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Schopenhauer (MVR1): aparências da vontade

quinta-feira 25 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

Às vezes muitas APARÊNCIAS DA VONTADE entram em conflito nos graus mais baixos de sua objetivação, portanto no reino inorgânico, quando cada aparência quer apoderar-se da matéria existente servindo-se do fio condutor da causalidade; assim, desse conflito emerge a aparência de uma ideia mais elevada que domina todas as ideias mais imperfeitas que antes ali existiam, todavia, de tal maneira que permite que a essência destas continue a existir de um modo subordinado, mediante a absorção em si de um análogo delas; semelhante processo só é concebível pela identidade da vontade que aparece em todas as ideias e pelo seu esforço em vista de objetivações cada vez mais elevadas. Assim, vemos na solidificação dos ossos um análogo indubitável da cristalização, que controlava o cálcio originariamente, embora a ossificação jamais possa ser redutível à cristalização. A analogia mostra-se mais debilmente na solidificação da carne. Similarmente, a mistura de sucos e a secreção nos corpos animais são um análogo da mistura e separação químicas; e as leis destas continuam a valer ali, ainda que subordinadas, bastante modificadas e dominadas por uma ideia mais elevada. Eis por que a existência de forças químicas exteriores ao organismo jamais produzirá por si só esses sucos; mas [MVR1: §27]

28. Consideramos a grande variedade e diversidade das aparências nas quais a vontade se objetiva; vimos uma luta sem fim e irreconciliável entre as aparências. Não obstante, de acordo com a exposição feita até agora, a vontade mesma, como coisa em si, de modo algum está compreendida naquela pluralidade e mudança. A diversidade de ideias, ou seja, a gradação da objetivação, a multidão de indivíduos em que a vontade se expõe, a luta das formas pela matéria: tudo isso não lhe concerne, mas é apenas a forma de sua objetivação, por meio da qual tudo tem uma relação media ta com a vontade, sendo a expressão da sua essência para a representação. Assim como uma lanterna mágica mostra muitas e variadas imagens, porém aí se trata de uma única e mesma flama que confere visibilidade a elas, assim também em todas as diversas aparências que uma ao lado da outra preenchem o mundo ou se rechaçam como acontecimentos sucessivos, trata-se apenas de UMA VONTADE que aparece; tudo é sua visibilidade, objetidade, porém ela mesma permanece imóvel em meio a essa mudança: só a vontade é a coisa em si: todo objeto, ao contrário, é aparência, fenômeno na língua de Kant  . — Embora no ser humano, como ideia platônica, a vontade tenha encontrado sua objetivação mais distinta e perfeita, esta sozinha não podia expressar a sua essência. A ideia de ser humano, para aparecer na sua atual significação, não podia expor-se isolada e separadamente, mas tinha de ser acompanhada por uma sequência decrescente de graus em meio a todas as figuras animais, passando pelo reino vegetal e indo até o inorgânico: todos esses reinos complementam-se para a objetivação plena da vontade; a ideia de ser humano os pressupõe, assim como as flores das árvores pressupõem folhas, ramos, tronco e raiz: os reinos da natureza formam uma pirâmide, cujo ápice é o ser humano. Para os que gostam de comparações, também se pode dizer que os aparecimentos desses reinos acompanham o do ser humano tão necessariamente quanto todas as inumeráveis gradações da penumbra acompanham a plena luz do dia, e pelas quais esta se perde na escuridão; ou ainda se pode chamá-las ecos do ser humano e dizer: animais e plantas são as notas quinta e terceira descendentes do ser humano, enquanto o reino inorgânico é a sua oitava baixa. Toda a verdade desta última metáfora só nos será clara quando, no livro seguinte, investigarmos a profunda significação da música, e mostrarmos a nós mesmos como a melodia que progride em notas elevadas, ágeis, deve em certo sentido ser vista como expondo a vida e o esforço do ser humano, conectados pela reflexão; por outro lado, os acompanhamentos não encadeados e o baixo que se move gravemente, do qual procede a harmonia, vital para a perfeição da música, descrevem o restante da natureza animal e da natureza que é privada de conhecimento. Mais sobre isso será dito no seu devido lugar, onde não soará mais tão paradoxal. — Também encontramos aquela NECESSIDADE INTERIOR da gradação das APARÊNCIAS DA VONTADE, inseparável da sua objetidade adequada, expressa na totalidade delas por meio de uma NECESSIDADE EXTERIOR: justamente aquela em virtude da qual o ser humano precisa dos animais para sua conservação, e estes, por sua vez, precisam uns dos outros segundo os seus graus, e por fim também precisam das plantas, que por seu turno precisam do solo, da água, dos elementos químicos e seus compostos, do planeta, do Sol, da rotação e translação em torno deste, da obliquidade da eclíptica e assim por diante. — No fundo, tudo isso assenta-se no fato de a vontade ter de devorar a si mesma, já que nada existe de exterior a ela, e ela é uma vontade faminta. Daí a caça, a angústia e o sofrimento. [MVR1: §28]

Tudo o que esta consideração pretendia deixar claro, a saber, a impossibilidade de alcançamento da satisfação duradoura, bem como a negatividade de qualquer estado feliz, foi explanado por aquilo que mostramos na conclusão do livro segundo, ou seja, que a vontade, cuja objetivação é tanto a vida humana quanto qualquer outra aparência, é um esforço sem alvo e sem fim. Essa marca da ausência de fim está impressa em cada parte de todas as APARÊNCIAS DA VONTADE, desde a sua forma mais universal, tempo e espaço infindos, até a mais acabada de todas elas, a vida e labuta do ser humano. — Pode-se tomar teoricamente três extremos da vida humana e os considerar como elementos da vida humana real. Primeiro, o querer violento, as grandes paixões. Estes são evidentes nos grandes caracteres históricos, descritos em épicos e dramas: também podem mostrar-se num formato reduzido, já que a grandeza dos objetos é aqui medida apenas segundo o grau com que excitam a vontade, não segundo suas proporções exteriores. Segundo, o puro conhecer, a apreensão das ideias condicionada pela liberação do conhecimento a serviço da vontade: a vida do gênio. Por fim, em terceiro, a grande letargia da vontade e o conhecimento a ela associado, o anelar vazio, tédio petrificante. A vida do indivíduo, muito distante de deter-se nesses extremos, raramente os toca e na maioria das vezes é uma aproximação fraca e oscilante de um ou outro, um querer sedento de irrisórios objetos que sempre retoma e assim afugenta o tédio. — É realmente inacreditável o quanto a vida da maioria das pessoas, quando vista do exterior, decorre insignificante, vazia de sentido e, quando percebida no seu interior, decorre de maneira tosca e irrefletida. Trata-se de um anseio e tormento obscuro, um vaguear sonolento pelas quatro idades da vida em direção à morte, acompanhado por uma série de pensamentos triviais. Assemelham-se a relógios aos quais se deu corda e funcionam sem saber por quê; todas as vezes que um ser humano é gerado e nasce, o relógio da vida humana novamente recebe corda, para mais uma vez repetir o seu estribilho inúmeras vezes tocado: movimento por movimento, batida por batida, com insignificantes variações. — Todo indivíduo, todo rosto humano e seu decurso de vida, é apenas um sonho curto a mais do espírito infinito da natureza, da permanente Vontade de vida; é apenas um esboço fugidio a mais traçado por ela em sua folha de desenho infinita, ou seja, espaço e tempo, esboço que existe ali por um mero instante se for comparado a ela e depois é apagado, cedendo lugar a outro. Contudo, e aqui reside o lado sério da vida, cada um desses esboços fugidios, desses contornos vazios, tem de ser pago com toda a Vontade de vida em sua plena veemência, mediante muitas e profundas dores e, ao fim, com uma amarga morte, longamente temida e que finalmente entra em cena. Eis por que a visão de um cadáver nos torna de súbito graves  . [MVR1: §58]

Ao examinar o íntimo dessa justiça, já se descobre a intenção de não ir tão longe na afirmação da própria vontade até a negação das outras APARÊNCIAS DA VONTADE, compelindo-as a servir à própria vontade. Querer-se-á praticar em prol dos outros tanto quanto deles se desfruta. O grau supremo dessa justiça de disposição — sempre associada à autêntica bondade, cuja natureza não é mais meramente negativa — vai tão longe que a pessoa pode até questionar o próprio direito à propriedade herdada e assim desejar manter o seu corpo apenas com as próprias forças, espirituais ou físicas, sentindo todo serviço prestado por outros, todo luxo, como uma repreenda, podendo inclusive entregar-se por fim à pobreza voluntária. Desse modo vemos PASCAL  , após assumir orientação ascética, não mais querer serviços de ninguém, apesar dos seus vários serviçais; e, em que pesasse a sua doença crônica, fazia a própria cama e buscava a refeição na cozinha etc. Correspondendo a todo o exposto reporta-se que muitos hindus, inclusive rajás, cercados de riqueza, usam-na apenas para o sustento dos seus parentes, da sua corte e dos seus serviçais, seguindo com estritos escrúpulos a máxima de nada comer senão o que foi semeado e colhido com as próprias mãos. Porém, certo mal-entendido encontra-se no fundamento disso, pois o indivíduo, justamente devido à sua condição de rico e poderoso, pode prestar ao todo da sociedade humana um serviço bastante significativo, de forma a compensar a riqueza herdada, cuja segurança agradece à sociedade mesma. Propriamente falando, a justiça excessiva desses hindus é mais que justiça, a saber, já é efetiva renúncia, negação da Vontade de vida, ascese, da qual falaremos por último. Por outro lado, viver sem fazer nada, servindo-se das forças de outrem em meio à riqueza herdada e sem realizar coisa alguma, já pode ser visto como algo moralmente injusto, embora segundo as leis positivas tenha de permanecer como algo justo. [MVR1: §66]