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Schopenhauer (MVR1): objetivação da vontade

quinta-feira 25 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

Em conformidade com isso, aquilo que aqui já deve ter ocorrido espontaneamente a todos os discípulos de Platão será, no próximo livro, objeto de uma consideração pormenorizada, a saber: os diferentes graus de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE expressos em inumeráveis indivíduos e que existem como seus protótipos inalcançáveis ou formas eternas das coisas, que nunca aparecem no tempo e no espaço, médium do indivíduo, mas existem fixamente, não submetidos a mudança alguma, são e nunca vieram a ser, enquanto as coisas nascem e perecem, sempre vêm a ser e nunca são; os GRAUS DE OBJETIVAÇÃO DA VONTADE, ia dizer, não são outra coisa senão as IDEIAS DE PLATÃO. Menciono aqui de passagem a palavra IDEIA para doravante poder usá-la neste sentido; ela deve em minha obra ser entendida na sua significação autêntica e originária, estabelecida por Platão, e de modo algum se deve pensar com ela nas produções abstratas da razão escolástica dogmatizante, para cuja descrição Kant   usou tão mal como ilegitimamente a referida palavra, apesar de Platão já ter tomado posse dela e a ter utilizado de maneira apropriada. Entendo, pois, sob IDEIA, cada fixo e determinado GRAU DE OBJETIVAÇÃO DA VONTADE, na medida em que esta é coisa em si e, portanto, é alheia à pluralidade. Graus que se relacionam com as coisas particulares como suas formas eternas ou protótipos. A expressão mais breve e sucinta daquele famoso dogma platônico foi dada por Diógenes Laércio: Plato ideas in natura velut exemplaria dixit subsistere; cetera bis esse similia, ad istarum similitudinem consistentia. Daquele mau uso de Kant não tomo mais conhecimento algum. [MVR1: §25]

26. As forças mais universais da natureza expõem-se como os graus mais baixos de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE, que em parte aparecem sem exceção em toda matéria como gravidade, impenetrabilidade, e em parte distribuem-se na matéria existente em geral, de modo que algumas dominam esta ou aquela matéria específica como rigidez, fluidez, elasticidade, eletricidade, magnetismo, propriedades químicas e qualidades de todo tipo. Tais forças são em si aparecimentos imediatos da vontade tanto quanto os atos humanos, e nelas mesmas sem fundamento tanto quanto o caráter do ser humano; como as ações humanas, apenas as suas aparências particulares estão submetidas ao princípio de razão, mas as forças enquanto tais nunca podem ser chamadas de efeito ou causa, mas são as condições prévias e pressupostas de qualquer causa ou efeito, mediante os quais a sua essência íntima se desdobra e manifesta. Por isso é sem sentido perguntar por uma causa da gravidade, da eletricidade — forças originárias cuja exteriorização de fato se dá por causa e efeito, de tal maneira que cada aparência particular das mesmas tem uma causa, que por sua vez é também aparência particular e determina que aquela força aqui se exteriorize e apareça no tempo e no espaço; de modo algum, porém, a força é efeito de uma causa, ou causa de um efeito. — Eis por que também é falso dizer: “A gravidade é a causa de que a pedra caia”; antes, a causa é aqui a proximidade da terra, na medida em que é isso o que atrai a pedra. Se a terra desaparece, a pedra não cai, embora a gravidade persista. A força enquanto tal se encontra por inteiro fora da cadeia de causas e efeitos, a qual pressupõe o tempo, uma vez que só possui sentido em relação a este. A força mesma, entretanto, encontra-se fora do tempo. A mudança isolada também sempre tem por causa uma mudança isolada, não a força da qual esta é a exteriorização, pois justamente Aquilo que sempre confere a uma causa a sua eficácia tantas vezes quanto ela aparece é uma força natural, que enquanto tal é sem fundamento, ou seja, encontra-se no todo fora da cadeia de causas e em geral fora do princípio de razão, e, filosoficamente, é conhecida como objetidade imediata da vontade, que é o Em si de toda a natureza. Na etiologia, porém, aqui física  , a força natural é considerada como originária, isto é, qualitas occulta. [MVR1: §26]

Nos mais altos graus de objetidade da vontade, especialmente no ser humano, vemos aparecer significativamente a individualidade em grande diversidade de caracteres individuais, noutros termos, como personalidade completa, expressa já para o exterior em fisiognomias individuais fortemente delineadas que incluem toda a corporização. Nenhum animal possui uma individualidade assim e em tal grau; decerto animais de grau mais elevado têm indícios dela, os quais, todavia, são absolutamente dominados pelo caráter da espécie, razão por que possuem traços mínimos de fisiognomia individual. Quanto mais se desce no reino dos animais tanto mais qualquer vestígio de caráter individual se perde no caráter geral da espécie, ao fim permanecendo somente a fisiognomia desta. Conhece-se o caráter psicológico da espécie e por aí se sabe exatamente o que se deve esperar do indivíduo; na espécie humana, ao contrário, cada indivíduo tem de ser estudado e fundamentado por si mesmo, o que é de grande dificuldade, caso se queira previamente determinar com alguma segurança as suas atitudes, pois com a faculdade de razão entra em cena a possibilidade da dissimulação. Aparentemente essa diferença da espécie humana em relação às demais se vincula aos sulcos e às circunvoluções do cérebro, que nos pássaros faltam por completo e nos roedores ainda são pouco marcantes; e mesmo nos animais de grau mais elevado são muito mais simétricos dos dois lados e mais constantes em cada indivíduo do que no ser humano. Ademais, é para se ver como fenômeno daquele caráter individual peculiar ao ser humano e que o diferencia dos animais o fato de que, entre estes, o impulso sexual procura sua satisfação sem escolha específica, enquanto entre os seres humanos esta escolha, em verdade de acordo com o instinto e independente de qualquer reflexão, alcança tal intensidade que atinge a paixão desenfreada. Portanto, enquanto cada ser humano deve ser visto como uma aparência particularmente determinada e característica da vontade, em certa medida até mesmo como uma ideia própria, nos animais, ao contrário, o caráter individual falta por completo, posto que apenas a espécie possui significação própria. Quanto mais o animal encontra-se afastado do ser humano tanto menor é nele o vestígio de caráter; as plantas, ao fim, não possuem propriedades individuais, excetuando-se as que podem ser explicadas completamente a partir das influências favoráveis do solo, clima e outras circunstâncias; por último, no reino inorgânico da natureza desaparece por completo qualquer individualidade. Apenas o cristal, em certa medida, pode ser visto como indivíduo: trata-se de uma unidade de esforço em determinadas direções interrompido pela solidificação, deixando todavia permanente os vestígios do esforço: o cristal é, ao mesmo tempo, um agregado a partir de sua figura germinal, ligado por uma ideia de unidade, exatamente como a árvore é um agregado nascido de uma fibra isolada que se desenvolve e repete a si mesma, expondo-se em cada nervura da folha, em cada ramo, podendo-se assim, em certa medida, considerar cada uma destas partes como uma planta própria que se alimenta parasitariamente da maior, de maneira que a árvore, de modo semelhante ao cristal, é um agregado sistemático de pequenas plantas — embora apenas o todo seja a exposição acabada de uma ideia indivisa, noutros termos, deste grau determinado de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE. Os indivíduos da mesma espécie de cristal não podem ter outra diferença senão as produzidas por contingências exteriores: pode-se até, ao bel-prazer, fazer que cada espécie se cristalize em pequenos ou grandes cristais. Mas o indivíduo enquanto tal, isto é, com vestígios de caráter individual, desaparece na natureza inorgânica. Todas as aparências desta são exteriorizações de forças universais da natureza, vale dizer, exteriorizações de graus de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE que de maneira alguma se objetivam pela intermediação da diferença de individualidades que expressam parcialmente o todo da ideia, mas, antes, exprimem a si mesmos unicamente na espécie, expondo a esta por completo e sem desvio em cada aparência particular. Visto que tempo, espaço, pluralidade e ser-condicionado por causas pertencem não à vontade nem à ideia, mas unicamente às aparências particulares desta, então cada força da natureza, por exemplo gravidade, eletricidade, tem de expor-se exatamente do mesmo modo em milhões de aparências, e somente as circunstâncias exteriores podem modificar as aparências. Essa unidade de sua essência em todas as suas aparências, essa constância inalterável de seu aparecimento toda vez que, no fio condutor da causalidade, sejam dadas as condições, chama-se LEI NATURAL. Se esta for uma vez conhecida pela experiência, então o aparecimento da força natural, cujo caráter é expresso e estabelecido na aparência, pode ser calculado e predeterminado com exatidão. Semelhante legalidade das aparências nos graus mais baixos de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE é justamente o que lhes confere aquele aspecto tão diferenciado das aparências da mesma vontade em graus mais elevados, isto é, nos graus mais distintos de sua objetivação — animais e seres humanos em seu agir; sendo que nestes o aparecimento mais forte ou mais fraco do caráter individual e o vir a ser movimentado por motivos, com frequência ocultos para o observador, pois residem no conhecimento, levaram até agora ao desconhecimento da identidade da essência íntima dos seres humanos e animais. [MVR1: §26]

A infalibilidade das leis naturais, caso se parta do conhecimento do particular, em vez da ideia, tem algo de surpreendente, às vezes terrível. Admiramos o fato de que a natureza não esquece uma vez sequer as suas leis. Por exemplo, se é conforme dada lei natural que, uma vez na reunião de certos estofos sob determinadas circunstâncias, haja uma ligação química, um surgimento de gás, uma combustão, segue-se de imediato e sem adiamento, tanto hoje quanto há milhares de anos, a entrada em cena daquela aparência determinada, sempre que as condições se reúnam por nossa intervenção ou por absoluto acaso. Sentimos de modo mais vivaz essa admiração em face de fenômenos raros que ocorrem só em circunstâncias bastante complexas, sob as quais, não obstante, foram por nós previstos: por exemplo, certos metais são empilhados e entram em contato uns com os outros num líquido ácido, as placas de prata, situadas nas extremidades dessa cadeia, produzem repentinamente uma chama verde; ou, em certas condições, o duro diamante transforma-se em ácido carbônico. O que nos surpreende é a ubiquidade das forças naturais, semelhante àquela dos espíritos; observamos algo que não mais nos espantava em fenômenos cotidianos, a saber, como a conexão entre a causa e o efeito é propriamente tão misteriosa como aquela imaginada entre uma palavra mágica e o espírito que por ela aparece necessariamente invocado. Por outro lado, se tivermos penetrado no conhecimento filosófico de que uma força natural é um grau determinado de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE, ou seja, Daquilo que reconhecemos como nossa essência mais íntima; que essa vontade em si mesma, diferentemente de suas aparências e das formas destas, encontra-se fora de tempo e espaço, de modo que a pluralidade condicionada por estes não lhe atinge nem aos graus imediatos de sua objetivação, as ideias, mas só dizem respeito às aparências; noutros termos, se tivermos penetrado no conhecimento filosófico de que a lei de causalidade só tem significação em referência ao tempo e ao espaço, na medida em que determina nestes o lugar das múltiplas aparências das diversas ideias nas quais a vontade se manifesta, regulando a ordem na qual as aparências têm de emergir; e se, ainda, por esse conhecimento revela-se o sentido íntimo da grande doutrina de Kant de que o espaço, o tempo e a causalidade não convêm à coisa em si, mas apenas à aparência, sendo meras formas do nosso conhecimento, não qualidades da coisa em si; então perceberemos que aquela admiração em face da legalidade e da precisão do atuar de uma força natural, em face da igualdade perfeita de todos os seus milhões de aparências, em face da infalibilidade do aparecimento destes, é em realidade comparável à admiração de uma criança ou de um selvagem que considera pela primeira vez uma flor através de um espelho multifacetado e admira a igualdade perfeita das flores incontáveis que vê, contando separadamente as folhas de cada uma dessas flores. [MVR1: §26]

Portanto, cada força originária e universal da natureza nada mais é, em sua essência íntima, do que a OBJETIVAÇÃO DA VONTADE num grau baixo: a cada um destes graus nomeamos IDEIA eterna, em sentido platônico. Por sua vez, a LEI NATURAL é a referência de uma ideia à forma de sua aparência. Tal forma é tempo, espaço e causalidade, os quais têm conexão necessária e inseparável e relação recíproca. Por meio de tempo e espaço a ideia se multiplica em inúmeras aparências: no entanto, a ordem de surgimento das aparências nestas formas da multiplicidade é fixamente determinada pela lei de causalidade que, por assim dizer, é a norma dos pontos-limite de aparecimento das diversas ideias, em conformidade com a qual espaço, tempo e matéria são distribuídos. Essa norma, por consequência, remete necessariamente à identidade de toda a matéria existente, substrato comum de todas as diversas aparências, as quais, se não fossem relacionadas à matéria comum, cuja posse têm de repartir, não precisariam dessa lei para determinar suas exigências: todas as aparências poderiam simultânea e conjuntamente preencher o espaço infinito por um tempo infinito. Ora, visto que todas as aparências das ideias eternas remetem a uma única e mesma matéria, tem de existir uma regra do seu aparecer e desaparecer, do contrário nenhuma delas cederia lugar à outra. Em virtude disso, a lei de causalidade está intimamente ligada à lei de permanência da substância: arribas adquirem significação uma da outra: exatamente do mesmo modo se relacionam com elas o espaço e o tempo, pois o tempo é a mera possibilidade de determinações opostas na mesma matéria, o espaço é a mera possibilidade de permanência da mesma matéria sob determinações opostas. Eis por que explicamos no livro precedente a matéria como a união de tempo e espaço; união que se mostra como mudança dos acidentes na permanência da substância, e cuja possibilidade universal é justamente a causalidade ou o devir. Dissemos também que a matéria é inteiramente causalidade. Explanamos o entendimento como correlato subjetivo da causalidade e dissemos que a matéria existe só para entendimento, que é a sua condição e o seu sustentáculo, como se fosse seu correlato necessário. Menciono isso aqui de passagem apenas como recordação do que foi desenvolvido no primeiro livro, pois a observação da concordância interna dos dois livros é exigida para sua plena compreensão, já que aquilo que no mundo efetivo está unido de maneira inseparável como seus dois lados, vontade e representação, foi cindido pelos dois livros, a fim de que tais lados, separadamente, pudessem ser conhecidos distintamente. [MVR1: §26]

27. Se ficou evidente, a partir das considerações precedentes sobre as forças da natureza e as suas aparências, até onde podemos ir com a explanação por causas e onde esta cessa, em vez de cairmos no esforço tolo de remeter o conteúdo de todas as aparências à sua mera forma, ao fim nada restando senão a forma; então poderemos doravante também determinar de maneira geral aquilo que é a tarefa de toda etiologia. Esta tem de procurar para todas as aparências da natureza as suas causas, isto é, as circunstâncias do seu seguro aparecimento: em seguida, tem de remeter as multifacetadas aparências nas suas diversas circunstâncias àquilo que atua em todas as aparências e é pressuposto pela causa: as forças originárias da natureza. Também assinalará corretamente quando uma diferença da aparência se deve a uma diferença da força ou à diferença das circunstâncias nas quais a força se exterioriza. Com igual cuidado, a etiologia não pode tomar como aparência de diferentes forças aquilo que é exteriorização de uma única e mesma força, só que em circunstâncias diferentes, e vice-versa, não pode tomar como exteriorizações de uma única força aquilo que pertence originariamente a diferentes forças. Para isso, é requerida de imediato a faculdade de juízo: eis por que tão poucas pessoas são capazes de intelecção na física, embora todas sejam capazes de ampliar a experiência. Preguiça e ignorância inclinam muito cedo a fazer apelo a forças originárias: isso se mostra no exagero, que beira o cômico, presente nas entidades e quididades dos escolásticos. E o que menos desejo aqui é favorecer o seu ressurgimento. Deve-se tampouco, em vez de fazer uma explicação física, apelar seja à OBJETIVAÇÃO DA VONTADE ou ao poder criador de Deus. Pois a física requer causas; a vontade, porém, jamais é causa: sua relação com a aparência de modo algum se dá conforme o princípio de razão; por outro lado, o que em si é vontade existe de outro ponto de vista como representação, ou seja, é aparência, e, enquanto tal, segue as leis que constituem a forma da aparência: com isso cada movimento, embora seja aparecimento da vontade, sempre tem de ter uma causa a partir da qual é explanável em relação a determinado tempo e determinado lugar, ou seja, não em geral, segundo a sua essência íntima, mas como aparência PARTICULAR. Semelhante causa é mecânica na pedra e motivo no movimento do ser humano: mas sempre tem de estar ali. Ao contrário, a essência comum e universal de todas as aparências de uma determinada espécie, Aquilo sem cuja pressuposição a explanação por causas não teria sentido nem significação, é justamente a força da natureza em geral, que tem de permanecer na física como qualitas occulta, precisamente porque aí finda a explanação etiológica e começa a explanação metafísica. Mas a cadeia de causas e efeitos jamais é interrompida por uma força natural à qual se deve fazer apelo; nunca retrocede a esta como a seu primeiro membro; mas o membro seguinte da cadeia, tanto quanto o mais remoto, já pressupõe a força originária, do contrário não se poderia explanar coisa alguma. Uma série de causas e efeitos pode ser aparecimento das mais diferentes espécies de força, cuja sucessiva entrada na visibilidade é conduzi da pela série, como o elucidei antes no exemplo da máquina metálica: entretanto, a diversidade de tais forças originárias, não dedutíveis umas das outras, de modo algum interrompe a unidade daquela cadeia causal e a conexão entre todos os seus membros. A etiologia e a filosofia da natureza   não interferem uma na outra, mas vão juntas, considerando o mesmo objeto sob pontos de vista diferentes. A etiologia nos informa sobre as causas que necessariamente produzem a aparência particular a ser explicada e aponta como fundamento de suas explanações as forças universais ativas em todas as causas e efeitos, especificando rigorosamente essas forças, o seu número, a sua diversidade e, em seguida, todos os efeitos nos quais cada uma delas aparece diferentemente segundo a diversidade das circunstâncias, sempre em conformidade com o seu caráter específico, desdobrado pela força segundo uma regra infalível chamada LEI NATURAL. Quando a física tiver consumado tudo isso em todos os aspectos, terá alcançado a sua perfeição: pois nenhuma força na natureza inorgânica será desconhecida, e não existirá efeito algum que não seja demonstrável como aparecimento de alguma força sob determinadas circunstâncias e conforme uma lei natural. Contudo, uma lei natural permanece simplesmente a regra observada pela natureza tão logo determinadas circunstâncias sejam dadas. Nesse sentido, pode-se certamente definir a lei natural como um fato universalmente expresso, un fait généralisé, com o que uma exposição completa de todas as leis naturais não passaria de um catálogo completo de fatos. — A consideração da natureza inteira é complementada pela MORFOLOGIA, que enumera todas as figuras permanentes da natureza orgânica, comparando-as e ordenando-as: sobre a causa do surgimento dos seres particulares ela pouco tem a dizer, pois em geral se trata da procriação, cuja teoria é tema à parte, e em casos raros é a generatio aequivoca. Mas falando em sentido estrito, a esta última também pertence a forma como aparecem isoladamente todos os graus baixos de objetidade da vontade, portanto as aparências físicas e químicas; à etiologia cabe indicar as condições desse aparecimento. A filosofia, ao contrário, considera em toda parte, portanto também na natureza, apenas o universal: aqui, as forças originárias mesmas são o seu objeto e ela as reconhece como os diferentes graus de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE, a essência íntima, o Em si deste mundo; mundo explicado pela filosofia como mera representação do sujeito, além de vontade. — Assim, se a etiologia, em vez de preparar os caminhos da filosofia e aplicar os ensinamentos desta em provas singulares, antes colocar-se como fim negar todas as forças originárias, exceto talvez UMA, que considera a mais universal, por exemplo a impenetrabilidade, que ela imagina entender a fundo, procurando forçosamente remeter todas as outras forças a ela — com isso faz ruir seu próprio fundamento e pode apenas propagar erro em vez de verdade. O conteúdo da natureza é doravante reprimido pela forma, tudo é atribuído às circunstâncias que fazem efeito, e nada à essência íntima das coisas. Se a etiologia de fato chegasse a bom termo, então, em última instância, como já dito, o enigma do mundo seria resolvido por um cálculo. Tal caminho, entretanto, como já mencionado, é o percorrido por pessoas que pensam que devemos remeter todo efeito fisiológico a forma e mistura, conseguintemente a eletricidade, esta por sua vez a quimismo, e este a mecanismo. Semelhante erro, por exemplo, foi o de Descartes   e de todos os atomistas que remeteram o movimento dos ccirpos do mundo ao impacto de um fluido, as qualidades à conexão e figura de átomos, e assim procuraram explanar todas as aparências da natureza como mero fenômeno da impenetrabilidade e da coesão. Embora se tenha renunciado a essa posição, ainda assim os fisiólogos elétricos, fisiólogos químicos e fisiólogos mecânicos fazem o mesmo em nossos dias e querem obstinadamente explanar a vida e todas as funções do organismo a partir da “forma e mistura” das partes componentes. Que a meta da explanação fisiológica seja a remissão da vida orgânica a forças universais, objeto de consideração da física, eis o que se encontra expresso no Meckels Archiv für Physiologie. — Também Lamarck, em sua Philosophie zoologique, explana a vida como um mero efeito do calor e da eletricidade: Le calorique et la mati  ére électrique suffisent parfaitemente pour composer ensemble cette causa essentielle de la vie. Com isso, calor e eletricidade seriam realmente a coisa em si, e o mundo das plantas e dos animais seria a sua aparência. O absurdo dessa opinião aparece explicitamente nas p. et seq. dessa obra. É do conhecimento de todos que tais visões, diversas vezes explodidas, reaparecem com renovada impertinência na época atual. Na base de todas encontra-se, em última instância, caso se as considere de maneira apurada, a pressuposição de que o organismo é tão somente um agregado aparente de forças físicas, químicas e mecânicas, as quais, casualmente reunidas, geram o organismo como se este fosse um jogo da natureza sem ulterior significação. Assim, o organismo de um animal ou de um ser humano, considerado filosoficamente, não seria a exposição de uma ideia própria, isto é, de uma objetidade imediata da vontade num grau específico mais elevado, mas nele apareceriam apenas as ideias que objetivam a vontade na eletricidade, no quimismo, no mecanismo: em consequência, o organismo seria tão fortuitamente formado a partir da reunião dessas forças como o são as figuras dos seres humanos e animais nas nuvens, ou as estalactites; para além disso o organismo não seria mais interessante. — Todavia, veremos logo a seguir como a aplicação dos modelos físico e químico de explanação do organismo é, dentro de certos limites, permissível e útil, pois, como iremos expor, a força vital utiliza e se serve das forças da natureza inorgânica, sem contudo reduzir-se a elas, tampouco quanto o ferreiro reduz-se a bigornas e martelos. Por conseguinte, nem mesmo a mais simples vida das plantas poderá ser explicada pelas forças naturais inorgânicas, como por exemplo a capilaridade e a endosmose, e menos ainda a vida animal. A consideração a seguir nos prepara o caminho para aquela discussão extremamente difícil. [MVR1: §27]

De tudo o que foi dito depreende-se que é um equívoco das ciências da natureza quando elas pretendem reduzir os graus mais elevados de objetidade da vontade aos graus mais baixos; pois o desconhecimento e a rejeição de forças naturais originárias subsistentes por si mesmas é algo tão errôneo quanto a suposição infundada de forças específicas ali onde se trata somente de uma forma especial de aparecimento de forças já conhecidas. Com acerto, portanto, Kant diz que é absurdo esperar um Newton do ramo de relva, isto é, por aquele que reduza o ramo de relva a aparências de forças físicas e químicas, das quais o ramo seria uma concreção casual, por consequência um mero jogo da natureza sem aparecimento de uma ideia própria, noutros termos, a vontade não se manifestaria imediatamente num grau mais elevado e específico, mas apenas como o faz nas aparências da natureza inorgânica, e casualmente naquela forma. Os escolásticos, que jamais procederiam assim nessa matéria, diriam cobertos de razão que isso seria uma negação completa da forma substantialis e uma degradação dela em forma accidentalis. Pois a forma substantialis de Aristóteles designa exatamente Aquilo que aqui nomeio o grau de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE em uma coisa. — Por outro lado, não se pode perder de vista que em todas as ideias, vale dizer em todas as forças da natureza inorgânica e em todas as figuras da natureza orgânica, é UMA ÚNICA E MESMA VONTADE que se manifesta, noutros termos, que entra na forma da representação, na OBJETIDADE. Em consequência, a unidade da vontade também tem de ser reconhecida por intermédio de um parentesco interior entre todas as suas aparências. Tal parentesco manifesta-se nos graus mais elevados de sua objetidade, em que toda aparência é mais distinta, por meio da analogia geral prevalecente de todas as formas, o tipo fundamental, que se reencontra em todas as aparências. Esse tipo tornou-se o princípio condutor do admirável sistema zoológico iniciado pelos franceses neste século XIX e demonstrado mais completamente na anatomia comparada como l unité de plan, l uniformité de l élément anatomique. Encontrar esse tipo fundamental é também a principal tarefa ou, certamente, o esforço mais louvável dos filósofos da natureza da escola schellinguiana, que nesse aspecto possuem muito mérito, embora em muitos casos sua caça por analogias degenere em meras sutilezas filigranosas. Com acerto, entretanto, demonstraram aquele parentesco universal e semelhança de família também nas ideias da natureza inorgânica, por exemplo entre eletricidade e magnetismo; entre atração química e gravidade; e assim por diante. Chamaram especialmente a atenção para o fato de que a POLARIDADE, isto é, o desdobramento de uma força em duas atividades qualitativamente diferentes, opostas e esforçando-se pela reunificação, que na maioria das vezes também se manifesta espacialmente por uma separação em duas direções opostas, é um tipo fundamental de quase todas as aparências da natureza, do ímã e do cristal até o ser humano. Na China, todavia, esse conhecimento é corrente desde os tempos mais remotos no ensinamento da oposição entre YIN e YANG. — Sim, justamente porque todas as coisas do mundo são a objetidade de uma única e mesma vontade, conseguintemente idênticas segundo a sua essência íntima, tem de haver entre elas não apenas aquela analogia inegável- portanto, cada coisa menos perfeita já mostrando o vestígio, a alusão, o dispositivo das coisas mais perfeitas —, como também, visto que todas essas formas pertencem apenas ao mundo como REPRESENTAÇÃO, é até possível assumir que, mesmo nas formas mais universais da representação, na armação propriamente dita dos andaimes do mundo aparente, portanto no espaço e no tempo, pode-se encontrar e demonstrar o tipo fundamental, a indicação, o dispositivo de tudo aquilo que preenche as formas. Parece que foi uma noção obscura disso o que deu origem à cabala   e a toda a filosofia matemática dos pitagóricos, bem como à filosofia chinesa do I Ching  : também na escola de Schelling   encontramos, ao lado dos seus variados esforços para trazer a lume a analogia entre todas as aparências da natureza, muitas tentativas, embora infelizes, de deduzir leis naturais de meras leis do espaço e do tempo. No entanto, não se pode saber quando alguma vez uma cabeça genial levará a bom termo tais esforços nas duas direções. [MVR1: §27]

Espero ter eliminado, mediante a clareza da exposição, a obscuridade própria à matéria desse pensamento: contudo, confesso que as próprias considerações do leitor têm de vir em minha ajuda, para que eu não permaneça incompreendido ou seja mal interpretado. — Em conformidade com a visão exposta, pode-se seguramente demonstrar no organismo vestígios dos modos de efeito químico e físico, mas nunca se pode explanar o organismo a partir destes, visto que ele de maneira alguma é uma aparência casual produzida pelo fazer-efeito unificado de tais forças, mas trata-se de uma ideia mais elevada que submeteu as outras através de ASSIMILAÇÃO POR DOMINAÇÃO; isso porque se trata de uma vontade UNA que se objetiva em todas as ideias e que, aqui, ao esforçar-se pela objetivação mais elevada possível, renuncia aos graus mais baixos de sua aparência, após um conflito entre eles, para assim aparecer num grau mais elevado e tanto mais poderoso. Não há vitória sem luta: ora, na medida em que a ideia ou OBJETIVAÇÃO DA VONTADE mais elevada só pode entrar em cena através da dominação das mais baixas, sofre a resistência destas, as quais, embora submetidas à servidão, sempre se esforçam por ser independentes e exteriorizar completamente a sua essência — igual ao ímã que atrai um ferro e trava uma luta constante contra a gravidade que, enquanto objetivação mais elementar da vontade, tem um direito originário à matéria do ferro; todavia, em tal luta, o ímã se fortalece, visto que a resistência como que o estimula a um maior empenho; é assim com todas as aparências da vontade, inclusive com a aparência exposta como organismo humano, que travam uma luta duradoura contra as diversas forças físicas e químicas que, como ideias mais elementares, têm um direito prévio à matéria. Por isso o braço levantado, após um instante de dominação da gravidade, volta a cair: daí também que o confortável sentimento de saúde que acompanha a vitória da ideia do organismo consciente de si sobre as leis físicas e químicas, que originariamente controlavam os sucos do corpo, seja tão frequentemente interrompido, sim, de fato é sempre acompanhado de certo desconforto, grande ou pequeno, produzido pela resistência daquelas forças, e que afeta continuamente a parte vegetativa da nossa vida com um leve sofrimento. Eis por que a digestão deprime todas as funções animais, pois exige toda a força vital para dominar as forças químicas da natureza pela assimilação. Daí em geral o fardo da vida física, a necessidade do sono e, por fim, a morte; pois, finalmente, por circunstâncias favoráveis, as forças naturais subjugadas reconquistam a matéria que lhes foi arrebatada pelo organismo — agora cansado até mesmo pelas constantes vitórias — e alcançam sem obstáculos a exposição de sua essência. Pode-se dizer, por conseguinte, que cada organismo só expõe a ideia da qual é imagem após o desconto daquela parte de sua força que é empregada na dominação das ideias mais baixas, que lutam constantemente contra ele pela matéria. Jakob Böhme   parece ter pressentido isso, quando diz em algum lugar que todos os corpos humanos e animais, todas as plantas, estão de fato parcialmente mortos. Conforme o organismo consiga maior ou menor dominação daqueles graus mais básicos das forças da natureza que expressam a objetidade da vontade, ele tornar-se a expressão mais ou menos perfeita de sua própria ideia, isto é, encontra-se mais ou menos distante do IDEAL que representa a beleza da sua própria espécie. [MVR1: §27]

De grau em grau, objetivando-se cada vez mais nitidamente, a vontade atua no reino vegetal, em que o elo de suas aparências não são propriamente causas, mas estímulos; vontade que aqui ainda é completamente privada de conhecimento, é força obscura que impele, mesmo na parte vegetativa da aparência animal, na geração e formação de cada animal e na manutenção da economia interna dele, em que a sua aparência é ainda necessariamente determinada por meros estímulos. Os graus cada vez mais elevados de objetidade da vontade levam finalmente ao ponto no qual o indivíduo, expressando a ideia, não mais pode conseguir seu alimento para assimilação pelo mero movimento provocado por estímulo; isto porque o estímulo tem de ser esperado, porém, aqui o alimento é de tipo mais especialmente determinado e, devido à crescente variedade das aparências, a profusão e o tumulto tornaram-se tão grandes que as aparências perturbam-se mutuamente; de modo que o acaso, do qual o indivíduo movido por simples estímulo teria de esperar o alimento, seria demasiado desfavorável. O alimento, por conseguinte, tem de ser procurado e escolhido desde o momento em que o animal sai do ovo ou ventre da mãe, nos quais vegetava sem conhecimento. Daí ser aqui necessário o movimento por motivo e, por isso, o conhecimento, que portanto aparece como um instrumento, exigido nesse grau de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE para a conservação do indivíduo e propagação da espécie. O conhecimento aparece representado pelo cérebro ou por um grande gânglio; precisamente como qualquer outro esforço ou determinação da vontade que se objetiva é representado por um órgão, quer dizer, expõe-se para a representação como um órgão. — Com esse instrumento, surge de um só golpe o MUNDO COMO REPRESENTAÇÃO com todas as suas formas: objeto e sujeito, tempo e espaço, pluralidade e causalidade. O mundo mostra agora o seu segundo lado. Até então pura e simples VONTADE, doravante é simultaneamente REPRESENTAÇÃO, objeto do sujeito que conhece. A vontade, que até então seguia na obscuridade o seu impulso com extrema certeza e infalibilidade, inflamou neste grau de sua objetivação uma luz para si, meio este que se tornou necessário para a supressão da crescente desvantagem que resultaria da profusão e da índole complicada de suas aparências, o que afetaria as mais complexas delas. A infalível certeza e regularidade com que a vontade atuava até então na natureza inorgânica e na meramente vegetativa assentava-se no fato de que ali ela era ativa exclusivamente em sua essência originária, como ímpeto cego; vontade sem o auxílio, no entanto sem a perturbação de um segundo mundo inteiramente outro, o mundo como representação. Só que o mundo como representação, em verdade, é apenas a imagem copiada da sua essência, entretanto de natureza por completo diferente e que agora intervém na conexão das aparências da vontade. Doravante cessa a infalível certeza da vontade. Os animais mesmos já estão sujeitos à ilusão, ao engano. Contudo, têm apenas representações intuitivas, não têm conceitos nem reflexão, estão portanto presos ao presente e não podem levar em conta o futuro. — É como se esse conhecimento desprovido de razão não fosse em todos os casos suficiente para os fins da vontade, com o que ela casualmente precisou de um auxílio. Com isso podemos observar o fenômeno bastante notável de que a atuação cega da vontade e a ação iluminada pelo conhecimento invadem uma o domínio da outra da maneira mais surpreendente em dois tipos de fenômeno. Num primeiro caso, dentre aquelas ações dos animais guiadas por conhecimento intuitivo e motivos, encontramos um grupo de ações que não são guiadas dessa forma, e são consumadas com a mesma necessidade da vontade que atua cegamente: refiro-me ao impulso industrioso dos animais, que não são conduzidos por motivo ou conhecimento algum, e aparentam executar as suas obras por meio de motivos abstratos, racionais. Outro caso, oposto a este, é aquele em que a luz do conhecimento penetra na oficina da vontade que atua cegamente e assim ilumina as funções vegetativas do organismo humano: refiro-me à clarividência magnética. — Por fim, lá onde a vontade atingiu o grau mais elevado de sua objetivação e não lhe é mais suficiente o conhecimento do entendimento, um ser complicado, multifacetado, plástico, altamente necessitado e indefeso como é o ser humano teve de ser iluminado por um duplo conhecimento para poder sobreviver; com isso, coube-lhe, por assim dizer, uma potência mais elevada do conhecimento intuitivo, um reflexo deste: a razão como a faculdade de conceitos abstratos. Com esta surge a clareza de consciência, contendo panoramas do futuro e do passado, e, em consequência dela, a ponderação, o cuidado, a habilidade para a ação calculada e independente do presente, por fim a consciência totalmente clara das próprias decisões voluntárias enquanto tais. Se, de um lado, a possibilidade da ilusão e do engano já surge com o conhecimento meramente intuitivo e assim é suprimida a infalibilidade na atuação desprovida de conhecimento da vontade, com o que o instinto e o impulso industrioso têm de vir em seu auxílio em meio às exteriorizações que são guiadas pelo conhecimento; por outro lado, com o aparecimento da razão é quase que inteiramente perdida aquela segurança e infalibilidade das exteriorizações da vontade: o instinto entra por completo no segundo plano; a ponderação, que agora deve a tudo substituir, produz vacilações e incertezas: o erro torna-se possível, obstando em muitos casos a adequada OBJETIVAÇÃO DA VONTADE em atos. Pois, embora a vontade já tenha tomado no caráter a sua direção determinada e inalterável, em conformidade com o qual aparece de maneira infalível caso seja dada a ocasião dos motivos, ainda assim o erro pode falsear as suas exteriorizações, na medida em que motivos ilusórios, agindo como se fossem reais, ocupam o lugar dos motivos reais e os suprimem. Por exemplo, a superstição que compele o homem por motivos imaginários a modos de ação que são exatamente o oposto de como sua vontade se exteriorizaria nas circunstâncias existentes: Agamenon sacrifica sua filha; um avaro dá esmolas por puro egoísmo na esperança de um retorno cem vezes maior, e assim por diante. [MVR1: §27]

O caráter de cada ser humano isolado, porque é completamente individual e não está totalmente contido na espécie, pode ser visto como uma ideia particular, correspondendo a um ato próprio de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE. Esse ato mesmo seria seu caráter inteligível, enquanto seu caráter empírico seria a aparência dele. O caráter empírico é absolutamente determinado pelo caráter inteligível, o qual é sem fundamento, isto é, não está enquanto coisa em si submetido ao princípio de razão. O caráter empírico tem de fornecer num decurso de vida a imagem-cópia do caráter inteligível e não pode tomar outra direção a não ser aquela que permite a essência deste último. Mas semelhante determinação estende-se apenas ao essencial, não ao inessencial do decurso de vida que assim aparece. Ao inessencial pertence a determinação detalhada dos eventos e ações, que são o estofo no qual o caráter empírico se mostra. Tais eventos e ações são determinados por circunstâncias externas que fornecem os motivos aos quais o caráter reage em conformidade com a sua natureza; e, como os motivos podem ser bem diversos, a figura externa na qual aparece o caráter empírico, portanto a precisa figura fática ou histórica do decurso de vida, tem de guiar-se segundo o influxo desses motivos. Decurso que pode aparecer de modo bem diferente, embora o essencial dele, seu conteúdo, permaneça o mesmo. Assim, por exemplo, é inessencial se se joga por nozes ou moedas; porém, se num jogo alguém é honesto ou trapaceiro, eis aí o essencial: no primeiro caso a determinação se dá pelo influxo externo, no segundo pelo caráter inteligível. Ora, assim como um mesmo tema pode ser exposto em centenas de variações, assim também o mesmo caráter pode expor-se numa centena de decursos de vida bem diferentes. Contudo, por mais variado que seja o influxo externo, o caráter empírico, exprimindo a si no decurso de uma vida, e não importando como se conduza, tem de expor exatamente o caráter inteligível, na medida em que este se adapta faticamente em sua objetivação ao estofo previamente dado das circunstâncias. — De fato, o decurso de vida de alguém é essencialmente determinado pelo seu caráter, mas também influenciado pelas circunstâncias exteriores; e, temos agora de reconhecer, algo análogo se dá quando a vontade, nos atos originários de sua objetivação, determina as diversas ideias nas quais se objetiva, ou seja, as diversas figuras de seres naturais de cada espécie nas quais distribui a sua objetivação e que, necessariamente, têm de ter uma relação entre si na aparência. Temos de admitir que entre todas essas aparências da vontade UNA estabeleceu-se universalmente uma adaptação e acomodação recíprocas; aqui, porém, como logo veremos de modo mais claro, deve-se excluir toda determinação temporal, pois a ideia encontra-se exterior ao tempo. Em conformidade com tudo isso, cada aparência teve de adaptar-se ao ambiente no qual emergiu, e este, por seu turno, teve de adaptar-se àquela, embora cada aparência ocupe muito mais tardiamente uma posição no tempo; assim, em toda parte vemos um consensus naturae. Cada planta adapta-se ao seu solo e atmosfera, cada animal adapta-se ao seu elemento e presa que há de se tornar seu alimento e que também é de alguma maneira protegido contra seu predador natural; o olho adapta-se à luz e à refrangibilidade, os pulmões e o sangue ao ar, a bexiga natatória à água, os olhos da foca à mudança de seu médium, as células do estômago do camelo, que contêm água, à seca do deserto africano, a vela do náutilo ao vento que o faz navegar, e assim por diante, até as formas mais especiais e admiráveis de finalidade externa. Entretanto, devem-se abstrair desse contexto todas as relações temporais, pois elas dizem respeito só ao aparecimento da ideia, não a ela mesma. Nesse sentido, a explanação dada também tem de ser usada retrospectivamente e devemos não apenas assumir que cada espécie se adapta às circunstâncias encontradas previamente, mas também que estas, precedendo as espécies no tempo, levam igualmente em conta os seres que ainda estão por vir. Pois se trata de uma única e mesma vontade que se objetiva no mundo: esta não conhece tempo algum, visto que a figura temporal do princípio de razão não pertence a ela, nem à sua objetidade originária, as ideias, mas só à maneira como estas são conhecidas pelos indivíduos — eles mesmos transitórios —, isto é, pertence só às aparências das ideias. Por conseguinte, tendo em mente nossa presente consideração sobre o modo como a OBJETIVAÇÃO DA VONTADE se distribui em ideias, o curso do tempo é totalmente sem significação e as ideias cujas APARÊNCIAS emergiram mais cedo no tempo segundo a lei de causalidade, à qual estão submetidas como aparências, não possuem nenhum direito prévio em face daquelas ideias cujas aparências emergiram mais tarde e que são, a bem dizer, justamente as objetivações mais perfeitas da vontade, e que têm de se adaptar às objetivações anteriores tanto quanto estas a elas. Portanto, a translação dos planetas, a obliquidade da elíptica, a rotação da Terra, a separação entre continentes e oceanos, a atmosfera, a luz, o calor e todas as aparências semelhantes que na natureza são aquilo que o baixo fundamental é na harmonia acomodam-se plenos de pressentimento à geração futura de seres vivos, dos quais serão o sustentáculo mantenedor. Do mesmo modo, o solo adapta-se à alimentação das plantas, estas à alimentação dos animais, estes à alimentação dos predadores, e todos estes àquele primeiro. Todas as partes da natureza se encaixam, pois é UMA vontade que aparece em todas elas, mas o curso do tempo, por outro lado, é totalmente estranho à sua única OBJETIDADE ADEQUADA e originária, as ideias. Mesmo agora, quando as espécies têm apenas de conservar a si mesmas, em vez de nascer, vemos aqui e ali semelhante cuidado da natureza ser estendido ao futuro e como que abstraído do curso do tempo, isto é, um autoacomodar-se do que já existe àquilo que ainda há de vir. Assim, o pássaro constrói o ninho para as suas crias que ele ainda não conhece; o castor ergue uma casa cujo fim lhe é desconhecido; a formiga, o hamster e a abelha reúnem provisão para o inverno desconhecido; a aranha e a formiga-leão preparam, como que por ponderada astúcia, armadilhas para a futura presa incógnita; os insetos põem seus ovos lá onde a futura larva encontrará futuro alimento. Quando chega a época de floração da Valisneria e a flor fêmea desabrocha as espirais de seu talo, que até então a mantinham submergida n água, e com a sua ajuda chega à superfície, exatamente nesse instante a flor macho, que crescia num curto talo no fundo da água, desprende-se e, com sacrifício da própria vida, alcança a superfície, na qual flutua em redor da flor fêmea para encontrá-la: esta, após a polinização, submerge novamente no fundo da água, por contração de suas espirais, onde os frutos se desenvolverão. Aqui também tenho de repetir o dito sobre a larva do escaravelho macho que, na madeira onde sofrerá sua metamorfose, abre um buraco duas vezes maior do que o faz a fêmea, para assim haver espaço para suas futuras antenas. De maneira geral o instinto dos animais nos fornece o melhor esclarecimento para a restante teleologia da natureza. Pois, se o instinto é como se fosse um agir conforme um conceito de fim, no entanto completamente destituído dele, assim também todas as formações na natureza assemelham-se a algo feito conforme um conceito de fim, e no entanto completamente destituídos dele. Em realidade, tanto na teleologia externa quanto na interna da natureza, aquilo que temos de pensar como meio e fim é, em toda parte, apenas o APARECIMENTO DA UNIDADE DE UMA VONTADE EM CONCORDÂNCIA CONSIGO MESMA, que surgiu no espaço e no tempo para o nosso modo de conhecimento. [MVR1: §28]

31. Antes, porém, é preciso fazer a seguinte observação essencial. Espero ter produzido no livro anterior a convicção de que aquilo que na filosofia kantiana é denominado COISA EM SI, que é apresentada numa doutrina tão significativa apesar de obscura e paradoxal, devido sobretudo à maneira como Kant a introduz, a saber, pela conclusão que parte do fundamentado e vai ao fundamento, tornando-se assim um ponto vulnerável, o lado fraco de sua filosofia; que essa coisa em si, ia dizer, caso se tome um caminho completamente diferente do que foi trilhado até agora, nada é senão a VONTADE. Espero ainda que, após o que foi dito, não reste dúvida alguma de que os graus determinados de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE, que constitui o Em si do mundo, são precisamente aquilo denominado por Platão IDEIAS ETERNAS ou formas imutáveis, reconhecidamente o principal dogma da sua doutrina, embora ao mesmo tempo o mais obscuro e paradoxal, objeto séculos afora de reflexão, de contenda, de escárnio e de veneração de muitas cabeças diferentes e bem informadas. [MVR1: §31]

A partir do livro precedente pode-se lembrar que o conhecimento, nele mesmo, pertence à OBJETIVAÇÃO DA VONTADE em seus graus mais elevados, e que a sensibilidade, os nervos e o cérebro são, tanto quanto as outras partes do organismo, expressões da vontade nesse grau de sua objetidade; por conseguinte, as representações que por eles surgem também estão destinadas ao serviço da vontade como um meio para obtenção dos seus agora complexos fins e conservação de um ser com múltiplas necessidades. Portanto, originariamente e conforme sua natureza, o conhecimento está por inteiro a serviço da vontade, e assim como o objeto imediato — que pelo uso da lei da causalidade é o ponto de partida de todo conhecimento — é apenas vontade objetivada, assim também qualquer conhecimento que segue o princípio de razão permanece numa relação mais próxima ou mais distante com a vontade. Pois o indivíduo encontra seu corpo como objeto entre objetos, com os quais mantém as mesmas e variadas relações e referências conforme o princípio de razão, cuja consideração, portanto, sempre conduz de volta, por um caminho mais curto ou mais longo, ao seu corpo, por consequência à sua vontade. Visto que é o princípio de razão que põe os objetos nessa relação com o corpo, portanto com a vontade, então o conhecimento que serve à vontade sempre estará empenhado em conhecer as relações dos objetos postas justamente pelo referido princípio, logo, seguindo suas variadas situações no espaço, no tempo e na causalidade. Pois somente mediante essas relações o objeto é INTERESSANTE para o indivíduo, isto é, possui uma relação com a sua vontade. Por isso o conhecimento dos objetos que serve à vontade nada conhece propriamente dizendo apenas relações de objetos: conhece os objetos apenas na medida em que eles existem neste tempo, neste lugar, sob estas circunstâncias, a partir destas causas, sob estes efeitos, numa palavra, como coisas isoladas: caso todas essas relações fossem suprimidas, os objetos desapareceriam para o conhecimento, justamente porque este nada mais reconheceria neles. — Não devemos perder de vista que aquilo que as ciências consideram nas coisas é, do mesmo modo, no essencial, nada mais do que o mencionado, ou seja, relações, indicações de tempo e de espaço, causas de mudanças naturais, comparação de figuras, motivos dos acontecimentos, portanto simples e puras relações. O que diferencia as ciências do conhecimento comum é meramente a forma daquelas, o seu caráter sistemático, a facilitação do conhecimento pela apreensão do particular no universal por via da subordinação a conceitos, e a por aí alcançada completude do conhecer. Toda relação tem ela mesma apenas uma existência relativa: por exemplo, todo ser no tempo é também um não ser: pois o tempo é precisamente aquele mediante o qual podem caber às mesmas coisas determinações contrárias: eis por que cada aparência no tempo também não o é: pois o que separa seu começo do seu fim é simplesmente tempo, algo essencialmente desvanecedor, que não perdura, relativo, aqui denominado duração. O tempo é, contudo, a forma mais universal de todos os objetos do conhecimento a serviço da vontade, é o tipo arquetípico das formas restantes desse conhecimento. O conhecimento, portanto, via de regra, sempre está a serviço da vontade, tendo de fato surgido para seu serviço, sim, ele, por assim dizer, brotou da vontade como a cabeça do tronco. Nos animais, esse servilismo do conhecimento nunca se suprime. Entre os seres humanos, tal supressão entra em cena somente como exceção. Essa diferença entre o humano e o animal é expressa exteriormente pela diferença da relação entre cabeça e tronco. Entre os animais de espécies abaixo da humana, a cabeça e o tronco ainda são completamente indiferenciados: em todos a cabeça está direcionada para a terra, onde se encontram os objetos da vontade: mesmo entre os animais de espécie mais elevada, a cabeça e o tronco ainda estão bem mais unidos do que no ser humano, cujo crânio aparece encaixado livre sobre o corpo, sendo apenas carregado por este, sem o servir. Esse mérito humano é exposto no mais alto grau no Apelo de Belvedere; o crânio do deus das musas, mirando para além no horizonte, encontra-se tão livre sobre os ombros que parece completamente destacado do corpo, sem mais submeter-se aos seus cuidados. [MVR1: §33]

35. Para adquirirmos uma intelecção mais profunda da essência do mundo, é absolutamente necessário que aprendamos a diferenciar a vontade como coisa em si da sua objetidade adequada; em seguida, temos de diferenciar os diversos graus em que a vontade entra em cena distinta e plenamente, ou seja, as ideias mesmas, de suas meras aparências nas figuras do princípio de razão, maneira limitada de conhecimento típica dos indivíduos. Assim, concordaremos com Platão, quando atribui um ser verdadeiro apenas às ideias, enquanto, ao contrário, às coisas no espaço e no tempo — esse mundo real para o indivíduo — concede apenas uma existência aparente e onírica. Veremos como uma única e mesma ideia manifesta-se num grande número de aparências e oferece a sua essência apenas de maneira descontínua, um lado de cada vez, aos indivíduos que conhecem. Também notaremos a diferença entre a ideia mesma e a maneira como a sua aparência se dá à observação do indivíduo, reconhecendo aquela como essencial, esta como inessencial. Queremos doravante considerar esse assunto em exemplos detalhados, depois em exemplos de maior escala. — Quando as nuvens se atraem, as figuras que formam não lhes são essenciais, são-lhes indiferentes: todavia, que as nuvens sejam condensadas como vapor elástico, impulsionadas, estendidas, desfeitas pelo movimento do vento, eis aí a sua natureza, a essência das forças que nela se objetivam, eis aí a sua ideia: quanto às suas figuras casuais, estas existem apenas para o observador individual. — Quando um riacho escorre para baixo sobre as pedras, os redemoinhos, as ondas, as formações espumosas que nele vemos são-lhes indiferentes e inessenciais; mas que obedeça à gravidade e se comporte como fluido inelástico, movente, sem forma, transparente, eis aí a sua essência, eis aí, SE INTUITIVAMENTE conhecida, a sua ideia: apenas enquanto conhecemos como indivíduos é que existem aquelas formações. — O gelo cristaliza-se no vidro da janela conforme as leis de cristalização que manifestam a essência da força natural que ali aparece, expondo a ideia; porém, as árvores e as flores que os cristais formam são inessenciais e existem apenas para nós. — O que aparece nas nuvens, nos riachos e nos cristais de gelo é o eco mais fraco daquela vontade, que entra em cena mais completa na planta, mais completa ainda no animal e perfeitamente completa no ser humano. Mas apenas o que é ESSENCIAL em todos esses graus de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE é o que constitui a IDEIA: o desdobramento desta, ao contrário, na medida em que ela é espraiada nas figuras do princípio de razão, em variadas e múltiplas aparências, é-lhe inessencial e reside somente no modo de conhecimento do indivíduo, tendo também realidade apenas para este. O mesmo vale necessariamente para o desdobramento da ideia que é a objetidade mais completa da vontade: por conseguinte, a história do gênero humano, a profusão dos eventos, a mudança das eras, as formas multifacetadas da vida humana em diferentes países e séculos, tudo isso não passa da forma casual de aparecimento da ideia, não pertence a esta — unicamente na qual reside a objetidade adequada da vontade —, mas só à aparência que se dá ao conhecimento do indivíduo, sendo tão alheio, inessencial e indiferente à ideia mesma quanto as figuras formadas o são em relação às nuvens, ou as figuras de redemoinho e as formações espumosas em relação ao riacho, ou as árvores e flores em relação ao gelo cristalizado. [MVR1: §35]

Visto que, de um lado, toda coisa existente pode ser considerada de maneira puramente objetiva, exterior a qualquer relação, e, de outro, em cada coisa aparece um grau determinado de objetidade da vontade, expressão de uma ideia, segue-se daí que toda coisa é BELA. — O fato de que também o insignificante possa tornar-se objeto de uma consideração puramente objetiva e destituída de vontade e assim se justifique como belo pode ser atestado pelas mencionadas naturezas-mortas dos neerlandeses. Uma coisa é mais bela que outra quando facilita aquela pura consideração objetiva, vem-lhe ao encontro, sim, como que compele a isso; então a nomeamos muito bela. Este é o caso, primeiro, quando algo isolado exprime de modo puro a ideia de sua espécie, mediante proporção bem distinta, puramente determinada, inteiramente significativa de suas partes, reunindo em si todas as exteriorizações possíveis da ideia de sua espécie, manifestando-a com perfeição: justamente por essas características a coisa isolada facilita bastante ao espectador a transição para a Ideia, atingindo-se assim o estado de intuição pura; segundo, aquela vantagem da beleza particular de um objeto reside em que a ideia mesma a exprimir-se é um grau superior de objetidade da vontade e por conseguinte diz muito mais, é mais significativa. Eis por que o ser humano, mais do que qualquer coisa, é belo e a manifestação de sua essência é o fim supremo da arte. A figura e a expressão humanas são os objetos mais significativos das artes plásticas, assim como as suas ações o são da poesia. — Todavia, cada coisa tem a sua beleza própria, não apenas cada ser orgânico que se expõe na unidade de uma individualidade, mas também cada ser inorgânico privado de forma, sim, cada artefato; pois todos manifestam as ideias, pelas quais a vontade se objetiva nos graus mais baixos, dando, por assim dizer, os tons mais profundos e graves   da harmonia da natureza. Gravidade, rigidez, fluidez, luz etc. são as ideias que se exprimem em rochedos, edifícios, correntezas d águas. As belas jardinagem e arquitetura nada podem fazer senão ajudar essas ideias a desdobrarem as suas qualidades distintamente, de maneira multifacetada e plena, oferecendo-lhes a oportunidade para exprimir-se de maneira pura, e justamente por isso elas clamam por consideração estética e a facilitam. Consideração esta que é pouco ou nada permitida por edifícios ruins, ou ambientes que negligenciam a natureza e assim corrompem a arte; todavia, mesmo de tais objetos as ideias fundamentais e gerais da natureza não podem ser totalmente banidas; elas ainda falarão mediante semelhantes objetos ao espectador que as procure. Esses edifícios ruins ainda são passíveis de consideração estética porque as ideias das qualidades gerais da sua matéria permanecem reconhecíveis, apesar de a forma artificiosa ali empregada não ser nenhum meio de facilitação da ideia, mas, antes, um obstáculo que dificulta a consideração estética. Também artefatos servem, em consequência, para a expressão de ideias: porém, não é a Ideia de artefato que se exprime a partir deles, mas a ideia do material ao qual se deu essa forma artística. Na língua dos escolásticos isso é dito bem confortavelmente com duas palavras, a saber, no artefato exprime-se a sua forma substantialis, forma substancial, não a sua forma accidentalis, forma acidental, e esta última não conduz a ideia alguma, mas apenas a um conceito humano da qual se originou. Escusado é dizer que aqui não entendemos por artefato, expressamente, nenhuma obra da arte plástica. De resto, os escolásticos compreendiam sob forma substantialis, em verdade, aquilo que nomeio grau de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE em uma coisa. Retomarei à expressão da ideia de material quando retomar a consideração da bela arquitetura. — Em conformidade com nossa visão, não podemos concordar com Platão quando este afirma que mesa e cadeira expressam as ideias de mesa e cadeira; ao contrário, dizemos que mesa e cadeira expressam as ideias que já se exprimem em seu mero material. Porém, conforme Aristóteles, Platão mesmo estatuíra somente ideias de seres naturais: Plato dixit, quod ideae eorum sunt, quae natura sunt e no capítulo 5 é dito que, conforme os platônicos, não há ideia alguma de casa e anel. Em todo caso, já os discípulos mais próximos de Platão, como relata Alcino  , negavam que houvesse ideia de artefatos. Ele diz: Definiunt autem ideam exemplar aeternum eorum, quae secundum naturam existunt. Nam plurimis ex iis, qui Platonem secuti sunt, minime placuit, arte factorum ideas esse, ut clypei atque Lyrae; neque rursus eorum, quae praeter naturam, ut febris et cholerae; neque particularium, ceu Socratis et Platonis; neque etiam rerum vilium, veluti sordium et festucae; neque relationum, ut majoris et excedentis: esse namque ideas intellectiones dei aeternas, ac seipsis perfectas. — Nesta ocasião é preciso ainda mencionar outro ponto da doutrina platônica das ideias em relação ao qual a nossa doutrina se distancia bastante: quando ele ensina que o objeto cuja exposição a bela arte intenta, o modelo da pintura e da poesia, não seria a ideia, mas a coisa individual. Minha visão inteira da arte e do belo afirma justamente o contrário, e tampouco a opinião de Platão nos fará errar; em verdade, esta opinião é a fonte de um dos maiores e mais reconhecidos erros daquele grande homem, a saber, a depreciação e rejeição da arte, em especial da poesia: seus falsos juízos sobre a arte e a poesia estão diretamente associados à mencionada passagem. [MVR1: §41]

Portanto, na medida em que o reino vegetal é objeto da arte, pertence ele antes de tudo à pintura de paisagem. Ao domínio desta também pertence toda a restante natureza destituída de conhecimento. — Em naturezas-mortas, em arquitetura pintada, ruínas, interiores de igreja e semelhantes, o lado subjetivo da fruição estética é preponderante, ou seja, nossa alegria aí não reside imediatamente tanto na apreensão das ideias expostas, e sim mais no correlato subjetivo dessa apreensão, no conhecer puro livre de vontade; pois, quando o pintor nos deixa ver as coisas através dos seus olhos, alcançamos aí ao mesmo tempo uma simpatia e o sentimento posterior de profunda tranquilidade espiritual e de completo silêncio da vontade, necessários para imergir tão profundamente o conhecimento naqueles objetos inanimados e, assim, apreendê-los com tal afeto, isto é, com tal grau de objetividade. — O efeito da pintura de paisagem propriamente dita é, de fato e no todo, também desse tipo; só que, como as ideias expostas são graus mais elevados de objetidade da vontade e, portanto, mais expressivas e significativas, já entra em cena aqui o lado mais objetivo da satisfação estética e contrabalança o lado subjetivo. O conhecer puro enquanto tal não é mais o principal, mas com igual poder atua sobre nós a ideia conhecida, o mundo como representação num grau mais significativo de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE. [MVR1: §44]

51. Caso apliquemos nossas considerações feitas até agora sobre a arte em geral e sobre as artes plásticas à POESIA, não duvidaremos de que a poesia também tem a finalidade de manifestar as ideias, os graus de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE, comunicando-as ao ouvinte com a distinção e a vivacidade mediante as quais a mente poética as apreende. As ideias são essencialmente intuitivas: se, contudo, na poesia apenas conceitos abstratos são comunicados imediatamente por palavras, é no entanto claro que a intenção é, por meio dos representantes desses conceitos, permitir ao ouvinte intuir as ideias da vida, o que só é possível com a ajuda de sua própria fantasia. Entretanto, para pôr a fantasia em movimento de acordo com o fim correspondente, os conceitos abstratos, que são o material imediato tanto da poesia quanto da prosa mais seca, têm de ser reunidos de tal maneira que suas esferas se intersectam, de modo que nenhuma delas permanece em sua universalidade abstrata, mas, em vez do conceito, um representante intuitivo aparece diante da fantasia, que as palavras do poeta sempre modificam ulteriormente, conforme a intenção de cada momento. Assim como o químico combina dois fluidos perfeitamente claros e transparentes e dessa combinação resulta um precipitado sólido, também o poeta, a partir da universalidade transparente e abstrata dos conceitos, sabe combiná-los e obter, por assim dizer, um precipitado concreto, individual, a representação intuitiva. Pois a ideia só pode ser conhecida intuitivamente; e conhecimento da ideia, por outro lado, é o fim de toda arte. Assim como na química, a maestria na poesia consiste em obter todas as vezes justamente o precipitado que se intencionava. A esse fim servem os muitos epítetos, através dos quais a universalidade de cada conceito é restringida cada vez mais, até a intuição. Homero   coloca quase sempre ao lado de um substantivo um adjetivo, cujo conceito corta a esfera do conceito substantivo, ao mesmo tempo diminuindo-o consideravelmente, com o que é trazido muito mais próximo da intuição. Por exemplo: Occidit vero in Oceanum splendidum lumen solis, Trahens noctem nigram super almam terram. E: Um brando vento sopra do céu azul, / A murta cala-se e o loureiro eleva-se pelos ares. Em poucos conceitos, precipita-se na fantasia todo o deleite do clima sulino. [MVR1: §51]

Nos gêneros da poesia mais objetivos, especialmente no romance, na epopeia e no drama, o alvo — a manifestação da ideia de humanidade — é sobretudo atingido por dois meios: concepção profunda com exposição correta de caracteres significativos e trama de situações relevantes nas quais esses caracteres se desdobram. Pois, assim como ao químico é obrigatório apresentar de maneira pura e genuína não apenas os elementos simples e suas ligações principais, mas também expô-los ao influxo dos reagentes nos quais suas propriedades se tornam distintas e realçadas: de modo semelhante cabe ao poeta nos apresentar de maneira fiel e autêntica, como o faz a natureza mesma, não apenas os caracteres significativos, mas, para que estes se tornem conhecidos, pô-los em situações nas quais suas características se desdobram por inteiro, apresentando-se distintamente em traços marcantes; situações que, por conseguinte, são chamadas de significativas. Na vida real e na história, só raramente o acaso produz situações com tais características, as quais se encontram isoladamente, perdidas e encobertas por uma multidão de fatos insignificantes. A significação plena das situações e a combinação e escolha de caracteres significativos devem diferenciar o romance, a epopeia e o drama da vida real: em qualquer caso, entretanto, a verdade pétrea é condição imprescindível de seu efeito; já a ausência de unidade nos caracteres, a contradição deles consigo mesmos ou no que se refere à essência da humanidade em geral, bem como a impossibilidade ou inverossimilhança nos acontecimentos, mesmo que pequenos, atentam contra a poesia, tanto quanto as figuras deformadas, as perspectivas falsas ou a iluminação equivocada atentam contra a pintura. Pois sempre desejamos nesses casos o límpido espelho da vida, da humanidade, do mundo, clarificado mediante a exposição, tornado significativo pelos arranjos. Sabemos que todas as artes têm somente um objetivo, a exposição das ideias: sua diferença mais essencial reside meramente no grau de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE – a Ideia — que será exposto, com o que também se determina o material da exposição; nesse sentido, mesmo artes muito distantes umas das outras deixam-se, no entanto, elucidar reciprocamente por comparação. Em virtude disso, queremos elucidar a poesia por meio da bela hidráulica. Por exemplo: para apreender integralmente as ideias que se exprimem na água, não basta que vejamos a água num lago calmo ou numa torrente regular, mas aquelas ideias antes se desdobram por inteiro quando a água aparece sob todas as circunstâncias e obstáculos que, fazendo efeito sobre ela, ocasionam a exteriorização completa de todas as suas características. Por isso achamos belo quando a água precipita, escoa, espuma, salta para cima, cai bem do alto e nessa queda é pulverizada, ou ainda quando, artificialmente impelida, sobe em jato: ora, mostrando-se assim diversificada sob diversas circunstâncias, a água sempre afirma fielmente o seu caráter, pois lhe é natural tanto jorrar para cima quanto permanecer calma produzindo reflexos; estará sempre bastante preparada para uma ou outra coisa, desde que apareçam as circunstâncias. O que o artista hidráulico realiza na matéria fluida o arquiteto realiza na matéria sólida, e justamente o mesmo realiza o poeta épico ou dramático na ideia de humanidade. Pois o fim comum de todas as artes é o desdobramento, a elucidação da ideia, da objetivação do grau da vontade que se expressa no objeto de cada arte. A vida humana, como se mostra na maioria das vezes, assemelha-se à água tal qual esta usualmente se apresenta em lagos e rios: mas na epopeia, no romance, no drama, seletos caracteres são colocados em circunstâncias nas quais todas as suas características se desdobram; com isso, as profundezas da mente humana se desvelam, tornam-se visíveis em ações extraordinárias, plenas de sentido. Dessa forma, a arte poética objetiva a ideia de humanidade, cuja característica distintiva é expor-se em caracteres marcadamente individuais. No ápice da arte poética, tanto no que se refere à grandeza do seu efeito quanto à dificuldade da sua realização, deve-se ver a tragédia; e de fato ela assim foi reconhecida. Observe-se aqui algo de suma significação para toda a nossa visão geral de mundo: o objetivo dessa suprema realização poética não é outro senão a exposição do lado terrível da vida, a saber, o sofrimento inominado, a miséria humana, o triunfo da maldade, o império cínico do acaso, a queda inevitável do justo e do inocente: em tudo isso encontra-se uma indicação significativa da índole do mundo e da existência. É o conflito da vontade consigo mesma, que aqui, desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade, entra em cena de maneira aterrorizante. Esse conflito se torna visível no sofrimento da humanidade, em parte produzido pelo acaso e pelo erro, que se apresentam como os senhores do mundo e que, por causa de seus ardis que adquirem a aparência de intencionalidade, são personificados como destino; em parte esse sofrimento advém da humanidade mesma, por meio dos entrecruzados esforços voluntários dos indivíduos e da maldade e perversão da maioria. Em todos, o que vive e aparece é uma única e mesma vontade, cujas aparências, entretanto, combatem entre si e se entredevoram. A vontade aparece num dado indivíduo mais violentamente, em outro mais fracamente; aqui e ali ela aparece com mais, ou menos, consciência, sendo mais, ou menos, abrandada pela luz do conhecimento; por fim, esse conhecimento, no indivíduo purificado e enobrecido pelo sofrimento mesmo, atinge o ponto no qual a aparência, o véu de mãyã, não mais o ilude, e ele adquire uma visão que transpassa a forma da aparência, do principium individuationis, com o que também expira o egoísmo baseado neste princípio, e assim, os até então poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e, no lugar deles, o conhecimento perfeito da essência do mundo, atuando como QUIETIVO da vontade, produz a resignação, a renúncia, não apenas da vida, mas de toda a Vontade de vida mesma. Assim, vemos ao fim da tragédia os mais nobres, após longa luta e sofrimento, desistirem dos alvos até então perseguidos veementemente, e, para sempre, abdicam de todos os gozos da vida, ou desta se livram com alegria, como fez o príncipe inabalável de Calderón, ou a Gretchen no Fausto, ou Hamlet, a quem Horácio gostaria de seguir voluntariamente, porém aquele pede que permaneça e respire por mais algum tempo neste ingrato mundo de dores, a fim de esclarecer o destino de Hamlet e zelar por sua memória; — do mesmo modo a donzela de Orleans e a noiva de Messina: todos morrem purificados pelo sofrimento, ou seja, após a Vontade de vida já ter antes neles se extinguido; a palavra final no Mohammed   de Voltaire expressa isso literalmente, quando a agonizante Palmira diz a Mohammed: “O mundo é para tiranos, vive!”. — Por sua vez, a exigência da chamada justiça poética baseia-se sobre o desconhecimento total da essência da tragédia, em verdade desconhecimento da essência do mundo. Da maneira mais gritante percebe-se essa inépcia literária nas críticas obtusas, coerente com sua ingenuidade, que o Dr. Samuel Johnson dirige a algumas peças de Shakespeare  , censurando a sua licenciosidade: qual fato levou as Ofélias, as Desdêmonas, as Cordélias a serem culpáveis? — Só a visão de mundo rasa, otimista, racionalista-protestante, ou melhor dizendo, judaica, exigiria justiça poética para encontrar a própria satisfação nessa exigência. O sentido verdadeiro da tragédia reside na profunda intelecção de que os heróis não expiam os seus pecados individuais, mas o pecado original, isto é, a culpa da existência mesma: Pues el delito mayor / Del hombre es haber nacido; como Calderón exprime com franqueza. [MVR1: §51]

52. Após termos passado em revista todas as belas artes na universalidade própria ao nosso ponto de vista, começando com a bela arquitetura, cujo fim enquanto tal é clarear a OBJETIVAÇÃO DA VONTADE no grau mais baixo de sua visibilidade, em que ela se mostra como esforço regular abafado, sem conhecimento, da massa, já manifestando autodiscórdia e luta entre gravidade e rigidez — e fechando a nossa consideração com a tragédia, a qual, no grau mais elevado de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE, traz-nos diante dos olhos em terrível magnitude e distinção justamente o conflito da vontade consigo mesma; — após tudo isso, ia dizer, notamos que uma bela arte permaneceu excluída de nossa consideração, e tinha de permanecê-lo, visto que no encadeamento sistemático de nossa exposição não havia lugar apropriado para ela: trata-se da MÚSICA. Esta se encontra por inteiro separada de todas as demais artes. Conhecemos nela não a cópia, repetição de alguma ideia dos seres no mundo: no entanto, é uma arte tão elevada e majestosa que é capaz de fazer o efeito estético mais poderoso sobre o mais íntimo do ser humano, sendo tão inteira e tão profundamente compreendida por ele como se fora uma linguagem universal, cuja clareza ultrapassa até mesmo a do mundo intuitivo; — por isso, decerto temos de procurar nela mais do que um exercitium arithmeticae occultum nescientis se numerare animi na qualificação acertada de Leibniz  , apesar de ter considerado só a sua significação imediata e exterior, a sua casca; pois, se a música não fosse algo mais, a satisfação por ela proporcionada teria de ser semelhante à que sentimos na correta resolução de uma soma aritmética e não poderia ser a alegria interior com a qual o íntimo mais fundo de nosso ser é trazido à linguagem. Do nosso ponto de vista, ao considerarmos o efeito estético da música, temos de reconhecer-lhe uma significação muito mais séria e profunda, referida à essência íntima do mundo e de nós mesmos; e, nesse sentido, as relações numéricas nas quais a música se deixa resolver não são o significado, mas antes o signo. Da analogia com as demais artes podemos concluir que a música, de certa maneira, tem de estar para o mundo como a exposição para o exposto, a cópia para o modelo, pois seu efeito é no todo semelhante ao das outras artes, porém mais vigoroso, mais rápido, mais necessário e infalível. Também sua relação de cópia com o mundo tem de ser bastante íntima, infinitamente verdadeira e precisa, visto que é compreendida instantaneamente por qualquer um e dá a conhecer certa infalibilidade no fato de que sua forma se deixa remeter a regras determinadas expressas em números, das quais não pode desviar-se sem cessar completamente de ser música. — Contudo, o ponto de comparação da música com o mundo, a maneira pela qual a primeira está para este como imitação ou repetição, encontra-se profundamente oculto. A música foi praticada em todos os tempos, sem se poder dar uma resposta a tal indagação: ficou-se satisfeito em compreendê-la instantaneamente, renunciando-se a uma concepção abstrata dessa compreensão imediata. [MVR1: §52]

Reconheço nos tons mais graves da harmonia, no baixo fundamental, os graus mais baixos de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE — a natureza inorgânica, a massa do planeta. De fato, todos os tons agudos, de fácil movimento e fugidios, devem ser vistos como originados de vibrações simultâneas do tom fundamental, cuja emissão sempre acompanham suavemente, e é lei da harmonia que só podem acompanhar uma nota grave aqueles tons agudos que efetivamente ressoam automática e simultaneamente com ela por vibrações concomitantes. Isso é análogo ao fato de que todos os corpos e todas as organizações da natureza têm de ser vistos como originados pelo desenvolvimento gradual a partir da massa planetária; esta é tanto sua fonte quanto seu sustentáculo: e a mesma relação têm os tons mais agudos com o baixo fundamental. — O grave tem um limite além do qual tom algum é audível: isso corresponde ao fato de que matéria alguma é perceptível sem forma e qualidade, isto é, sem exteriorização de uma força inexplicável, na qual justamente se exprime uma ideia, e mais geralmente ao fato de que matéria alguma pode ser completamente destituída de volição: desse modo, assim como certo grau de altura é inseparável do tom, assim também certo grau de exteriorização da vontade é inseparável da matéria. — O baixo fundamental é, portanto, na harmonia, o que no mundo é a natureza inorgânica, a massa mais bruta, sobre a qual tudo se assenta e a partir da qual tudo se eleva e desenvolve. — Ademais, no conjunto das vozes intermediárias que produzem toda a harmonia e se situam entre o baixo fundamental e a voz condutora que canta a melodia, reconheço a sequência integral das ideias nas quais a vontade se objetiva. As vozes mais próximas do baixo correspondem aos graus mais baixos, ou seja, os corpos ainda inorgânicos, porém que já expressam a si mesmos de diversas formas: já as vozes mais elevadas representam os reinos vegetal e animal. — Os intervalos determinados da escala são paralelos aos graus determinados de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE, às espécies determinadas da natureza. O desvio da correção aritmética dos intervalos mediante um temperamento qualquer, ou produzida pelo tipo escolhido de tom, é análogo ao desvio do indivíduo do tipo da espécie: sim, as dissonâncias impuras que não formam nenhum intervalo determinado são comparáveis às deformações monstruosas situadas entre duas espécies animais, ou entre humano e animal. — A essas vozes graves e do ripieno que constituem a HARMONIA falta ainda a coesão no desenvolvimento, encontrada apenas na voz mais elevada que canta a melodia, única também a movimentar-se rápida e agilmente em modulações e escalas, enquanto as outras possuem somente um movimento mais lento, sem terem cada uma por si uma coesão intrínseca. Do modo mais pesado movimenta-se o baixo profundo, representante da massa mais bruta: seu as censo e descenso ocorre apenas em grandes intervalos, em terças, quartas, quintas, jamais em UM tom, a não ser que haja transposição do baixo por duplo contraponto. Esse movimento lento também é fisicamente essencial ao baixo profundo: aqui um movimento rápido ou trinado em notas baixas não é sequer imaginável. Do modo mais rápido, entretanto sem coesão melódica e progresso significativo, movimentam-se as vozes mais elevadas do ripieno, que correm paralelas ao mundo animal. O movimento desconexo e a determinação regular de todas as vozes do ripieno são análogos ao fato de que em todo o mundo irracional, do cristal até o mais perfeito dos animais, existência alguma possui uma consciência propriamente conexa que tornaria a sua vida um todo significativo, existência alguma experimenta uma sucessão de desenvolvimentos espirituais, muito menos torna-se mais perfeita por formação cultural, mas todas subsistem uniformemente em todo tempo, como determinadas por sua espécie segundo lei fixa. — Por fim, na MELODIA, na voz principal elevada, que canta e conduz o todo em progresso livre e irrestrito, em conexão significativa e ininterrupta similar a UM pensamento único do começo ao fim, expondo um todo, reconheço o grau mais elevado de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE, a vida do ser humano com esforço e clareza de consciência. Pois apenas o humano, na medida em que é dotado da faculdade de razão, vê sempre adiante e retrospectivamente no caminho da sua realidade efetiva e das suas possibilidades incontáveis e, assim, traz a bom termo, com clareza de consciência, um decurso de vida tomado como um todo coerente: — correspondendo a isso, somente a MELODIA tem conexão plena de sentido e de intenção do começo ao fim. Ela narra, por consequência, a história da vontade iluminada pela clarividência, cuja impressão na realidade é a série de seus atos; porém a melodia diz mais: narra a história mais secreta da vontade, pinta cada agitação, cada esforço, cada movimento seu, tudo o que a razão resume sob o vasto e negativo conceito de sentimento, que não pode ser acolhido em suas abstrações. Por isso sempre se disse que a música é a linguagem do sentimento e da paixão, assim como as palavras são a linguagem da razão: já Platão descreve a música como: melodiarum motus, animi affeetus imitans, e também Aristóteles diz: numeri musici et modi, qui voces sunt, moribus similes sese exhibent?. [MVR1: §52]

Se em toda essa exposição da música esforcei-me por tornar claro que ela, numa linguagem altamente universal, num estofo único, a saber, puros tons, expressa com grande precisão e verdade a essência íntima, o Em si do mundo, o qual, segundo sua exteriorização mais distinta, pensamos sob o conceito de vontade; se, ademais, conforme minha visão e intento, a filosofia nada é senão a correta e plena repetição e expressão da essência do mundo em conceitos os mais universais, pois somente nestes é possível um panorama amplo e válido em toda parte daquela essência; então, ia dizer, quem me seguiu e penetrou no meu modo de pensar não achará paradoxal se disser, supondo-se que tenhamos sucesso em dar uma explicitação perfeitamente correta, exata e detalhada da música, portanto uma repetição exaustiva em conceitos daquilo que ela exprime em tons, que isso seria de imediato uma explicitação e repetição suficientes em conceitos do próprio mundo ou algo inteiramente equivalente, portanto seria a verdadeira filosofia; conseguinte mente, a partir de nossa perspectiva mais elevada da música, podemos parodiar o dito de Leibniz acima mencionado e dizer: Musica est exercitium metaphysices occultum nescientis se philosophari animi. Pois scire, saber, sempre significa ter transferido para conceitos abstratos. Todavia, em virtude da verdade amplamente confirmada do dito de Leibniz, a música, aparte sua significação estética ou interior, e considerada só de maneira empírica e exterior, é tão somente o meio de apreender, imediatamente e in concreto, grandes números e relações numéricas complexas, que do contrário só poderíamos apreender mediatamente, por conceitos. Por consequência, pela união dessas duas visões tão diferentes e no entanto corretas da música, podemos chegar a uma concepção da possibilidade de uma filosofia numérica, como o foi a de Pitágoras e também a chinesa do I Ching, e nesse sentido interpretar o dito dos pitagóricos citado por Sexto Empírico numero cuncta assimilantur. Por fim, se aplicarmos essa visão à interpretação acima exposta sobre a harmonia e a melodia, notaremos que uma mera filosofia moral, sem explicitação da natureza, como Sócrates   queria introduzir, é análoga a uma melodia sem harmonia, desejada exclusivamente por Rousseau  ; em compensação, uma mera física e metafísica sem ética corresponderia a uma mera harmonia sem melodia. — A tais considerações ocasionais seja-me permitido acrescentar ainda algumas observações que concernem à analogia da música com o mundo aparente. Vimos no livro precedente como o grau mais elevado de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE, o ser humano, não podia aparecer sozinho e destacado, mas pressupunha os graus situados abaixo dele, e estes, por sua vez, pressupunham outros mais abaixo ainda: da mesma forma, a música, que, como o mundo, objetiva imediatamente a vontade, só adquire sua perfeição na harmonia completa. A voz elevada condutora da melodia precisa, para provocar toda a sua impressão, do acompanhamento de todas as outras vozes, até o baixo mais grave, que deve ser visto como a origem comum de todas as vozes: a melodia intervém como parte integrante da harmonia, e vice-versa; e, como apenas assim, na plenitude das vozes, a música expressa o que intenta expressar, assim também a vontade una e exterior ao tempo encontra a sua objetivação perfeita somente na união completa de todos os graus que manifestam, em estádios cada vez mais distintos, sua essência. — Outra analogia notável é a seguinte. Vimos no livro precedente que, apesar da acomodação de todas as aparências da vontade entre si no que diz respeito às suas espécies, o que justamente dava azo à consideração teleológica da natureza, permanecia entre aquelas aparências, tomadas como indivíduos, uma disputa sem fim, e isso em todos os seus graus, pelo que o mundo se torna um campo de contínuas batalhas entre todas as aparências de uma única e mesma vontade, com o que precisamente se torna visível a sua discórdia interna consigo mesma. Do mesmo modo, há algo na música que corresponde a isso, vale dizer, um sistema de tons perfeitamente puro e harmônico é não apenas fisicamente, mas até mesmo aritmeticamente impossível. Os próprios números, mediante os quais os tons se exprimem, possuem irracionalidades insolúveis: escala alguma pode sequer ser computada no interior da qual cada quinta se relaciona com o tom fundamental como 2 para 3, cada terça maior como 4 para 5, cada terça menor como 5 para 6 etc. Pois, se os tons são corretamente referidos ao tom fundamental, não o são mais entre si, já que, por exemplo, a quinta deveria ser a terça menor da terça etc., pois os tons da escala são comparáveis a atores que têm de desempenhar ora este, ora aquele papel. Eis por que uma música perfeitamente exata jamais pode ser concebida, muito menos perfeitamente executada: por isso toda música possível desvia-se da completa pureza: ela pode, quando muito, esconder as dissonâncias que lhe são essenciais, pela distribuição delas em todos os tons, isto é, por temperamento. [MVR1: §52]

A fruição do belo, o consolo proporcionado pela arte, o entusiasmo do artista que faz esquecer a penúria da vida, essa vantagem do gênio em face de todos os outros humanos, única que o compensa pelo sofrimento que cresce na proporção de sua clarividência e pela erma solidão em meio a uma multidão humana tão heterogênea, — tudo isso se deve, como veremos adiante, ao fato de que o Em si da vida, à vontade, a existência mesma, é um sofrimento sem fim, em parte terrível, em parte chocante, o qual, todavia, se intuído pura e exclusivamente como representação, ou repetido pela arte, livre de tormentos, apresenta-nos um teatro pleno de significado. Esse lado do mundo conhecido de maneira pura, bem como a repetição dele em alguma arte, é o elemento do artista. Ele é cativado pela consideração do teatro da OBJETIVAÇÃO DA VONTADE: detém-se nele, sem se cansar de considerá-lo e expô-lo repetidas vezes; entrementes, ele mesmo arca com os custos da encenação nesse teatro, noutras palavras, ele mesmo é a vontade que objetiva a si mesma e persevera no sofrimento sem fim. Aquele conhecimento profundo, puro e verdadeiro da essência do mundo se torna um fim em si para o artista, que se detém nele. Eis por que tal conhecimento não se torna para ele um quietivo da vontade, não o salva para sempre da vida, mas apenas momentaneamente, contrariamente (como logo veremos no livro seguinte) ao santo que atinge a resignação; ainda não se trata, para o artista, da saída da vida, mas apenas de um consolo ocasional em meio a ela, até que sua força é aí incrementada, ele finalmente cansa-se do jogo, e se volta para o sério. Como símbolo dessa transição pode-se considerar a Santa Cecília de Rafael. Também para o sério queremos nos dirigir, agora, no próximo livro. [MVR1: §52]

Acima de tudo ternos de reconhecer claramente que a forma do aparecimento da vontade, portanto, a forma da vida ou da realidade, é, propriamente dizendo, apenas o PRESENTE, não o futuro, nem o passado: estes últimos existem só em conceito, somente em conexão com o conhecimento, na medida em que este segue o princípio de razão. Ser humano algum viveu no passado, e ser humano algum viverá no futuro; unicamente o PRESENTE é a forma de toda vida, mas também é a sua posse mais segura, que jamais lhe pode ser arrebatada. O presente sempre existe, junto com o seu conteúdo: os dois se mantêm firmes, sem oscilarem, como o arco-íris sobre a queda d água. Pois à vontade a vida é certa e segura, e à vida o presente é certo e seguro. Naturalmente, se pensarmos retrospectivamente nos milênios transcorridos, nas milhões de pessoas que viveram neles, perguntaremos: que foram elas? Que se fez delas? — Por outro lado, precisamos apenas evocar o passado da nossa própria vida e vividamente renovar suas cenas na fantasia para de novo perguntar: que foi tudo isso? Que foi feito dela? — Como no caso da nossa própria vida, assim também no caso da vida daqueles muitos milhões. Ou deveríamos supor que o passado alcança uma nova existência ao ser selado pela morte? Nosso próprio passado, inclusive o dia mais recente e o anterior, é tão somente um sonho nulo da fantasia; assim também é o passado de todos aqueles milhões. Que foi? Que é? — A vontade, cujo espelho é a vida, e o conhecimento livre de volição, que mira claramente a vontade nesse espelho. Quem ainda não reconheceu isso ou não o quer reconhecer pode acrescentar à questão anterior sobre o destino das gerações passadas ainda esta: por que precisamente ele, o questionador, é tão feliz em possuir este tempo presente precioso e fugidio, único real, enquanto aquelas centenas de gerações de seres humanos, sim, os heróis e sábios daqueles tempos, naufragaram na noite do passado e assim se tornaram nada, enquanto ele, seu insignificante eu, existe realmente? — ou, de maneira mais sucinta, embora soe estranho: por que este agora, seu agora, — é precisamente agora, e não FOI há muito tempo? — Quem assim questiona tão estranhamente, percebe que sua existência e seu tempo são independentes um do outro, e a primeira é como que atirada no segundo: em realidade, assume dois agoras, um que pertence ao objeto, e outro que pertence ao sujeito, e maravilha-se com o acaso feliz de seu encontro. Em verdade, entretanto, apenas o ponto de contato do objeto, cuja forma é o tempo, com o sujeito, que não possui figura alguma do princípio de razão como forma, constitui o presente. Porém, todo objeto é a vontade na medida em que esta se tornou representação, e o sujeito é o correlato necessário do objeto; objetos reais, entretanto, situam-se apenas no presente: passado e futuro contêm meros conceitos e fantasmas, por consequência o tempo presente é a forma essencial e inseparável do aparecimento da vontade. Somente o presente é aquilo que sempre existe e se mantém firme e imóvel. Empiricamente apreendido, é o mais fugidio de tudo; contudo, à mirada metafísica, cuja visão transpassa todas as formas da intuição empírica, o presente apresenta-se como a única coisa permanente, o Nunc stans dos escolásticos. A fonte e o sustentáculo de seu conteúdo é a Vontade de vida, ou coisa em si, — que somos nós. Aquilo que continuamente vem a ser e perece, pois ou já foi, ou ainda deve chegar a ser, pertence à aparência enquanto tal, em virtude de suas formas tornarem possível o nascer e o perecer. Em consequência, deve-se pensar: Quid fuit? — Quod est. — Quid erit? — Quod fuit; entendendo-os no sentido estrito do termo, não símile, mas idem. Pois à vontade a vida é certa, e à vida o presente é certo. Portanto, cada um pode dizer: “Para sempre sou o senhor do presente e ele me acompanhará por toda a eternidade como a minha sombra; por isso não me espanto e pergunto de onde ele veio, e por que ele é precisamente agora”. — Podemos comparar o tempo a um círculo que gira incessantemente: a metade sempre a descer seria o passado, a outra sempre a subir seria o futuro; porém, acima, o ponto indivisível que toca a tangente seria o presente inextenso: assim como a tangente não toma parte no movimento circular, tampouco o presente, o ponto de contato do objeto cuja forma é o tempo, toma parte no sujeito, que não possui forma alguma, pois não pertence ao que é cognoscível, mas é a condição de todo cognoscível. Ou: o tempo é como uma torrente irresistível, e o presente é uma rocha contra a qual aquela se quebra, sem no entanto poder arrastá-la. A vontade, como coisa em si, está tão pouco submetida ao princípio de razão quanto o sujeito do conhecimento, que definitivamente, de uma certa perspectiva, é a vontade mesma ou sua exteriorização: e assim como à vontade a vida é certa, vida que é a aparência própria da vontade, também lhe é certo o presente, única forma da vida real. Conseguintemente, não temos de investigar o passado anterior à vida, nem o futuro posterior à morte: em vez disso, temos de conhecer o PRESENTE como a única forma na qual a vontade aparece; ele não escapará da vontade, nem esta, a bem dizer, escapará dele. Nesse sentido, quem está satisfeito com a vida como ela é, e a afirma em todas as suas maneiras, pode confiantemente considerá-la como sem fim e banir o medo irracional da morte como uma ilusão que lhe infunde o tolo temor de que a pessoa poderia ser despojada do presente, ou que poderia haver um tempo destituído de presente: ilusão parecida com aquela relativa ao espaço, em virtude da qual alguém fantasia a exata posição ocupada por si no globo terrestre como a de cima e as restantes posições como as de baixo: justamente no mesmo sentido, cada um liga o presente à sua individualidade e acredita que com ela se extingue todo presente; passado e futuro, assim, existiriam sem o presente. Entretanto, assim como no globo terrestre toda posição é a de cima, também a forma de toda vida é o PRESENTE, e temer a morte porque ela nos arrebata o presente não é mais sábio do que temer deslizar para baixo no globo terrestre, a partir do topo, onde felizmente nos encontramos agora. A OBJETIVAÇÃO DA VONTADE tem como forma essencial o presente, ponto inextenso que corta o tempo infinitamente em duas direções e permanece firme e imóvel, como um meio-dia sempiterno, sem noite refrescante; como o Sol real brilha sem interrupção enquanto apenas aparentemente se perde no seio da noite: portanto, se um ser humano teme a morte como seu aniquilamento, é simplesmente como se pudesse pensar o Sol a lamentar-se diante da noite: “Ai de mim! Vou me perder na noite eterna”. Contrariamente, a pessoa que está oprimida pelo peso da vida e ainda assim a deseja e afirma, porém sem aceitar os tormentos dela, em especial sem poder suportar por muito tempo a dura sorte que lhe coube, não pode esperar da morte a libertação, nem pode salvar a si mesma pelo suicídio; é apenas seduzida com ilusões falsas pelo frio e tenebroso Orco, que se apresenta como um porto de paz. A Terra passa do dia à noite; o indivíduo morre: mas o Sol brilha sem interrupção, eterno meio-dia. À Vontade de vida a vida é certa: a forma da vida é o presente sem fim; é indiferente como os indivíduos, aparências da ideia, chegam à existência no tempo e desaparecem parecidos a sonhos fugidios. — Portanto, o suicídio já se nos apresenta aqui como um ato inútil e, por conseguinte, tolo: quando tivermos avançado ainda mais em nossa consideração, ele aparecerá numa luz menos favorável ainda. [MVR1: §54]

61. Recordemos do livro segundo que na natureza inteira, em todos os graus de OBJETIVAÇÃO DA VONTADE, existe necessariamente uma luta contínua entre os indivíduos de todas as espécies, e, justamente aí, exprime-se um conflito interno da Vontade de vida consigo mesma. Nos graus mais elevados de sua objetivação, como em todos os demais, esse fenômeno expõe-se numa distinção mais acentuada, podendo, por conseguinte, ser mais bem decifrado. Tendo em vista esse fim, queremos primeiro buscar a fonte do EGOÍSMO, como ponto de partida de toda luta. [MVR1: §61]

Denominamos tempo e espaço principium individuationis, já que só neles e por eles é possível a plural idade do que é semelhante. Eles são as formas essenciais do conhecimento natural, isto é, que brota da vontade. Em virtude disso, a vontade aparece em toda parte na pluralidade dos indivíduos. Todavia, tal pluralidade não concerne à vontade como coisa em si, mas exclusivamente às suas aparências: a vontade encontra-se por inteiro indivisa em cada aparência, e em torno de si vê a imagem inumeráveis vezes repetida de sua própria essência. Mas esta mesma, ou seja, o que é de fato real, ela só encontra imediatamente em seu interior. Eis por que cada um quer tudo para si, quer tudo possuir, ao menos dominar, e assim deseja aniquilar tudo aquilo que lhe opõe resistência. Acresce ao que foi dito o fato de que, no ser cognoscente, o indivíduo é sustentáculo do sujeito que conhece e este é sustentáculo do mundo; noutros termos, toda a natureza exterior ao sujeito que conhece, portanto todos os demais indivíduos, existe apenas em sua representação: sempre está consciente deles apenas como sua representação, portanto de maneira meramente mediata, como algo dependente de seu próprio ser e existência, pois, se sua consciência sucumbisse, o mundo também sucumbiria necessariamente, isto é, a existência ou inexistência dos demais indivíduos ser-lhe-iam equivalentes e indistinguíveis. Em verdade, todo indivíduo que conhece é e encontra a si mesmo como a Vontade de vida em sua totalidade, como o Em si mesmo do mundo, portanto, como a condição complementar do mundo como representação, consequentemente como um microcosmo que equivale ao macrocosmo. A própria natureza, em toda parte sempre verdadeira, dá ao indivíduo originária e independentemente de qualquer reflexão esse conhecimento simples e imediatamente certo. Ora, a partir das duas mencionadas determinações necessárias explana-se o fato de que cada indivíduo, que desaparece por completo e diminui a nada em face do mundo sem limites, faz no entanto de si mesmo o centro do universo, antepondo a própria existência e o bem-estar a tudo o mais, sim, do ponto de vista natural está preparado a sacrificar qualquer coisa, até mesmo a aniquilar o mundo, simplesmente para conservar mais um pouco o próprio si mesmo, esta gota no meio do oceano. Eis aí a mentalidade do EGOÍSMO, o qual é essencial a cada coisa da natureza. É exatamente através dele que o conflito interno da vontade consigo mesma alcança temível manifestação. Pois esse egoísmo tem sua base e essência naquela oposição entre microcosmo e macrocosmo, ou no fato de a OBJETIVAÇÃO DA VONTADE ter por forma o principium individuationis, aparecendo de maneira igual em inumeráveis indivíduos e, na verdade, em cada um deles inteira e completamente segundo os dois lados. Contudo, enquanto cada um é dado a si mesmo imediatamente como vontade inteira, e como sujeito inteiro que representa, os outros seres lhe são dados meramente como suas representações; em consequência, o ser e a conservação próprios são antepostos ao ser e à conservação de todos os outros em conjunto. Cada um mira a própria morte como o fim do mundo; já a morte dos seus conhecidos é de fato ouvida com indiferença, caso não o afete em termos pessoais. Na consciência que atingiu o grau mais elevado, a humana, o egoísmo, igual à dor e à alegria, também teve de atingir o grau mais elevado, e o conflito dos indivíduos por ele condicionado entra em cena da forma mais horrível. Vemos isso em toda parte diante dos olhos, nas pequenas e nas grandes coisas; o lado terrível disso encontra-se na vida dos grandes tiranos e facínoras, nas guerras que devastam o mundo, enquanto o seu lado hilariante é objeto da comédia e aparece sobretudo na presunção e na vaidade, o que Rochefoucault, melhor que qualquer outro escritor, conseguiu apreender e expor in abstracto: vemos isso também na história universal e na experiência particular. Porém, da maneira mais distinta isso entra em cena tão logo uma turba humana rebela-se contra toda lei e ordem: aí se mostra de imediato e da maneira mais nítida o bellum omnium contra omnes, descrito primorosamente por Hobbes   no primeiro capítulo do De cive. Observamos não apenas como cada um procura arrancar do outro o que quer ter, mas inclusive como alguém, em vista de aumentar seu bem-estar por um acréscimo insignificante, chega ao ponto de destruir toda a felicidade ou a vida de outrem. Eis aí a suprema expressão do egoísmo, cujas aparências, nesse aspecto, são superadas apenas por aquelas da pura maldade, que procura, indiferentemente e sem benefício pessoal algum, a injúria e a dor alheia; falaremos mais sobre tal assunto logo a seguir. — Compare-se ainda a descoberta aqui feita da fonte do egoísmo com a exposição dele em meu escrito que concorreu a prêmio Sobre o fundamento da moral, § 14. [MVR1: §61]