homem, o homem aparece como um acidente sem substância própria. O homem se vê a si mesmo como um produto causal do gigantesco laboratório, que se tornou a natureza de nossos dias.
É exato que nesta época de profundas crises há uma espécie de ressurreição e de nostalgia do realismo. Mas a questão que se põe é saber se é possível retornar ao realismo sem retornar à realidade. Retornar não significa voltar ao que já foi. Retornar significa cumprir o desejo doloroso — a nostalgia — de se reencontrar a si mesmo e reencontrar o que é seu; reencontrar-se no seu lugar próprio e no seu tempo vivido, onde haja uma imanência e uma transcendência que não possam atingir nem as técnicas, nem as ciências do superficial.
[1] De que uma parte, traduzida pelo Professor Eudoro de Sousa sobre o texto de Diels, foi publicada na “Revista Brasileira de Filosofia”.
[2] Como dá a entender a obra de Manuel Garcia Morente sobre os Fundamentos da Filosofia.
[3] Num dos capítulos do livro que escreveu juntamente com Jung, cuja tradução francesa tem o título de Introduction à L’Essence de la Mythologie, Payot, Paris, 1953, pág. 20 e 21.
[4] Sobre o significado metafísico do heliocentrismo e do geocentrismo, indicaria uma passagem do meu trabalho “Considerações sobre a crise do Senso Comum”. Heidegger em sua originalíssima lição “Sobre a Cousa” retoma a tese do sentido da significação, do que tem e não tem significado, embora em outro plano.