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Grassi : A demonstração como essência do conhecimento

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

  

4. A demonstração como essência do conhecimento: linguagem apodítica. A natureza indemonstrável dos princípios: linguagem semântica

Agora, outra pergunta faz-se necessária: como alcançamos o conhecimento e, com isso, o "em-si" dos fenômenos? Será somente através de um processo pragmático? Ou apenas pela tentativa de enfrentar pragmaticamente as coisas? Que papel desempenha o "logos", a palavra, o sinal audível?

Em última análise, o conhecimento não pode ser adquirido pragmaticamente, pois a validade "final" das nossas ações, e o correspondente conhecimento das coisas que tem lugar através da tentativa de enfrentar essas mesmas coisas, depende das metas a que nos propomos. A definição da objetividade das metas, no entanto, não pode ser derivada do sucesso na consecução de qualquer uma delas.

Um exemplo será suficiente para explicar isto: o homem pode se propor finalidades técnicas e, pelo fracasso ou sucesso de suas ações, aprender se seu método foi objetivo ou subjetivo e, portanto, errado. Mais uma vez, no entanto, a validade da meta a que ele se propôs — toda a organização do moderno mundo técnico, pragmático — não pode depender da consecução da finalidade técnica, mas da concepção do ser humano que dá sentido a esse mundo técnico. Evidentemente, no entanto, a concepção do ser humano não pode absolutamente ser meramente derivável da conquista de metas. Em outras palavras: a objetividade da meta é o requisito de toda ação objetiva e não pode, portanto, tornar-se dependente de sucesso ou fracasso. Por isso o pragmatismo nunca poderá elevar-se ao nível da filosofia.

Consequentemente afirmamos que sabemos algo quando o podemos provar. Provar em grego: "apodeíknymi" - significa mostrar algo como algo, com base em algo (apo-deiknymi). Aquilo, através do que algo é mostrado e explicado como algo, é o fundamento do nosso conhecimento, o que os gregos chamam arche, "princípio", "axioma". O discurso apodítico, demonstrativo, é o tipo de discurso que prova a definição dos fenômenos, atribuindo-lhes princípios finais.

É claro que os primeiros princípios de qualquer demonstração e assim do próprio conhecimento não são demonstrados porque não podem ser o objeto de discurso apodítico, demonstrativo e lógico; do contrário, não seriam primeiros princípios. O seu caráter não derivável, primeiro, se evidencia pelo fato de que não podemos falar, nem nos comportar sem esses princípios, pois tanto o discurso quanto o comportamento simplesmente os pressupõem. Se os princípios forem indemonstráveis, aceitamo-los então como elementos de fé?

A natureza original dos primeiros princípios é explicada por Aristóteles na sua Metafísica, através dos princípios de contradição, da identidade e do terceiro excluído; eles não podem ser negados; eles se impõem, e qualquer tentativa de negá-los ou de libertar-nos deles, novamente os pressuporia. Estamos firmemente acorrentados a eles como Prometeu à sua rocha e, como ele, expostos a qualquer ataque. Não é por acaso que falamos em "estar expostos", pois Aristóteles afirma que os primeiros princípios não podem ser provados — eles não tem caráter apodítico; a sua natureza primeira mostra-se pelo fato de ser impossível escapar-se-lhes. Por esse motivo Aristóteles lhes atribui um caráter "elênquico". "Elénchein", na linguagem pré-filosófica, significa acorrentar alguém ao pelourinho de tal forma que não consiga libertar-se; assim a vítima permanece exposta à chacota da multidão.

Com isto, podemos chegar a conclusões bem definidas do nosso problema:

Como vimos, em De anima (II, 8) e em De interpretatione, Aristóteles menciona dois fatores para definir o discurso humano: ele interpreta (hermêneúein) e refere-se a algo (sêmaínein). Se nos perguntarmos qual é a relação entre interpretação e referência, parece que seremos obrigados a admitir que somente quando algo puder ser interpretado como tal ou qual, é que será representativo de tal ou qual. Mesmo a referência a algo que não tenha sido interpretado é uma interpretação. Assim sendo, a interpretação precede a referência.

Mas, no que, em última análise, consiste o processo de interpretação? Evidentemente é a revelação da causa através da qual os fenômenos são determinados. O processo de elucidação é volta em busca das causas; é discurso demonstrativo, apodítico, independente da demonstração ser feita através de silogismo, isto é, dedução lógica, ou através de entimema ou, ainda, de discursos patéticos, retóricos.

Mas quando as causas primeiras — os próprios princípios — não podem ser demonstradas quando não podem ser obtidas por qualquer processo de dedução, somos forçados a reconhecer o fato de que elas se revelam: a) por si próprias e b) por sua necessidade e validade universal (no sentido da sua natureza absoluta e incondicional). Aristóteles define: "Se o conhecimento é como o afirmamos, então o que leva ao conhecimento demonstrável deve sempre, necessariamente, ser: a) verdadeiro, b) primeiro, c) direto, d) conhecido, e) anterior ao que está sendo provado, e finalmente, f) o motivo causal da dedução".

Imediatamente esclarece: "chamo de tese à espécie de sentença inicial direta, cujas conclusões, que não podem ser por si só demonstradas, mas que a pessoa que deseja aprender, não precisa necessariamente possuir a priori, ao passo que denomino axioma a espécie de sentenças que o aprendiz já deve possuir antecipadamente".

Isto quer dizer que nos axiomas, nos princípios, a relação entre hermêneúein e sêmaínein é oposta àquilo que até agora supomos. O discurso hermenêutico, cujas raízes se encontram na demonstração, não pode ser a forma de expressar um axioma, pois este, com a sua validade necessária e universal é, em si, não demonstrável, mas inteiramente indicativo. Apenas o caráter indicativo dos axiomas é que torna possível sua demonstração; a prova que leva à "hermèneía", à interpretação, é baseada no caráter indicativo dos axiomas.

A indicação ou alusão (sêmaínein) leva, assim, ao processo de interpretação (hermêneúein), pois fornece a moldura dentro da qual a demonstração pode passar a existir. O princípio indicativo, assim como o princípio necessário e universalmente válido pode, portanto, ser definido como o que é imediatamente claro, pois todo esclarecimento é baseado nele. Consequentemente, existe uma clareza que não é o resultado de esclarecimento. Se racionalismo é identificado com o processo de esclarecimento, somos forçados a admitir que a clareza primeira dos princípios não é racional.

Além disso, o conhecimento ou a explicação de algo através da revelação de sua causa constitui um processo que é, como tal, necessariamente de natureza temporal, pois tal como algo que aconteceu, ele é um fenômeno histórico que passou por diversos momentos no tempo. A causa primeira, o princípio, no entanto, revela-se instantaneamente (exaíphnês); não se encontra contida no tempo histórico; é a origem e o critério do movimento do processo racional de esclarecimento e, portanto, desta época deste acontecimento. Na sua Epístola VII, Platão diz: "... pois se (o primeiro princípio) não pode absolutamente ser dito com palavras, tal como outras formas de conhecimento, mas em virtude de longa ocupação com um objeto e apreensão do seu espírito, é como se, através de uma centelha que salta do fogo, uma luz começasse repentinamente a iluminar (exhaphthèn phôs) a alma e a partir daí, recebesse alimento por si só". Se a essência da palavra consiste em interpretação e referência — se, além disso, o discurso que expressa o original, o primordial, deve ser puramente semântico, pois é somente por ele que o processo hermenêutico se torna possível — como poderíamos diferenciai os dois tipos de linguagem totalmente diferentes simplesmente através da terminologia? As estruturas das duas, como o dissemos repetidamente, são essencialmente diferentes; a linguagem racional é dialética, medidora e demonstrativa isto é apodítica; a linguagem semântica é imediata, não-demonstrável, iluminadora, puramente indicativa, W. P. Otto, no seu tratado sobre a linguagem, distingue duas expressões gregas para o discurso: "Logos significa o discurso refletido, ou seja: o correto. Correção existe sempre num determinado contexto e em certas condições. O mito originalmente representa. . . discurso incondicionalmente válido, que fala sobre o que é. Portanto, o mito lida primeiramente com coisas divinas que não exigem prova, mas são dadas ou reveladas diretamente".

Parece evidente que a palavra originária, imediata, a-histórica, semântica, é a palavra do mito; e que ela pertence ao mundo sagrado, religioso, enquanto que a palavra mediadora, passo-a-passo, demonstrativa e que dá provas (apodítica), corresponde ao "logos". Assim podemos, na realidade, concluir dizendo que o mito é o fundamento do "Logos", ou que o mundo alusivo é o fundamento do mundo demonstrativo; que demonstra uma insuficiência de linguagem, pois em sua forma racional ela não é capaz de expressar o primordial. Agora nos achamos em condições de compreender o significado de uma sentença de Heráclito que, no início da tradição ocidental, expressava aquilo que se teve tanto trabalho em desenvolver aqui: "O Senhor, a quem pertence o Oráculo de Delphos, nada diz e nada esconde; ele indica, ele mostra".


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