Às vezes muitas APARÊNCIAS DA VONTADE entram em conflito nos graus mais baixos de sua objetivação, portanto no reino inorgânico, quando cada aparência quer apoderar-se da matéria existente servindo-se do fio condutor da causalidade; assim, desse conflito emerge a aparência de uma ideia mais elevada que domina todas as ideias mais imperfeitas que antes ali existiam, todavia, de tal maneira que permite que a essência destas continue a existir de um modo subordinado, mediante a absorção em si de um análogo delas; semelhante processo só é concebível pela identidade da vontade que aparece em todas as ideias e pelo seu esforço em vista de objetivações cada vez mais elevadas. Assim, vemos na solidificação dos ossos um análogo indubitável da cristalização, que controlava o cálcio originariamente, embora a ossificação jamais possa ser redutível à cristalização. A analogia mostra-se mais debilmente na solidificação da carne. Similarmente, a mistura de sucos e a secreção nos corpos animais são um análogo da mistura e separação químicas; e as leis destas continuam a valer ali, ainda que subordinadas, bastante modificadas e dominadas por uma ideia mais elevada. Eis por que a existência de forças químicas exteriores ao organismo jamais produzirá por si só esses sucos; mas [MVR1: §27]
28. Consideramos a grande variedade e diversidade das aparências nas quais a vontade se objetiva; vimos uma luta sem fim e irreconciliável entre as aparências. Não obstante, de acordo com a exposição feita até agora, a vontade mesma, como coisa em si, de modo algum está compreendida naquela pluralidade e mudança. A diversidade de ideias, ou seja, a gradação da objetivação, a multidão de indivíduos em que a vontade se expõe, a luta das formas pela matéria: tudo isso não lhe concerne, mas é apenas a forma de sua objetivação, por meio da qual tudo tem uma relação media ta com a vontade, sendo a expressão da sua essência para a representação. Assim como uma lanterna mágica mostra muitas e variadas imagens, porém aí se trata de uma única e mesma flama que confere visibilidade a elas, assim também em todas as diversas aparências que uma ao lado da outra preenchem o mundo ou se rechaçam como acontecimentos sucessivos, trata-se apenas de UMA VONTADE que aparece; tudo é sua visibilidade, objetidade, porém ela mesma permanece imóvel em meio a essa mudança: só a vontade é a coisa em si: todo objeto, ao contrário, é aparência, fenômeno na língua de Kant. — Embora no ser humano, como ideia platônica, a vontade tenha encontrado sua objetivação mais distinta e perfeita, esta sozinha não podia expressar a sua essência. A ideia de ser humano, para aparecer na sua atual significação, não podia expor-se isolada e separadamente, mas tinha de ser acompanhada por uma sequência decrescente de graus em meio a todas as figuras animais, passando pelo reino vegetal e indo até o inorgânico: todos esses reinos complementam-se para a objetivação plena da vontade; a ideia de ser humano os pressupõe, assim como as flores das árvores pressupõem folhas, ramos, tronco e raiz: os reinos da natureza formam uma pirâmide, cujo ápice é o ser humano. Para os que gostam de comparações, também se pode dizer que os aparecimentos desses reinos acompanham o do ser humano tão necessariamente quanto todas as inumeráveis gradações da penumbra acompanham a plena luz do dia, e pelas quais esta se perde na escuridão; ou ainda se pode chamá-las ecos do ser humano e dizer: animais e plantas são as notas quinta e terceira descendentes do ser humano, enquanto o reino inorgânico é a sua oitava baixa. Toda a verdade desta última metáfora só nos será clara quando, no livro seguinte, investigarmos a profunda significação da música, e mostrarmos a nós mesmos como a melodia que progride em notas elevadas, ágeis, deve em certo sentido ser vista como expondo a vida e o esforço do ser humano, conectados pela reflexão; por outro lado, os acompanhamentos não encadeados e o baixo que se move gravemente, do qual procede a harmonia, vital para a perfeição da música, descrevem o restante da natureza animal e da natureza que é privada de conhecimento. Mais sobre isso será dito no seu devido lugar, onde não soará mais tão paradoxal. — Também encontramos aquela NECESSIDADE INTERIOR da gradação das APARÊNCIAS DA VONTADE, inseparável da sua objetidade adequada, expressa na totalidade delas por meio de uma NECESSIDADE EXTERIOR: justamente aquela em virtude da qual o ser humano precisa dos animais para sua conservação, e estes, por sua vez, precisam uns dos outros segundo os seus graus, e por fim também precisam das plantas, que por seu turno precisam do solo, da água, dos elementos químicos e seus compostos, do planeta, do Sol, da rotação e translação em torno deste, da obliquidade da eclíptica e assim por diante. — No fundo, tudo isso assenta-se no fato de a vontade ter de devorar a si mesma, já que nada existe de exterior a ela, e ela é uma vontade faminta. Daí a caça, a angústia e o sofrimento. [MVR1: §28]
Tudo o que esta consideração pretendia deixar claro, a saber, a impossibilidade de alcançamento da satisfação duradoura, bem como a negatividade de qualquer estado feliz, foi explanado por aquilo que mostramos na conclusão do livro segundo, ou seja, que a vontade, cuja objetivação é tanto a vida humana quanto qualquer outra aparência, é um esforço sem alvo e sem fim. Essa marca da ausência de fim está impressa em cada parte de todas as APARÊNCIAS DA VONTADE, desde a sua forma mais universal, tempo e espaço infindos, até a mais acabada de todas elas, a vida e labuta do ser humano. — Pode-se tomar teoricamente três extremos da vida humana e os considerar como elementos da vida humana real. Primeiro, o querer violento, as grandes paixões. Estes são evidentes nos grandes caracteres históricos, descritos em épicos e dramas: também podem mostrar-se num formato reduzido, já que a grandeza dos objetos é aqui medida apenas segundo o grau com que excitam a vontade, não segundo suas proporções exteriores. Segundo, o puro conhecer, a apreensão das ideias condicionada pela liberação do conhecimento a serviço da vontade: a vida do gênio. Por fim, em terceiro, a grande letargia da vontade e o conhecimento a ela associado, o anelar vazio, tédio petrificante. A vida do indivíduo, muito distante de deter-se nesses extremos, raramente os toca e na maioria das vezes é uma aproximação fraca e oscilante de um ou outro, um querer sedento de irrisórios objetos que sempre retoma e assim afugenta o tédio. — É realmente inacreditável o quanto a vida da maioria das pessoas, quando vista do exterior, decorre insignificante, vazia de sentido e, quando percebida no seu interior, decorre de maneira tosca e irrefletida. Trata-se de um anseio e tormento obscuro, um vaguear sonolento pelas quatro idades da vida em direção à morte, acompanhado por uma série de pensamentos triviais. Assemelham-se a relógios aos quais se deu corda e funcionam sem saber por quê; todas as vezes que um ser humano é gerado e nasce, o relógio da vida humana novamente recebe corda, para mais uma vez repetir o seu estribilho inúmeras vezes tocado: movimento por movimento, batida por batida, com insignificantes variações. — Todo indivíduo, todo rosto humano e seu decurso de vida, é apenas um sonho curto a mais do espírito infinito da natureza, da permanente Vontade de vida; é apenas um esboço fugidio a mais traçado por ela em sua folha de desenho infinita, ou seja, espaço e tempo, esboço que existe ali por um mero instante se for comparado a ela e depois é apagado, cedendo lugar a outro. Contudo, e aqui reside o lado sério da vida, cada um desses esboços fugidios, desses contornos vazios, tem de ser pago com toda a Vontade de vida em sua plena veemência, mediante muitas e profundas dores e, ao fim, com uma amarga morte, longamente temida e que finalmente entra em cena. Eis por que a visão de um cadáver nos torna de súbito graves. [MVR1: §58]
Ao examinar o íntimo dessa justiça, já se descobre a intenção de não ir tão longe na afirmação da própria vontade até a negação das outras APARÊNCIAS DA VONTADE, compelindo-as a servir à própria vontade. Querer-se-á praticar em prol dos outros tanto quanto deles se desfruta. O grau supremo dessa justiça de disposição — sempre associada à autêntica bondade, cuja natureza não é mais meramente negativa — vai tão longe que a pessoa pode até questionar o próprio direito à propriedade herdada e assim desejar manter o seu corpo apenas com as próprias forças, espirituais ou físicas, sentindo todo serviço prestado por outros, todo luxo, como uma repreenda, podendo inclusive entregar-se por fim à pobreza voluntária. Desse modo vemos PASCAL, após assumir orientação ascética, não mais querer serviços de ninguém, apesar dos seus vários serviçais; e, em que pesasse a sua doença crônica, fazia a própria cama e buscava a refeição na cozinha etc. Correspondendo a todo o exposto reporta-se que muitos hindus, inclusive rajás, cercados de riqueza, usam-na apenas para o sustento dos seus parentes, da sua corte e dos seus serviçais, seguindo com estritos escrúpulos a máxima de nada comer senão o que foi semeado e colhido com as próprias mãos. Porém, certo mal-entendido encontra-se no fundamento disso, pois o indivíduo, justamente devido à sua condição de rico e poderoso, pode prestar ao todo da sociedade humana um serviço bastante significativo, de forma a compensar a riqueza herdada, cuja segurança agradece à sociedade mesma. Propriamente falando, a justiça excessiva desses hindus é mais que justiça, a saber, já é efetiva renúncia, negação da Vontade de vida, ascese, da qual falaremos por último. Por outro lado, viver sem fazer nada, servindo-se das forças de outrem em meio à riqueza herdada e sem realizar coisa alguma, já pode ser visto como algo moralmente injusto, embora segundo as leis positivas tenha de permanecer como algo justo. [MVR1: §66]