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Rosset (1967) – Querer [Wille] em Schopenhauer

quarta-feira 23 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

  

É claro que nunca entenderemos a natureza das forças que reinam no mundo. Mas isso não significa que não possamos descrever essas forças ou até mesmo, de certa forma, conhecê-las. É aí que entra a famosa teoria da Vontade de Schopenhauer  , que o levou a caminhos novos e até então proibidos.

Até que ponto, e de que maneira, podemos penetrar nessa terra incógnita, da qual as representações causais só dão uma imagem externa? Como podemos compreender “por dentro” uma motivação que parecia condenada a permanecer impenetrável? Esse momento essencial na filosofia de Schopenhauer, essa intrusão no desconhecido, já foi esboçado em seu ensaio de 1813. Analisando a “quarta classe de objetos”, que se relaciona com as ações do “eu querente”, Schopenhauer observa que a experiência íntima de nossa própria vontade nos permite compreender de relance uma força motivadora que, em todos os outros casos, permanece obscura para a consciência: “Não saberíamos mais nada sobre os movimentos e as ações dos animais e dos homens, e também os veríamos provocados por suas causas (motivos) de uma maneira inexplicável, se o acesso não nos fosse aberto para chegar a uma compreensão do que está acontecendo dentro de nós: sabemos, de fato, pela experiência íntima feita de nós mesmos, que o que está acontecendo ali é um ato de volição, provocado por um motivo que consiste em uma simples ideia. A influência do motivo é, portanto, conhecida por nós não apenas externa e mediatamente, como a de todas as outras causas, mas ao mesmo tempo interna, imediata e consequentemente em toda a extensão de sua ação. Aqui nos encontramos, por assim dizer, nos bastidores, e penetramos no mistério de como, de acordo com sua essência íntima, a causa produz o efeito” [1]. Esse é o privilégio de que desfrutamos quando questionamos os movimentos de nossos corpos: enquanto no caso da queda de uma pedra ou do gesto de um animal somos estranhos ao que está acontecendo, no caso de nossos gestos experimentamos a motivação pessoalmente. Essa é a única maneira de desvendarmos o mistério da motivação oculta que preside todas as relações de causa e efeito e que sentimos estar presente em todas as forças naturais. A motivação pode então ser surpreendida como se estivesse “em ação”. A que outra experiência podemos recorrer para penetrar no desconhecido? A experiência da própria vontade, que preside a atividade, será a única maneira de entrar: “Será uma espécie de caminho subterrâneo, uma comunicação secreta que, por meio de uma espécie de traição, nos introduzirá subitamente na fortaleza contra a qual todos os ataques de fora falharam” [2].

É lógico que Schopenhauer, levado ao mistério pela profunda impenetrabilidade de todas as relações causais, venha a dar tanta importância ao conceito de vontade. Isso porque a experiência de nossa própria vontade é o único domínio em que a intuição da força natural é acessível ao nosso espírito e se torna um objeto de experiência. Não que essa experiência finalmente torne a força inexplicável explícita, mas que a torne subitamente próxima e presente. Como diz Schopenhauer, ela a torna visível, não clara: é a “visibilidade” do inexplicável [3]. Meu corpo”, continua ele, ‘nada mais é do que minha vontade tornada visível’ [4]. O gesto da mão em direção ao copo de repente dá acesso direto ao mistério de todas as forças que governam o universo; a força que impulsiona a bebida e move o braço é um raro exemplo de motivação da qual podemos estar diretamente conscientes. “O conceito de vontade é o único de todos os conceitos possíveis que não se origina no fenômeno, em uma simples representação intuitiva, mas vem das profundezas, da consciência imediata do indivíduo, na qual ele reconhece a si mesmo, em sua essência, imediatamente, sem qualquer forma, mesmo a de sujeito e objeto, uma vez que aqui o conhecimento e o conhecido coincidem” [5]. É nessa experiência íntima da própria vontade que se baseia a teoria da vontade de Schopenhauer. Uma manifestação da vontade, uma vez que atinge a consciência no momento em que se manifesta, é como uma “imagem” isolada de todas as forças complexas que governam o mundo.

Uma das causas mais imediatas da incompreensão de Schopenhauer está no próprio termo vontade, que geralmente é usado para traduzir a noção alemã de Wille. Como P. Godet, na introdução de seu livro de extratos de Schopenhauer [6], é preferível traduzir Wille como Querer, em vez de vontade, a fim de chamar a atenção do leitor para o uso incomum e muito amplo de uma noção que vai muito além de qualquer coisa normalmente compreendida pela ideia de vontade, que sempre pressupõe um elemento de consciência, ao passo que a Wille schopenhaueriana engloba todas as forças do mundo e da natureza, sejam elas conscientes, semiconscientes, inconscientes ou até mesmo totalmente cegas, como no caso da pedra que cai. A noção de energia moral, por exemplo, é totalmente estranha à ideia schopenhaueriana de Querer. Aqueles que possuem uma “vontade forte” são tão determinados, à sua maneira, pelo Querer, quanto aqueles que são indecisos. Aqui, como tantas vezes em outros lugares, Schopenhauer era um pobre “nomeador [nommeur]”, e o poder revolucionário do tema estava escondido sob a bagagem conceitual tradicional. A “vontade” de Schopenhauer não é precisamente “querida”: não é premeditada, não é inteligente, não é consciente, mas instintiva e inconsciente.

Portanto, é importante entender o Querer em seu caráter global, apreendida na intuição de sua unidade e identidade. “Não é apenas nos fenômenos muito semelhantes aos seus, nos homens e nos animais, que ele [o homem] encontrará, como essência íntima, essa mesma vontade; mas um pouco mais de reflexão o levará a reconhecer que a universalidade dos fenômenos, tão diversos para a representação, tem uma única e mesma essência, a mesma que lhe é íntima, imediata e melhor do que qualquer outra conhecida, aquela que, em sua manifestação mais aparente, leva o nome de vontade. Ele a verá na força que faz a planta crescer e vegetar e o mineral se cristalizar; que direciona a agulha magnetizada para o norte; na concussão que ele sente ao entrar em contato com dois metais heterogêneos...” [7]. Em contraste com o “panlogismo” hegeliano, o “panteísmo” schopenhaueriano foi corretamente mencionado. Não apenas tudo é Querer, mas há apenas um e o mesmo Querer, presente quando a pedra cai, presente quando o indivíduo se propõe a obter satisfação. Todos os fenômenos espalhados pela natureza, tanto a atração dos corpos celestes quanto a vontade e as aspirações do indivíduo, representam muitas partes de um único e mesmo Querer, assim como todas as células do organismo estão a serviço dessa entidade indivisível que é o corpo. Isso não significa que todos os indivíduos sejam iguais; pelo contrário, Schopenhauer frequentemente insiste no caráter nativo e irredutível das diferenças humanas; mas todos os indivíduos participam, cada um à sua maneira, de um Querer idêntico.


Ver online : Clément Rosset


ROSSET, Clément. Schopenhauer, philosophe de l’absurde. Paris: PUF, 1967 (ebook)

REFERÊNCIAS:

  • Q. R. – De la quadruple racine du principe de raison suffisante, trad. J. — A. CANTACUZÈNE, Paris, Libr. Germer Baillière, 1882.
  • Monde – Le monde comme volonté et comme représentation, trad. A. BURDEAU, nouv. éd. rév. et corr. par R. Roos, P. U. F., 1966
  • L. A. – Essai sur le libre arbitre, trad. S. REINACH, Alcan, 1877.
  • F. M. – Le fondement de la morale, trad. A. BURDEAU, Libr. Germer Baillière, 1879…

[1Q. R., p. 282.

[2Monde, 890.

[3Monde, 184.

[4Monde, 149.

[5Monde, 154.

[6La pensée de Schopenhauer, Payot, p. VII.

[7Monde, 152.