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Schopenhauer (MVR1): vontade é

quinta-feira 25 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

Entrementes, UMA de tais questões ainda pode ser particularmente discutida, pois surge apenas no caso de não se ter ainda penetrado por completo no sentido do que foi exposto anteriormente, servindo, assim, para elucidação do assunto. É o seguinte. Cada VONTADE É vontade de alguma coisa, tem um objeto, um fim de seu querer: mas o que quer em última instância, ou pelo que se empenha aquela vontade que se expõe para nós como a essência íntima do mundo? — Eis aí uma questão que se baseia, como tantas outras, na confusão da coisa em si com a aparência. Ora, só a esta, não àquela, estende-se o princípio de razão, cuja figura é também a da lei de motivação. Em toda parte podemos fornecer um fundamento apenas das aparências mesmas, das coisas particulares, nunca da vontade, nem da ideia em que ela se objetiva adequadamente. Nesse sentido, para cada movimento isolado ou, em geral, mudança na natureza, pode-se procurar uma causa, mas nunca uma causa da força natural ela mesma que se manifesta naquela e em inumeráveis aparências semelhantes: por isso é um grande mal-entendido, resultante da falta de clarividência, perguntar por uma causa da gravidade, da eletricidade etc. Só se tivesse sido provado que a gravidade e a eletricidade não são propriamente forças naturais originárias, mas simples modos de aparição de uma força mais universal já conhecida; neste caso, sim, alguém poderia perguntar pela causa que aqui permite a essa força natural produzir a aparência da gravidade e da eletricidade. Tudo isso foi anteriormente objeto de detalhadas considerações. Igualmente, cada ato isolado da vontade de um indivíduo que conhece possui necessariamente um motivo, sem o qual o ato nunca entraria em cena: mas, assim como a causa material contém meramente a determinação sob a qual neste tempo, neste lugar, nesta matéria uma exteriorização desta ou daquela força natural tem de entrar em cena, assim também o motivo determina neste tempo, neste lugar, sob tais circunstâncias apenas o ato completamente particular da vontade de um ser que conhece; de modo algum, porém, determina o que aquele ser quer em geral e de que maneira; tal ser é exteriorização de seu caráter inteligível, o qual, como a vontade mesma, a coisa em si, é sem fundamento, ou seja, alheio ao domínio do princípio de razão. Por conseguinte, cada ser humano sempre tem fins e motivos segundo os quais conduz o seu agir e sabe a todo momento fornecer justificativas sobre os seus atos particulares; no entanto, caso se lhe pergunte por que em geral quer ou por que em geral quer existir, não daria uma resposta, mas, antes, a pergunta lhe pareceria absurda: justamente aí exprime-se a consciência de que ele nada é senão vontade, cuja volição compreende-se em geral por si mesma, e apenas em seus atos isolados para cada ponto do tempo é que precisa de uma determinação mais específica através de motivos. [MVR1: §29]

Se para nós a VONTADE É a COISA EM SI e as IDEIAS são a sua objetidade imediata num grau determinado, encontramos, todavia, a coisa em si de Kant   e a ideia de Platão — único Que verdadeiramente é, — estes dois grandes e obscuros paradoxos dos dois maiores filósofos do Ocidente, de fato não como idênticas, mas como intimamente aparentadas e diferentes apenas em uma única determinação. Os dois paradoxos, que, apesar da sua afinidade interna e parentesco, soam tão diversamente em virtude das individualidades extraordinariamente diferentes de seus autores, são o melhor comentário um do outro, na medida em que se assemelham a dois caminhos completamente diferentes que conduzem a UM mesmo fim. — Isso pode ser evidenciado em poucas palavras. Em verdade, o que KANT diz é, no essencial, o seguinte: “Tempo, espaço e causalidade não são determinações da coisa em si, mas pertencem somente à sua aparência, pois eles não passam de meras formas de nosso conhecimento. Ora, como toda pluralidade, nascer e perecer só são possíveis por meio de tempo, espaço e causalidade; segue-se daí que também pluralidade, nascer e perecer cabem exclusivamente à aparência, de modo algum à coisa em si. Todavia, como nosso conhecimento é condicionado por aquelas formas, a experiência inteira é apenas conhecimento da aparência, não da coisa em si; por conseguinte, as leis da experiência não podem se tornar válidas para a coisa em si. Mesmo ao nosso próprio eu aplica-se o que foi dito, e o conhecemos somente como aparência, não segundo o que possa ser sem si”. — Esse é, no aspecto significativo aqui considerado, o sentido e conteúdo da doutrina de Kant. — Platão, por sua vez, diz algo assim: As coisas deste mundo, que os nossos sentidos percebem, não têm nenhum ser verdadeiro: ELAS SEMPRE VÊM A SER, MAS NUNCA SÃO: têm apenas um ser relativo; todas juntas somente o são em e através de sua relação uma para com a outra: pode-se, por conseguinte, igualmente nomear a sua inteira existência um não ser. Em consequência, também não são objeto de um conhecimento propriamente dito, pois só pode haver conhecimento daquilo que é em e para si, sempre da mesma maneira: as coisas deste mundo, ao contrário, são apenas objeto de uma opinião ocasionada pela sensação. Enquanto nos limitamos à sua percepção, assemelhamo-nos a homens que estariam sentados presos numa caverna escura, tão bem atados que não poderiam girar a cabeça, de modo que nada veem a não ser as sombras projetadas na parede à sua frente de coisas reais que seriam carregadas entre eles e um fogo ardente atrás deles; sim, cada um veria inclusive aos outros e a si mesmo apenas como sombras na parede à frente. Sua sabedoria, então, consistiria em predizer aquela sucessão de sombras, apreendida da experiência. Ao contrário, só as imagens arque típicas reais daquelas sombras, as ideias eternas, formas arquetípicas de todas as coisas, é que podem ser ditas verdadeiras, pois elas SEMPRE SÃO, ENTRETANTO NUNCA VÊM A SER NEM PERECEM: a elas não convém PLURALIDADE ALGUMA, pois todas, conforme a sua essência, são unas, na medida em que cada uma delas é a imagem arquetípica mesma, cujas cópias ou sombras são as coisas isoladas e efêmeras da mesma espécie e de igual nome. Às ideias não convém NASCER NEM PERECER, pois são verdadeiramente, nunca vindo a ser nem sucumbindo como suas cópias que desvanecem. Apenas delas, por conseguinte, há um conhecimento propriamente dito, pois o objeto de tal conhecimento só pode ser o que sempre é e em qualquer consideração, não o que é, mas depois também não é, dependendo de como se o vê”. — Eis aí a doutrina de Platão. É manifesto e não precisa de nenhuma demonstração extra que o sentido íntimo de ambas as doutrinas é exatamente o mesmo, que ambos os filósofos declaram o mundo visível como uma aparência, nela mesma nula, que tem significação e realidade emprestada apenas mediante o que nele se expressa; porém, esta realidade que verdadeiramente é escapa, em arribas as doutrinas, por completo às formas da aparência, mesmo as mais universais. Kant, para negar tais formas, concebeu-as imediatamente em expressões abstratas, isentando a coisa em si de tempo, espaço e causalidade, como sendo meras formas do que aparece. Platão, por outro lado, não chegou até essa expressão superior e só indiretamente pôde isentar as ideias daquelas formas, na medida em que nega às ideias o que só é possível por elas, a saber, plural idade do que é homogêneo, o nascer e o perecer. Embora seja dispensável, quero ainda clarear essa notável e significativa concordância mediante um exemplo. Suponha-se um animal diante de nós em plena atividade de vida. Platão diria: “Este animal não possui nenhuma existência verdadeira, mas apenas uma aparente, constante vir a ser, uma existência relativa, que tanto se pode chamar de não ser quanto de ser. Verdadeiramente é apenas a ideia, estampada naquele animal, ou animal em si mesmo, que não depende de nada, mas é em e para si, nunca veio a ser, nunca se extinguindo, mas sempre é da mesma maneira. Enquanto reconhecemos nesse animal a sua ideia, é por completo indiferente e sem significação se temos aqui e agora diante de nós este animal ou seu ancestral que viveu há milhares de anos; também é indiferente se ele se encontra aqui ou num lugar distante, se ele se oferece desta ou daquela maneira à consideração, nesta ou naquela posição, ação, ou se, finalmente, ele é este ou algum outro indivíduo de sua espécie: todas essas coisas são nulas e tais diferenças têm significado apenas em relação à aparência: unicamente a ideia do animal possui ser verdadeiro e é objeto de conhecimento real.” — Assim Platão. Kant diria: “Este animal é uma aparência no tempo, no espaço e na causalidade, formas que, por sua vez, são as condições a priori completas da experiência possível, presentes em nossa faculdade de conhecimento, não determinações da coisa em si. Por consequência, este animal, tal qual o percebemos neste determinado tempo, neste dado lugar, como vindo a ser no encadeamento da experiência — isto é, na cadeia de causas e efeitos, e em virtude disso necessariamente indivíduo que perece —, não é coisa em si, mas uma aparência válida apenas em relação ao nosso conhecimento. Para saber o que ele pode ser em si, por conseguinte independente de todas as determinações encontradas no tempo, no espaço e na causalidade, seria preciso outro modo de conhecimento além daquele que unicamente nos é possível pelos sentidos e pelo entendimento”. [MVR1: §31]

Se nos fosse uma vez permitido um olhar claro no reino da possibilidade bem como sobre toda a cadeia de causas e efeitos, então o Espírito da Terra apareceria e num quadro mostraria os indivíduos mais primorosos, ilustradores do mundo e heróis, ceifados antes do tempo pelo acaso, antes até mesmo de concluírem a sua obra — em seguida, veríamos como os grandes eventos que deveriam ter mudado a história universal e produzido períodos de grande cultura e ilustração foram, no entanto, abortados em seu nascimento pelos imprevistos mais cegos e o acaso mais insignificante; por fim, veríamos as forças esplêndidas de grandes indivíduos que enriqueceriam épocas inteiras sendo desperdiçadas pelo erro, pela paixão, ou mesmo empregadas, devido à necessidade, em objetos infrutíferos e inúteis, ou então dissipadas em jogo: — se víssemos tudo isso, tremeríamos e lamentaríamos os tesouros perdidos de épocas inteiras. Porém, o Espírito da Terra sorriria, dizendo: A fonte da qual fluem os indivíduos e as suas forças é inesgotável e infinita como tempo e espaço: pois assim como estas são apenas a forma da aparência, os indivíduos também são apenas a aparência, a visibilidade da vontade. Nenhuma medida finita pode esgotar aquela fonte infinita: por isso, para cada evento, para cada obra que foi abortada em gérmen, ainda permanece aberta a infinitude contínua do seu retorno. Neste mundo da aparência é tão pouco possível uma verdadeira perda quanto um verdadeiro ganho. Só a VONTADE É: ela é a coisa em si, a fonte de todas as aparências. O seu autoconhecimento e, daí, a sua decisão pela afirmação ou negação são o único acontecimento em si”. [MVR1: §35]

Essa bem-aventurança do intuir livre de VONTADE É, por fim, também o que espalha um encanto tão extraordinário sobre o passado e a distância, expondo-os em luz exuberante por meio de uma autoilusão, pois, na medida em que tornamos presentes os perdidos dias pretéritos, longinquamente situados, na verdade a fantasia chama de volta apenas os objetos, não o sujeito do querer, que outrora carregava consigo seus sofrimentos incuráveis, como o faz agora: mas tais sofrimentos foram esquecidos, porque desde então cederam frequentemente o seu lugar a outros. Com isso, a intuição objetiva faz efeito na recordação exatamente como faria a intuição presente, caso seja possível entregarmo-nos a esta livres do querer. Eis por que, sobretudo quando uma necessidade nos angustia mais do que o comum, a recordação súbita de cenas do passado distante muitas vezes paira diante de nós como um paraíso perdido. Apenas o objetivo, não o individual-subjetivo, é trazido de volta pela fantasia, figurando diante de nós aquele objetivo como se, outrora, fosse tão puro e tão pouco turvado por qualquer relação com a vontade como agora é tão pura e tão pouco turvada a sua imagem na fantasia, apesar de a relação dos objetos com o nosso querer ter gerado outrora tanto tormento quanto agora. Podemos furtar-nos ao sofrimento seja pelos objetos presentes, seja pelos objetos longínquos, desde que nos elevemos à pura consideração objetiva dos mesmos e consigamos criar a ilusão de que somente os objetos estão presentes, não nós: o resultado é que, libertos do si mesmo sofredor, tornamo-nos, como sujeito do conhecer, inteiramente unos com os objetos; e, assim como nossa necessidade lhes é estranha, assim também, nesse instante, semelhante necessidade é estranha a nós mesmos. Resta apenas o mundo como representação; o mundo como vontade desapareceu. [MVR1: §38]

Há também um excitante negativo, ainda mais repreensível que o acima explanado excitante positivo. Trata-se do repugnante, que, tanto quanto o excitante em sentido estrito, desperta a vontade do espectador e, com isso, destrói a pura consideração estética. Aqui, no entanto, o que é excitado é uma aversão enérgica, uma repulsa: a VONTADE É despertada na medida em que lhe são apresentados objetos nauseabundos. Por isso se reconheceu desde sempre que o excitante negativo é inadmissível na arte, na qual até mesmo o feio é suportável, desde que não repugnante, e seja posto em lugar adequado, como veremos mais adiante. [MVR1: §40]

Em vista do conhecimento da essência da humanidade, tenho até mesmo de atribuir um maior valor às biografias, sobretudo às autobiografias, do que à história propriamente dita, pelo menos como esta é comumente tratada. Em parte porque os dados biográficos podem ser reunidos mais correta e completamente; em parte porque na história propriamente dita não agem tanto as pessoas, mas antes os povos e os exércitos, e os indivíduos que porventura entram em cena aparecem numa distância tão grande, cercados de tanta pompa e circunstância, envoltos em vestimentas de Estado volumosas ou em couraças pesadas e rígidas, que de fato é difícil reconhecer o movimento pessoal em meio a tudo isso. Ao contrário, a descrição fiel da vida do indivíduo mostra, numa esfera limitada, o modo de ação pessoal em todas as suas nuanças e figuras: vemos a excelência, a virtude, mesmo a santidade dos indivíduos, ou então a perversidade, a mesquinhez, a malícia da maioria, a perfídia de muitos. Da perspectiva aqui considerada, ou seja, a significação interior da aparência, é inteiramente indiferente se os objetos em torno dos quais gira a ação, relativamente considerados, são coisas diminutas ou grandiosas, aldeias ou reinos, pois todas essas coisas são nelas mesmas sem significação e a adquirem apenas na medida em que a VONTADE É por meio delas movimentada. Cada motivo tem sua significação simplesmente em sua relação com a vontade; já a relação dele enquanto coisa com outras coisas não entra em consideração: assim como um círculo de uma polegada de diâmetro possui exatamente as mesmas características de um círculo de quarenta milhões de milhas, assim também os acontecimentos e a história de uma aldeia e aqueles de um reino são no essencial os mesmos; tanto num quanto noutro caso pode-se estudar e conhecer a humanidade. É, portanto, um erro afirmar que as autobiografias são cheias de engodo e dissimulação. A mentira é possível em toda parte, mas em nenhum outro lugar é talvez mais difícil do que na autobiografia. A dissimulação é mais fácil na simples conversação; soa paradoxal, mas já numa carta é, no fundo, mais difícil dissimular, porque aí quem escreve, abandonado a si mesmo, vê antes o que se passa em seu interior, não no exterior, e é difícil para alguém nessa situação aproximar o que está distante e alheio e vê-lo de forma correta, com o que perde (ao contrário da conversação) a medida da impressão que provocaria sobre outrem; o destinatário de uma carta, por outro lado, a lê de modo sereno e numa disposição alheia à do remetente, pode lê-la repetidas vezes, em diferentes ocasiões, e assim facilmente desmascarar a intenção secreta. Conhece-se melhor e mais facilmente um autor, também como pessoa, a partir do seu livro, pois aquelas condições fazem efeito na escritura de um livro de modo ainda mais vigoroso e constante. Dissimular numa autobiografia é tão difícil que talvez não haja nenhuma, tomada em seu conjunto, que não seja mais verdadeira que qualquer outra história escrita. A pessoa que traça a sua vida abarca-a no seu todo e amplitude; o particular torna-se pequeno, o próximo se distancia, o distante se aproxima, as precauções desaparecem: a pessoa se coloca voluntariamente no confessionário: numa semelhante situação, a mentira não é tão fácil, pois em cada um também reside uma inclinação para a verdade — que em cada mentira tem de primeiro ser vencida — e, justo no caso aqui abordado, tal inclinação assume uma posição inusitadamente forte. A relação da biografia com a história dos povos torna-se intuitiva pela seguinte comparação. A história mostra-nos a humanidade como, de uma alta montanha, a natureza nos é mostrada em perspectiva: vemos muito de uma só vez, vastos espaços, grandes massas, mas nada é reconhecível de maneira distinta e em conformidade com sua constituição propriamente dita. A vida exposta do indivíduo, ao contrário, nos exibe o ser humano como se nos mostra a natureza quando a reconhecemos ao passearmos por entre suas árvores, plantas, rochedos e correntes d água. Ora, assim como na pintura paisagística, com a qual o artista nos permite ver a natureza com seus olhos, é-nos bastante facilitado o conhecimento das ideias, bem como o estado exigido para isso do conhecer puro destituído de vontade, assim também a poesia leva vantagem sobre a história e a biografia no que tange à exposição das ideias: também na poesia o gênio segura diante de nós um límpido espelho, no qual vemos aparecer reunido na luz mais cristalina tudo o que é essencial e significativo, purificado de todas as casualidades e estranhezas. [MVR1: §51]

O ponto de vista fixado e o modo de abordagem indicado já sugerem que neste livro de ética não se deve esperar prescrições nem doutrinas do dever, muito menos o estabelecimento de um princípio moral absoluto parecido a uma receita universal para a produção de todas as virtudes. Também não falaremos de “DEVER INCONDICIONADO”, porque este, como exposto no apêndice, contém uma contradição, nem tampouco falaremos de uma “lei para a liberdade”. Não discursaremos sobre o “dever”, pois assim fazendo falamos a crianças e povos em sua infância, e não àqueles que assimilaram em si mesmos toda a cultura de uma época madura. De fato, é uma contradição flagrante chamar a vontade de livre, e no entanto prescrever-lhe leis segundo as quais deve querer: “deve querer!”, ferro-madeira! À luz de toda a nossa visão, contudo, a VONTADE É não apenas livre, mas até mesmo onipotente: dela provém não só sua ação, mas também seu mundo; tal qual ela é, assim aparecerá sua ação, assim aparecerá seu mundo: ambos são seu autoconhecimento e nada mais: ela determina a si e justamente por aí determina sua ação e seu mundo: estes dois são ela mesma, pois exterior à vontade não há nada: só assim ela é verdadeiramente autônoma; sob qualquer outro aspecto, entretanto, é heterônoma. Nossa tarefa filosófica, portanto, só pode ir até a interpretação e explanação da ação humana, das diversas e até mesmo opostas máximas das quais a ação é a expressão viva, de acordo com sua essência mais íntima e conteúdo. Isso será feito em conexão com a nossa discussão prévia e exatamente da mesma maneira como até então procuramos interpretar as demais aparências do mundo, ou seja, trazendo a sua essência mais íntima a conceitos distintos e abstratos. Nossa filosofia afirmará aqui a mesma IMANÊNCIA afirmada em tudo o que foi antes considerado: não usará as formas da aparência, cuja expressão geral é o princípio de razão, como uma vara de saltar por sobre as aparências elas mesmas, para depois pousar no vasto domínio das ficções vazias. Fazendo isso, respeita-se a grande doutrina de Kant. Este mundo efetivo da cognoscibilidade, no qual estamos e que está em nós, permanece como matéria e limite da nossa consideração: mundo tão rico em conteúdo que nem a mais profunda investigação da qual o espírito humano é capaz poderia esgotá-la. Ora, visto que o mundo efetivo e cognoscível jamais recusará matéria e realidade também para nossas considerações éticas, tampouco quanto recusou para as considerações anteriores, nada será menos necessário do que procurarmos refúgio em conceitos negativos e vazios de conteúdo, para assim fazer acreditar que dizemos algo quando levantamos solenemente as sobrancelhas e pronunciamos” absoluto”, “infinito”, “suprassensível” e semelhantes puras negações — nihil est, nisi negationis nomen, cum obscura notione. Juliano, Orationis, as quais, antes, poder-se-ia chamar de Cucolândia das Nuvens: não colocaremos sobre a mesa tais conclusões vazias de conteúdo. Enfim, tanto agora quanto nos livros precedentes não contamos histórias, fazendo-as valer por filosofia, pois somos da opinião de que está infinitamente distante do conhecimento filosófico do mundo quem imagina poder conceber a essência dele HISTORICAMENTE, por mais que faça uso de disfarces; este é o caso, entretanto, quando numa visão do ser em si do mundo encontramos algum tipo DE VIR A SER, ou tendo vindo a ser, ou vir vir a ser, algo parecido a um antes e um depois que detém a última significação, com o que, em consequência, distinta ou indistintamente é procurado e achado um ponto inicial e final do mundo, bem como o caminho entre eles, e o indivíduo filosofante conhece exatamente a sua posição nesse caminho. Semelhante FORMA HISTÓRICA DE FILOSOFAR fornece na maioria das vezes uma cosmogonia, a qual admite muitas variedades, ou então um sistema da emanação, doutrina da queda; ou ainda, por conta da dúvida desesperadora advinda dessas tentativas estéreis, é-se levado a um último caminho, oferecendo-se uma doutrina do constante vir a ser, brotar, nascer, vir a lume a partir da escuridão, do fundamento obscuro, do fundamento originário, do fundamento infundado e outros semelhantes disparates; porém, tudo isso pode rapidamente ser descartado mediante a observação de que toda uma eternidade, isto é, um tempo infinito, já transcorreu até o momento presente, pelo que tudo o que pode e deve vir a ser já teve de vir a ser. Todas essas filosofias históricas, não importam seus ares, fazem de conta que Kant nunca existiu e tomam O TEMPO por uma determinação da coisa em si, com o que permanecem naquilo que foi por Kant denominado aparência, em oposição à coisa em si, e por Platão o que sempre vem a ser, em oposição ao ser; ou finalmente naquilo denominado pelos indianos véu de mãyã: trata-se aqui precisamente do conhecimento que pertence ao princípio de razão, com o qual jamais se atinge a essência íntima das coisas, mas somente se persegue aparências ao infinito, num movimento sem fim e sem alvo, semelhante ao esquilo que corre na roda de uma gaiola, até que se cansa e para, acima ou abaixo, num ponto aleatório, para o qual então se exige respeito. O autêntico modo de consideração filosófico do mundo, ou seja, aquele que nos ensina a conhecer a sua essência íntima e, dessa maneira, nos conduz para além da aparência, é exatamente aquele que não pergunta “de onde”, “para onde”, “por que”, mas sempre e em to a parte pergunta apenas pelo QUÊ do mundo, vale dizer, não considera as coisas de acordo com alguma relação, isto é, vindo a ser e perecendo, numa palavra, conforme uma das quatro figuras do princípio de razão, mas, diferentemente, tem por objeto precisamente aquilo que permanece após eliminar-se o modo de consideração que segue o referido princípio, noutros termos, tem por objeto o ser do mundo sempre igual a si e que faz seu aparecimento em todas as relações, porém sem se submeter a estas, numa palavra, as ideias mesmas. A filosofia, como a arte, procede desse conhecimento, e, como veremos neste livro, também é desse conhecimento que procede aquela disposição de espírito que unicamente conduz à verdadeira santidade e à redenção do mundo. [MVR1: §53]

Aparte o fato de a vontade, como a verdadeira coisa em si, ser algo originário e independente, e que o sentimento de sua originariedade e autonomia tem de, na consciência de si, acompanhar seus atos, embora aqui já determinados; aparte isso, o engano sobre a liberdade empírica da vontade, logo, de uma liberdade dos atos individuais, surge da posição separada e subordinada do intelecto em relação à vontade, exposta especialmente no item 3, capítulo 19, do segundo tomo desta obra. De fato, o intelecto vivencia as decisões da vontade apenas a posteriori e empiricamente. Nesse sentido, quando uma escolha se apresenta, ele não possui dado algum sobre como a vontade decidirá, pois o caráter inteligível, em virtude do qual diante de motivos dados só UMA decisão é possível, a qual conseguintemente é necessária, não se apresenta acessível ao conhecimento do intelecto — tão somente o caráter empírico lhe é cognoscível, de forma sucessiva e por atos isolados. Daí aparecer à consciência que conhece o intelecto como se, num caso dado, fossem igualmente possíveis para a vontade duas decisões opostas. Porém aqui se passa como se, ao vermos um poste vertical que se tornou desequilibrado e está oscilando, disséssemos: “Pode cair para a direita ou para a esquerda”; ora, o “PODE” possui tão só uma significação subjetiva e em realidade diz “no que tange aos dados conhecidos por nós”: pois objetivamente a direção da queda já está determinada de um modo necessário, desde o começo da oscilação. De maneira semelhante, a decisão da própria VONTADE É indeterminada só ao seu espectador, o próprio intelecto, ao sujeito do conhecer, portanto relativa e subjetivamente; por outro lado, em si mesma e objetivamente, a decisão é de imediato e necessariamente determinada em face de cada escolha que se apresenta. Contudo, essa determinação só entra na consciência pela decisão que se segue. Uma prova empírica disso também a temos quando nos encontramos diante de uma escolha difícil e importante, todavia sob uma condição que ainda não entrou em cena e é meramente esperada, de modo que nada podemos fazer até lá, tendo de aguardar passivamente. Ponderamos pelo que decidiremos no momento da aparição das circunstâncias, que nos permitiriam uma atividade e uma decisão livres. Na maioria das vezes a ponderação racional, que vê longe, fala em favor de uma decisão; enquanto a inclinação imediata, por sua vez, fala em favor de outra. Pelo tempo que temos de permanecer passivos, o lado da razão aparentemente tende a ganhar a preponderância; entretanto, já antevemos fortemente o quanto o outro lado irá nos atrair quando a oportunidade para agir se fizer presente. Porém até lá nos esforçamos zelosamente, por fria meditação dos pro et contra, em alumiar o mais claramente os motivos dos dois lados, a fim de que cada um possa com toda a sua força fazer efeito sobre a vontade quando o momento preciso apresentar-se, e, com isso, nenhum erro da parte do intelecto desvie a vontade para decidir-se de modo diferente do que faria se tudo fizesse efeito equanimemente. Semelhante desdobramento distinto dos motivos em dois lados é, no entanto, tudo o que o intelecto pode fazer em relação à escolha. A decisão propriamente dita é por ele esperada de modo tão passivo e com a mesma curiosidade tensa como se fosse a de uma vontade alheia. De seu ponto de vista, entretanto, as duas decisões têm de parecer igualmente possíveis: isso justamente é a ilusão da liberdade empírica da vontade. Na esfera do intelecto a decisão entra em cena de modo totalmente empírico, como conclusão final do assunto; contudo, esta se produziu a partir da índole interior, do caráter inteligível, da vontade individual em seu confronto com motivos dados e, por conseguinte, com perfeita necessidade. O intelecto nada pode fazer senão clarear a natureza dos motivos em todos os seus aspectos, porém sem ter condições de ele mesmo determinar a vontade, pois esta lhe é completamente inacessível, sim, até mesmo, como vimos, insondável. [MVR1: §55]

Como os motivos que determinam o aparecimento do caráter, ou o agir, fazem efeito sobre ele mediante o médium do conhecimento, e o conhecimento, por seu turno, é variável, oscilando constantemente entre erro e verdade, porém via de regra retificando-se cada vez mais no curso da vida, embora em graus muito diferentes; vem daí que a conduta de uma pessoa pode variar notavelmente sem que com isto se deva concluir sobre uma mudança de seu caráter. O que o ser humano realmente e em geral quer, a tendência de seu ser mais íntimo e o fim que persegue em conformidade a ela, nunca pode mudar por ação exterior sobre ele, via instrução: do contrário, poderíamos recriá-lo. Sêneca diz admiravelmente: velle non discitur, o que mostra que preferia a verdade ao doutrinamento dos estoicos, que diziam: doceri posse virtutem. Do exterior, a vontade só pode ser afetada por motivos. Estes, todavia, jamais podem mudar a vontade mesma: pois têm poder sobre ela apenas sob a pressuposição de que a mesma é exatamente tal como é. Tudo o que podem fazer é mudar a direção do esforço da vontade, isto é, fazer com que esta procure por um caminho diferente o que invariavelmente procura. Por conseguinte, instrução e conhecimento aperfeiçoado, vale dizer, ação do exterior, podem até ensiná-la que errou nos meios e assim fazê-la procurar o fim pelo qual se esforçava, de acordo com a sua essência íntima, por um caminho inteiramente outro e até mesmo em outro objeto: jamais, entretanto, podem fazer que realmente queira de maneira diferente do que quis até então, pois isto permanece inalterável, já que a VONTADE É apenas este querer mesmo, que do contrário teria de ser suprimido. Entrementes, aquele primeiro caso, isto é, a modificabilidade do conhecimento, e, por meio desta, do agir, vai tão longe que a vontade procura atingir seu fim invariável, por exemplo o paraíso de Maomé  , ora no mundo real, ora num mundo imaginário, adaptando a cada vez os meios e assim empregando num primeiro momento astúcia, violência e engodo, num outro, abstinência, justiça, esmolas, peregrinação a Meca. Porém, nem por isso o esforço mesmo da vontade mudou, muito menos ela mesma. Embora sua ação exponha-se bastante diferentemente em tempos diferentes, seu querer no entanto permanece exatamente o mesmo. Velle non discitur. [MVR1: §55]

A exposta dependência da capacidade humana de deliberação em relação à faculdade de pensar in abstracto, portanto também em relação ao ajuizamento e à inferência de conclusões, parece ter levado tanto Descartes   quanto Espinosa   a identificar as decisões da vontade com a faculdade de afirmar e negar; Descartes deduziu que a vontade, à qual ele atribuía liberdade de indiferença, era culpada por todo erro teórico; Espinosa, por seu turno, deduziu que a VONTADE É necessariamente determinada por motivos, assim como o juízo o é por fundamentos: o que é de certo modo correto, porém se dá como uma conclusão verdadeira a partir de premissas falsas. [MVR1: §55]

A pura DOUTRINA DO DIREITO é, portanto, um capítulo da MORAL e refere-se diretamente só ao AGIR, não ao SOFRER. Pois apenas o agir é exteriorização da vontade, e exclusivamente a VONTADE É considerada pela moral. Sofrer é simplesmente uma ocorrência acessória: só indiretamente ele pode ser considerado pela moral, a saber, tendo em vista provar que aquilo que se faz com o fim de evitar o sofrimento de uma injustiça de modo algum é prática de injustiça. — O tratamento pormenorizado desse capítulo da moral teria como conteúdo a determinação exata do limite até onde um indivíduo pode ir na afirmação da vontade, já objetivada em seu corpo, sem que se torne negação justamente dessa vontade como ela aparece num outro indivíduo; assim, também conteria a determinação das ações que ultrapassam o mencionado limite e que, portanto, por serem injustas, podem ser defendidas sem injustiça. Sempre o próprio agir permaneceria o objeto principal da consideração. [MVR1: §62]

A justiça eterna escapa do olhar turvado pelo conhecimento que segue o princípio de razão, o principium individuationis: tal olhar perde completamente de vista aquela justiça, a não ser que a resgate de algum modo por ficções. Vê a pessoa má, após perfídias e crueldades de todo tipo, viver em alegria e deixar o mundo sem ser incomodada. Vê o oprimido arrastar-se numa vida cheia de sofrimento, até o seu fim, sem que apareça um vingador ou retaliador. Mas só conceberá e apreenderá a justiça eterna quem elevar-se por sobre o conhecimento guiado pelo fio condutor do princípio de razão e ligado às coisas individuais, para, assim o fazendo, conhecer as ideias, transpassar o principium individuationis, e perceber que as formas da aparência não concernem à coisa em si. Só uma pessoa assim é que, em virtude deste mesmo conhecimento, pode compreender a essência verdadeira da virtude, como logo nos será desvelada em conexão com a nossa presente consideração; embora, para a prática da mesma, de modo algum seja exigido este conhecimento in abstracto. A quem, portanto, atingiu esta última forma de conhecimento, tornar-se-á claro que a VONTADE É o Em si de toda aparência, e que o tormento infligido a outrem e experimentado por si mesmo, o mau e o padecimento, concernem sempre e exclusivamente a uma única e mesma essência, embora as aparências nas quais um e outro se expõem existam como indivíduos inteiramente diferentes e até mesmo separados por amplos intervalos de tempo e espaço. Verá que a diferença entre quem inflige o sofrimento e quem tem de suportá-lo é apenas fenômeno e não atinge a coisa em si, isto é, a vontade, que vive em ambos, e que aqui, enganada pelo conhecimento ligado ao seu serviço, desconhece a si, procurando em UMA de suas aparências o bem-estar, porém em OUTRA produzindo grande sofrimento, e, dessa forma, com ímpeto veemente crava os dentes na própria carne sem saber que fere sempre só a si mesma, manifestando desse modo pelo médium da individuação o conflito dela consigo mesma, carregado em seu próprio interior. O atormentador e o atormentado são um. O primeiro erra ao acreditar que não participa do tormento, o segundo ao acreditar que não participa da culpa. Se os olhos dos dois fossem abertos, quem inflige o sofrimento reconheceria que vive em tudo aquilo que no vasto mundo padece tormento e, se dotado de faculdade de razão, ponderaria em vão por que foi chamado à existência para um tão grande sofrimento, cuja culpa não entende; o atormentado notaria que todo mau que é praticado no mundo, ou que já o foi, também procede daquela vontade constituinte de SUA própria essência, que aparece NELE, reconhecendo mediante esta aparência e a sua afirmação que ELE mesmo assumiu todo sofrimento procedente da vontade, e isso com justiça, suportando-os enquanto ele é essa vontade. — Desse conhecimento fala o vate Calderon em A vida é sonho: Pues el delito mayor / Del hombre es haber nacido. Como não seria um delito, se, conforme uma lei eterna, a morte vem depois? Calderón apenas exprimiu em tais versos o dogma cristão do pecado original. [MVR1: §63]

Embora outros estabeleçam princípios morais e os ofereçam como preceitos de virtude e leis a serem necessariamente observadas, eu, diferentemente, como já disse, sou incapaz de fazê-lo, pois não posso fazer pairar em frente à vontade nenhum “dever” ou lei; assim, ligada à minha consideração, e que de certa maneira lhe corresponde e é análoga a sua tarefa, é aquela verdade puramente teórica de que a VONTADE É o Em si de cada aparência, porém ela mesma, enquanto tal, é livre das formas dela, portanto também da pluralidade: verdade que eu, em referência à conduta, não poderia melhor expressar senão pela fórmula dos Vedas   antes mencionada: tat tvam asi!. Quem é capaz de enunciar tal fórmula para si mesmo com claro conhecimento e firme convicção íntima, referindo-a a cada ser que encontra, decerto assegura a posse de toda virtude e bem-aventurança e encontra-se no caminho reto da redenção. [MVR1: §66]

Deve-se recordar do terceiro livro que a alegria estética no belo consiste em grande parte no fato de que nós, ao entrarmos no estado de pura contemplação, somos por instantes libertos de todo querer, isto é, de todos os desejos e preocupações: por assim dizer livramo-nos de nós mesmos, não somos mais o indivíduo que conhece em função do próprio querer incansável, correlato da coisa isolada, para o qual os objetos se tornam motivos, mas somos o sujeito eterno do conhecer, correlato da ideia, purificado de vontade: sabemos que tais momentos em que somos libertos do ímpeto furioso da vontade, e, por assim dizer, nos elevamos acima da densa atmosfera terrestre, são os mais ditosos que conhecemos. Daí podermos supor quão bem-aventurada deve ser a vida de uma pessoa cuja VONTADE É neutralizada não apenas por instantes, como na fruição do belo, mas para sempre, sim, inteiramente extinguida, exceto naquela última chama que conserva o corpo e com este será apagada. Tal pessoa que, após muitas lutas amargas contra a própria natureza, finalmente a ultrapassou por inteiro, subsiste somente como puro ser cognoscente, espelho límpido do mundo. Nada mais a pode angustiar ou excitar, pois ela cortou todos os milhares de laços volitivos que a amarravam ao mundo e que nos jogam daqui para acolá, em constante dor, nas mãos da cobiça, do medo, da inveja, da cólera. Ela, então, mira calma e sorridentemente a fantasmagoria deste mundo que antes era capaz de excitar e atormentar o seu ânimo, mas agora paira tão indiferente diante de si como as figuras de xadrez após o fim do jogo, ou as máscaras caídas ao chão na manhã seguinte à noite de carnaval, cujas figuras antes tanto nos haviam intrigado e agitado. A vida com suas figuras flutua diante dela semelhante a uma aparência fugidia, semelhante ao sonho matinal e ligeiro de um semidesperto que já entrevê a realidade e não pode mais ser enganado: igual ao que ocorre neste sonho matinal, a vida com suas figuras desaparece sem transição violenta. A partir destas considerações podemos compreender o sentido das repetições frequentes de Madame GUYON no fim de sua autobiografia: “Tudo me é indiferente: nada mais POSSO querer: constantemente ignoro se existo ou não”. — Seja-me aqui permitido, a fim de exprimir como após a mortificação da vontade a morte do corpo não é tida como amarga, mas é muito bem-vinda, citar as próprias palavras daquela santa penitente, embora não sejam elegantemente empregadas: “Midi de la gloire; jour ou il n y a plus de nuit; vie qui ne craint plus la mort, dans la mort même: parce que la mort a vaincu la mort, et que celui qui a souffert la premiére mort ne goutera plus la seconde mort. [MVR1: §68]

Um caráter deveras nobre é sempre pensado por nós como se tivesse certo traço de tristeza silenciosa, que de modo algum se deve ao constante desgosto ligado às contrariedades cotidianas; em verdade, trata-se aqui de uma consciência nascida da nulidade de todos os bens e do sofrimento de toda vida, e não apenas do sofrimento pessoal. Sem dúvida, tal conhecimento pode ser primeiro desperto pelo sofrimento vivenciado na própria pessoa, em especial um único grande sofrimento; assim, um único desejo insatisfeito levou Petrarca àquela tristeza resignada em face da vida, algo que nos atrai tão comovedoramente às suas obras; pois a Daphne que perseguia escapou-lhe das mãos, restando-lhe, em vez dela, a láurea imortal da glória. Se, por meio de uma tão grande e irrevogável recusa do destino, a VONTADE É em certo grau quebrada, então de resto quase nada mais é desejado e o caráter se mostra brando, triste, nobre, resignado. Quando finalmente a aflição não tem mais objeto determinado, mas espalha-se por toda a vida, ocorre aí em certa medida um mergulho em si mesmo, um retraimento, um desaparecimento gradual da vontade, cuja visibilidade, o corpo, é surda e profundamente minada, com o que a pessoa sente uma espécie de desatamento de seus vínculos, tem um leve pressentimento da morte que se proclama enquanto dissolução do corpo e da vontade; por isso tal aflição é acompanhada de uma alegria secreta, e é isto, creio, o que a mais melancólica de todas as nações chamou the joy of grief. Aqui, todavia, reside também o perigo do SENTIMENTALISMO, tanto na vida real quanto em sua exposição poética, a saber, quando alguém sempre se entristece e se lastima sem recobrar o ânimo e elevar-se à resignação, com o que perde céu e terra ao mesmo tempo, restando-lhe apenas uma sentimentalidade lacrimosa. Só quando o sofrimento assume a forma do simples e puro conhecer, e este, como QUIETIVO DA VONTADE, produz a resignação, é que se acha o caminho da redenção, sendo, pois, o sofrimento digno de reverência. Dessa perspectiva, ao vermos qualquer pessoa desafortunada, sentimos certo respeito parecido com aquele sentido em face de pessoas dotadas de virtude e nobreza, e simultaneamente o nosso estado mais feliz se apresenta como uma repreenda. Não podemos deixar de ver, de um lado, cada sofrimento, tanto pessoal quanto alheio, como uma possível aproximação da virtude e da santidade, e por outro lado os gozos e as satisfações mundanas, como um distanciamento delas. Isso vai tão longe que todo ser humano que suporta um grande sofrimento corporal ou mental, sim, até mesmo quem esgota com suor na testa todas as suas forças num trabalho corporal, porém o exerce com paciência e sem queixumes, aparece-nos, quando o consideramos com a atenção mais concentrada, algo assim como um doente submetido a uma cura dolorosa e que suporta voluntariamente e até com satisfação as dores que lhe são causadas, pois sabe que, quanto mais sofre, tanto mais a substância maligna é destruída e, dessa forma, a dor presente é a medida de sua cura. [MVR1: §68]

O universalmente tomado como positivo, o qual denominamos SER, e cuja negação é expressa pelo conceito de NADA na sua significação mais geral, é exatamente o mundo como representação que demonstrei como a objetidade, o espelho da vontade. Esta vontade e este mundo são justamente nós mesmos, e a ele pertence à representação em geral como um de seus lados: a forma desta representação é espaço e tempo, de modo que, deste ponto de vista, tudo o que existe tem de estar em algum lugar e num dado tempo. Negação, supressão, viragem da VONTADE É também supressão e desaparecimento do mundo, seu espelho. Se não miramos mais a vontade neste espelho, então perguntamos debalde para que direção ela se virou, e em seguida, já que não há mais onde e quando, lamentamos que ela se perdeu no nada. [MVR1: §71]

Esse conhecimento imediato da própria VONTADE É também aquele do qual surge na consciência humana o conceito de LIBERDADE, pois certamente a vontade, como criadora do mundo, coisa em si, é livre do princípio de razão e, dessa forma, de toda necessidade, logo, perfeitamente independente, livre, sim, onipotente. Isto, em verdade, vale apenas para a vontade em si, não para as suas aparências, os indivíduos, que, mediante ela mesma, são inalteravelmente determinados como suas aparências no tempo. Contudo, na consciência comum não clareada pela filosofia, a VONTADE É de imediato confundida com sua aparência, e aquilo que pertence exclusivamente à VONTADE É atribuído à aparência: daí nasce a ilusão da liberdade incondicionada do indivíduo. Eis por que Espinosa, com razão, diz que também a pedra lançada, caso tivesse consciência, acreditaria voar livremente. Pois o em si da pedra também é, com certeza, a vontade única e livre, mas, como em todas as suas aparências, também aqui, ao aparecer como pedra, já está completamente determinada. Sobre tudo isso já foi dito o suficiente na parte principal deste escrito. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]

Quando se fala de causa e efeito, jamais é permitido recorrer à relação da vontade com sua aparência, como aqui acontece, pois se trata aí de algo completamente diferente da relação causal. Entrementes, é também dito aqui na solução da antinomia, e de acordo com a verdade, que o caráter empírico do ser humano, como toda outra causa na natureza, é invariavelmente determinado e que as ações acontecem necessariamente conforme a magnitude dos influxos externos; por isso, não obstante toda liberdade transcendental, pessoa alguma possui o poder de iniciar por si só uma cadeia de ações — algo que, entretanto, foi afirmado pela tese. Portanto, também a liberdade não possui causalidade alguma, visto que apenas a VONTADE É livre, a qual reside fora da natureza ou aparência, que justamente é apenas sua objetivação, mas não está numa relação de causalidade com ela, relação esta que se encontra em primeiro lugar internamente às aparências, logo, já as pressupõe, não podendo incluí-las nem ligá-las com aquilo que expressamente não é aparência. O mundo mesmo deve ser explanado unicamente a partir da vontade, e não pela causalidade. Mas, NO MUNDO, a causalidade é o único princípio de explicação e tudo acontece exclusivamente segundo leis da natureza. Portanto, o bom argumento encontra-se inteiramente do lado da antítese, que se atém ao ponto em discussão e se serve do princípio de explicação válido para isto e, portanto, não precisa de apologia alguma; a tese, ao contrário, deve ser extraída por uma apologia, que logo passa para algo bem diferente do ponto em discussão e, depois, para ali transporta um princípio explicativo que não podia ser lá aplicado. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]