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Rosset (2014) – alegria

quarta-feira 23 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

  

Uma das marcas mais certas da alegria é, para usar um termo que tem ressonâncias infelizes em muitos aspectos, seu caráter totalitário. O regime da alegria é o de tudo ou nada: não há alegria que não seja total ou zero (e eu acrescentaria, antecipando o restante de minhas observações, que não há alegria que não seja total e, de certa forma, zero). A pessoa alegre certamente se alegra com isso ou aquilo em particular; mas se a questionarmos mais a fundo, logo descobriremos que ela também se alegra com essa outra coisa e com aquela outra coisa, e com essa outra coisa e com aquela outra coisa, e assim por diante ad infinitum. Sua alegria não é particular, mas geral: ela é “alegre em todas as alegrias”, omnibus laetitiis laetum, como diz um amante realizado em uma peça do dramaturgo latino Trabéa, citada em parte por Cícero. Uma declaração perspicaz, embora não saibamos nada sobre o contexto em que foi escrita. O que ela sugere pode ser resumido da seguinte forma: na alegria, há um mecanismo de aprovação que tende a ir além do objeto específico que lhe deu origem para afetar qualquer objeto, levando a uma afirmação da natureza jubilosa da existência em geral. Assim, a alegria aparece como uma espécie de aprovação cega concedida a tudo e a qualquer coisa, como uma aprovação incondicional de toda forma de existência, presente, passada ou futura.

A consequência curiosa desse totalitarismo é que uma pessoa verdadeiramente alegre é paradoxalmente incapaz de especificar o que a alegra ou de dar um motivo específico para sua satisfação. Pois, nesse ponto, ela teria muito a dizer em geral, enquanto não encontraria nada para alegar em particular. [...] Mas também não há o suficiente para dizer: pois sua alegria não pode ser recomendada por nenhum fato específico, por um lado, por causa do princípio que proíbe que o elogio geral seja baseado em um único fato e, por outro lado, pela simples razão de que não há, em qualquer caso, nenhum objeto a partir do qual possa se recomendar, pois isso invariavelmente cede ao efeito corrosivo da análise e da reflexão. Não há bem no mundo que um exame lúcido não revele, em última análise, como irrisório e indigno de atenção, nem que seja em consideração à sua constituição frágil, ou seja, sua posição tão efêmera quanto minúscula na infinidade do tempo e do espaço. O estranho é que a alegria permanece, embora suspensa no nada e desprovida de qualquer fundamento. [...]

Notar-se-á imediatamente — e essa é a primeira das três objeções que gostaria de responder antes de prosseguir — que esse tipo de “vague à l’âme” de alegria, definido dessa forma, corresponde termo a termo ao que é seu exato oposto: a vague à l’âme romântica, que se inclina para a melancolia e a tristeza. Não seria suficiente protestar aqui que essas são duas disposições mentais diferentes e diametralmente opostas. Pois a semelhança formal é tão óbvia que obriga a atenção: assim como o homem alegre é incapaz de dizer por que está alegre ou o que o faz feliz, o melancólico é incapaz de dizer por que está triste ou o que lhe falta — exceto repetir com Baudelaire que sua melancolia é sem fundo e que o que lhe falta não está no registro das coisas existentes. Mas se o mundo como um todo é tão indescritível quanto o conjunto de coisas situadas em qualquer lugar fora do mundo, como diz Baudelaire, ele é, no entanto, diferente em um aspecto importante, que é, obviamente, sua existência. Daí a diferença fundamental entre o vago romântico e o vago alegre: o primeiro falha em descrever o que não é, o segundo em descrever o que é. Em outras palavras, a alegria sempre tem que lidar com a realidade, enquanto a tristeza está constantemente lutando com o irreal, que é seu próprio infortúnio. Montherlant ilustra muito bem essa verdade primária quando escreve, em Pitié pour les femmes: “Veja, só há uma maneira de amar as mulheres, e é com amor. (...) Todo o resto, amizade, estima, simpatia intelectual, sem amor é um fantasma, e um fantasma cruel, porque são os fantasmas que são cruéis: com realidades sempre se pode resolver alguma coisa.

A segunda objeção é que, como geralmente pensamos, a alegria não consiste em uma alegria desprovida de motivo e que opera em uma espécie de “vácuo”, mas na satisfação de uma expectativa específica, na obtenção de um objeto cobiçado e definido. Como poderíamos estar felizes por nada, alegres por nada? Devemos observar, no entanto, que esse caso, por mais raro e extraordinário que possa parecer, está longe de ser isento de exemplos: há acessos de alegria independentes de qualquer causa, explosões de euforia perfeitamente incompatíveis com o pensamento consciente quando este não encontra nada para decifrar em seu horóscopo pessoal além de motivos para tristeza e desânimo. [...]

O fato é que, obviamente, a alegria atual está mais frequentemente ligada a uma causa, a um motivo de satisfação. [...] No entanto, se é certo que um motivo de satisfação pode provocar alegria, assim como uma oportunidade pode fazer um ladrão, de acordo com o ditado popular, não se segue necessariamente que a alegria assim obtida se esgote na circunstância feliz que a provocou. É um pouco como aquelas brigas de família em que a hostilidade aberta que leva a uma crise, como uma disputa por uma herança, apenas traz à tona um acúmulo de ódio que existia antes do confronto direto e que continuaria a existir sem ele, protegido por polidez e protestos de amizade. Costuma-se dizer que eles passaram a se odiar por causa de dinheiro. Mas a verdade é o oposto: eles entraram em conflito por causa do dinheiro porque se odiavam. Não é o problema do dinheiro que causa o ódio, mas o ódio que causa o problema do dinheiro. Da mesma forma, o acúmulo de amor no qual consiste a alegria é basicamente alheio a todas as causas que o provocam, mesmo que às vezes se manifeste apenas por ocasião desta ou daquela satisfação específica. É por isso que podemos falar aqui, mesmo que a expressão pareça ofender a lógica, de uma causa inferior ao seu efeito: a causa sendo, por assim dizer, não a produtora, mas simplesmente a reveladora de um “efeito”, ou melhor, de um fato, preexistente a ele. Nesse ponto, temos de aceitar o que Spinoza   diz na Ética: o único afeto é a alegria (e seu oposto, a tristeza); qualquer outro afeto é meramente uma modificação desse afeto primário, na medida em que está sujeito aos caprichos do acaso e da fortuna. Assim, o amor por alguém, que Spinoza define como a simples interferência da alegria e do outro: “o amor é alegria, acompanhada da ideia de uma causa externa”. Da mesma forma, como sabemos, o ódio é a tristeza acompanhada da ideia de uma causa externa.

[...]

Uma terceira objeção, aparentemente mais preocupante do que as duas anteriores, pode ser dirigida à definição de alegria como regozijo universal: a própria ideia de se mover em direção ao universal é suspeita por sua própria natureza, comparável como é ao processo de fanatismo e proselitismo, de acordo com o qual uma crença é reivindicada por seu seguidor somente se estiver, de acordo com ele, em posição de obrigar todos os homens ao mesmo tempo. [...] Em suma, a doutrina que o totalitarismo recomenda é como um espaço vazio que só pode ser preenchido e “mobiliado” por uma admissão geral, nunca perfeitamente realizada, por parte dos outros; enquanto a alegria é uma plenitude que é autossuficiente e não precisa de nenhuma contribuição externa para ser.


Ver online : Clément Rosset


ROSSET, Clément. La Force majeure. Paris: Les Éditions de minuit, 2014 (epub)