Página inicial > Modernidade > Clément Rosset > Rosset (1970:25-28) – crença

Rosset (1970:25-28) – crença

sexta-feira 15 de março de 2024, por Cardoso de Castro

  

[...] nada é tão invencível quanto aquilo que não existe. Os mais profundos analistas da crença concordam em reconhecer a impossibilidade de defini-la. A sina habitual de uma crença é não somente proporcionar razões para crer, como ser paupérrima em definições de sua própria crença: sabe sempre dizer porque crê, mas nunca aquilo em que precisamente crê. Além do mais, o grande inimigo da crença não é a “verdade” (que os incrédulos opõem frivolamente a ela), mas a precisão.

Samuel Butler declara: “Não me incomoda a mentira, mas detesto a imprecisão.’’ [1] Fórmula que poderia servir de lema ao artifício (sendo também o lema de todo artista) e de acusação filosófica à ideia de natureza — radicalizando um pouco os termos: detesto a imprecisão porque ela mente; só a mentira diz sempre a verdade (a mentira, isto é, a palavra precisa, porém proferida independentemente de todo referencial de verdade: mentirosa porque indiferente ao verdadeiro, que exprime uma resistência muito honesta frente às miragens da “verdade”). Só existe mentira por omissão (por “imprecisão”): por definição, o que se diz é sempre verídico, dá-se por aquilo que é; só engana o que não é dito, ao oferecer a imprecisão de um dizer à possibilidade de uma representação confusa. Com mais exatidão, a palavra precisa — seja “verídica” ou “mentirosa” — não possui continuidade nem consequência para a atividade intelectual em seu conjunto: no máximo pode engendrar um erro de fato. A palavra imprecisa, ao contrário — sempre mentirosa, e por omissão —, proporciona um ponto de apoio à representação das ideias: pode ser utilizada numa rede de relações ideais que encontrará sua coesão e sua justificação nessa argamassa imaginária; a vacuidade do termo de base proporciona tanta flexibilidade que inclui os elementos mais díspares em um sistema. Por isso, as produções ideológicas, no sentido dado por [25] Marx   ao termo, alimentarem-se mais de imprecisão do que de erro: pois o silêncio, por omissão, é prolixo (engendra uma proliferação de representações e palavras em torno de um centro ocupado pelo seu silêncio), enquanto a mentira, por precisão, é silenciosa (fala sua palavra, porém nada mais que sua palavra: em torno de sua fala solitária, tudo é silêncio). Desta maneira distinguem-se duas grandes formas de silêncio, que poderíamos denominar, respectivamente, silêncio da ideologia e silêncio do ceticismo. O primeiro é tão impreciso e prolixo quanto o segundo é preciso e silencioso: um, se cala em relação a um único enunciado, mas produz, a partir desse silêncio, um rumor ideológico de indefinida amplitude; o outro, o silêncio cético, ainda que se esmere ao pronunciar sua única proposição, não a vincula a nenhum princípio mais geral, e abandona seu dizer a um silêncio ideológico que caracteriza sua moderação filosófica. Racionalismo (atenção à ideia, indiferença ao detalhe) e empirismo (atenção ao detalhe, indiferença à ideia) são as expressões epistemológicas mais gerais destas duas formas de silêncio — as proposições singulares enunciadas pelo empirismo podem, com toda evidência, referir-se a conjuntos de fatos (leis), considerados em si mesmos como “fatos” isolados, em razão da ausência de sistema no qual possam ser integrados.

A ideia de natureza pertence à primeira forma de silêncio: silêncio prolixo e impreciso. Constitui não um erro (pois para ser falso necessita primeiro ser), mas uma miragem, isto é, uma ilusão, no sentido dado ao termo por Freud   em O futuro de uma ilusão. Ao erro, que implica uma neutralidade efetiva, opõe-se a ilusão, que antes de ser um jogo de conceitos é um jogo do desejo: “uma ilusão não é a mesma coisa que um erro, tampouco uma ilusão é necessariamente um erro (...) O que caracteriza a ilusão é o fato de ser derivada dos desejos humanos” [2]. Ao analisar a crença, Freud manifesta uma penetração crítica que se inscreve numa tradição anti-socrática e antiintelectualista, ilustrada principalmente pelas análises de Lucrécio  , Montaigne, Hume   e Nietzsche  : o homem não se engana porque ignora, mas porque deseja. Ou ainda, com mais profundidade, o homem que se ilude não se engana: as promessas [26] do desejo nunca se aventuram a constituir uma expressão precisa que poderia ser intelectualmente refutada. Por conseguinte, o homem de desejo nunca se engana, pois falta-lhe precisão e conteúdo: essa falta, não de crença, mas de objeto de crença, é precisamente o que define a especificidade da crença e lhe assegura a invulnerabilidade. Invulnerabilidade indiferente a qualquer confirmação ou invalidação por parte da experiência, já que a ilusão, através da não-determinação do que deseja, situa-se fora do alcance de ambas. Freud invoca dois exemplos de ilusão que ilustram perfeitamente indiferença da ilusão à verdade ou ao erro: “Qualifica-se de ilusão a afirmação de alguns nacionalistas de que as raças indogermânicas seriam as únicas capazes de cultura ou, melhor ainda, a crença de que a criança seria um ser desprovido de sexualidade, crença destruída pela primeira vez pela psicanálise” [3]. Nos dois casos, a ilusão não se sustenta diante do exame intelectual: a superioridade indogermânica e a pureza infantil constituem temas simultaneamente vagos em suas afirmações e indiferentes aos fatos (os quais somente poderiam ser invalidados, se os temas tivessem sido precisados). O segundo exemplo é particularmente ilustrativo, pois sendo a sexualidade infantil um fato evidente no cotidiano, o que aliás Freud sempre ressaltou, nunca foi segredo para ninguém; apesar de ter sido a psicanálise que pela primeira vez a anunciou — e seria também excesso de otimismo declarar com Freud que a crença na pureza infantil foi “destruída” pela psicanálise: no máximo pode-se esperar que as manifestações diretas dessa ilusão abandonem progressivamente alguns discursos de tipo científico; contudo, como crença, não parece que venha a correr grandes riscos por parte da psicanálise. Na ilusão, o desejo basta a si mesmo: não espera nenhum apoio da experiência. A “autarquia” da ilusão explica um fenômeno bastante corrente e, no entanto, aparentemente por demais desconcertante: o fato de haver surpresa quando a experiência confirma o que existia como crença — surpresa que mostra, claramente, a que ponto a crença está disposta a prescindir dessa supérflua confirmação, transcendendo assim a toda verdade ou realidade. Freud, sempre em O futuro de uma ilusão, conta a esse respeito uma anedota, “um incidente [27] realmente curioso”: “Sendo já homem maduro, encontrava-me pela primeira vez em Atenas, sobre a colina da Acrópole, entre as ruínas dos templos, olhando ao longe o mar azul. A minha alegria misturava-se com um sentimento de espanto, que me levava a dizer para mim mesmo: ‘Então as coisas são verdadeiramente tais quais nos ensinavam na escola! Quão superficial e fraca deve ter sido a crença naquilo que ouvira, para que hoje possa estar tão surpreso!’.” [4]. Tal surpresa é possível quando um tema intelectual combina-se com um desejo, como na anedota contada por Freud, na qual se combinam um conhecimento aprendido na escola e o objeto de cobiça ulterior que investiu desejo num tema que inicialmente apenas era intelectual. Espanta-se porque encontra na realidade a confirmação de um desejo, ao descobrir um desejo arremedando — uma só vez não forja um hábito — um objeto real. Em geral, ocorre diferentemente: a crença não espera nenhuma confirmação da experiência, e com razão, uma vez que na crença não existe nenhuma ideia que possa ser intelectualmente confirmada. Por isso a crença é, do ponto de vista intelectual, superficial e fraca, mas, também e na mesma medida, do ponto de vista do desejo, inextirpável e com um poder absoluto.


Ver online : Clément Rosset


ROSSET, Clément. A Antinatureza. Elementos para uma filosofia trágica. Getulio Puell. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1970


[1“I do not mind lying, but I hate inaccuracy” (Samuel BUTLER’S, Notebooks, Ed. G. Keynes & B. Hill, 1951, p. 314).

[2L’avenir d’une illusion, trad. Marie BONAPARTE, Presses Universitaires de France, 1971, p. 44.

[3Ibid., p. 44.

[4Ibid., p. 36.