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Grassi : As aporias da linguagem: som, voz animal, palavra: a experiência da objetividade

quarta-feira 23 de março de 2022, por Cardoso de Castro

  

O desenvolvimento multi-facetado do homem, que inclui o conhecimento racional, é atestado pela palavra, principalmente pela palavra poética, numa vasta gama de projetos possíveis. Nossa referência ao que foi dito por artistas tem por finalidade descrever por que meios tentaram eles alcançar a objetividade, através de cuja moldura e tensão o ser humano alcança aos poucos o conhecimento.

Referimo-nos à "abertura ao mundo" do homem que, por um lado, age como premissa para os possíveis projetos, por cujos meios ele interpreta e portanto ordena o mundo humano mas que, por outro lado, dá margem a perguntas que podem ser englobadas na palavra (lógos).

Inicialmente o termo "logos" (légein) não possuía um significado filosófico especial, na sua forma verbal significa "colecionar", "selecionar". Como se pode, na linguagem, unir, ligar ou escolher dentre o que está relacionado entre si e separar o que não está, a fim de delimitá-lo? Poderia a causa primeira desse "colecionar" ou "juntar" — que, devido à sua natureza primária, nunca pode ser o resultado de um processo de seleção — ser algo que não pode ser expresso pelo "légein"? por palavras? Seria possível que como princípio, como arché, como regra dominante, somente se manifestasse por sinais e imagens primordiais e não pela linguagem? Representariam tais sinais primordiais a realidade que existe escondida "além" da realidade empírica, cotidiana, sobre a qual os artistas falaram?

Comecemos por algumas observações gerais. A palavra (lógos) escrita e falada, principalmente hoje em dia, nos parece intercambiável. Nossa era cultua a palavra escrita; nunca a escrita teve predominância tão espantosa. A fascinação que ela exerce é tanta que vem provocando a constante desvalorização da palavra falada. Isto explica, por exemplo, a moderna falta de compreensão para com a arte da retórica, à qual atribuímos mero significado histórico, devido ao seu papel na Antiguidade. Ainda hoje o veredicto de Descartes   (ao qual deveremos voltar mais tarde) tem peso: "Dou grande valor à eloquência. . . Mas. . . aquele que tiver a mais penetrante inteligência e que melhor desenvolver seus pensamentos para torná-los claros e inteligíveis, pode ser sempre mais persuasivo na sua exposição, mesmo que fale somente em dialeto e nunca tenha aprendido Retórica"19.

Esta concepção reduz a personalidade do orador, sua paixão e sua atitude, à trivialidade, no que tange à sua expressão através da palavra falada. Assim caberia ao orador pronunciar discursos formulados de maneira estritamente lógica, de forma que a palavra falada expressasse apenas o que pudesse ser escrito, certamente e com maior precisão. As culturas gregas e romanas não conheciam a idolatria da palavra puramente racional em contraposição ao discurso retórico, ou da linguagem escrita em relação a falada. Tentaremos descrever o fenômeno da linguagem, descobrir suas dificuldades e seus dilemas, e delinear a estrutura das nossas discussões com referência à questão dos "sinais" e "imagens".

Duas teses contraditórias sobre a essência da linguagem se confrontam na tradição ocidental. A primeira nega o caráter "natural" (physei) das línguas; segundo essa tese, a sua diversidade faz com que pareça o resultado de uma "convenção", de um "acordo" (nómos) entre os homens. Seguindo o desenvolvimento histórico variado dos povos, foram sendo dados nomes às coisas com base em acordos humanos, o que explica as diferenças entre as línguas.

Este ponto de vista, naturalmente, enfrenta a dificuldade de responder como o acordo sobre o dar nome às coisas poderia ter sido conseguido sem a posse inicial da linguagem. A dificuldade foi contornada pela afirmação de que os nomes das coisas consistiam de elementos sonoros (vogais, labiais, dentais, nasais etc), que poderiam ser considerados como a expressão de sensações bastante elementares, tais como as de dor, alegria, medo ou humor. Essas sensações elementares e suas respectivas expressões ou sinais fonéticas constituiriam, portanto, o requisito para a compreensão mútua necessária a qualquer estabelecimento "convencional" dos nomes das coisas. Foi assim que seres humanos pertencentes a nações diferentes foram capazes de encontrar um meio convencional comum para a expressão das coisas.

Mas é exatamente com base neste argumento que a concepção da linguagem, como o resultado de um acordo e, portanto, não como algo "natural", passa para a tese oposta: — Se sons correspondem a sensações elementares, a linguagem assume justamente um caráter "natural" e não, "convencional". As diferenças entre as línguas poderiam ser explicadas presumindo que povos diferentes reagiram às mesmas sensações elementares com sons diferentes. Neste sentido a linguagem "natural" seria a linguagem "verdadeira" e toda linguagem artificial que se afastasse da natureza, seria "falsa".

Mas é admissível falar de sons "verdadeiros" e "falsos" e dos consequentes substantivos, adjetivos e verbos, dos quais alguns revelam a essência das coisas (expressão verdadeira), enquanto outros as ocultam (expressão falsa)? Verdade e erro, na realidade, só ocorrem no julgamento e, como diz Aristóteles, estão "ligados a conexão e separação". "Substantivos e verbos," — continua ele — "em si mesmos, são apenas iguais à ideia que transmitem, sem conexão ou separação como, por exemplo, as palavras ’homem’ ou ’sabe’; se nada lhes é acrescentado não existe nelas erro nem verdade."

Verdade e erro aparecem apenas na sentença — isto é, numa sentença que esteja sendo julgada — baseados nos elementos anteriores da fala. Como é possível, nesse caso, falar da "verdade" natural ou da "falsidade" dos elementos da língua, de "sinais" audíveis ou visíveis e, se é impossível, qual poderia ser ainda o sentido de uma língua?

Reflexões como estas só podem levar a aporias.

As vozes animais, como também os sons da fala humana que são compostos de vozes animais, consistem de sons físicos. Em De anima, Aristóteles define o som (psóphos) como segue: "Dizemos que objetos como a esponja ou a lã são insonoros; que outros, como o metal e todos os corpos firmes e lisos, tem som pois têm a capacidade de produzir um som..." E aqui está a definição decisiva: "O som, no entanto, sempre surge como ruído, como o som de um objeto, em direção a algo e através de um meio".

Desta definição já podemos deduzir algo essencial: o som, o ruído é resultante de um movimento mecânico; mas para que o movimento mecânico seja transformado em som, é necessário que tenha lugar "entre" objetos que colidem e a audição — através de um meio, portanto. A audição, no entanto, é um órgão, um instrumento de vida; onde não há vida, não se pode falar em som ou em silêncio, mas só em movimento mecânico. Somente a relação com um órgão vivo é que cria a transformação essencial de um fenômeno (movimento, onda) em som. Aquilo, através do que o "de onde" (matéria que colide) e o "para onde" (órgão), por um lado, e por outro lado o "através" (meio) são tirados de sua natureza mecânica e transformados em algo novo; é a vida. Ao contrário do fenômeno mecânico, ela possui uma faculdade transformadora, transcendente.

Mas como, e acima de tudo, quando, continua a transformação de um som, de um tom, em um grito animal (phone). Aristóteles o define assim: "A voz é o ruído de um ser animado. Um ser inanimado não tem voz; somente por analogia é que lhe atribuímos uma voz: por exemplo, a uma flauta, a uma lira ou a qualquer outro objeto inanimado que tenha tonalidade alta e baixa, sequências de sons semelhantes a uma canção e escalas fixas; pois é nisso que está a sua semelhança com a voz".

Pode parecer inicialmente estranho que somente a diferença de causa (uma causa animada em lugar de uma inanimada) transforme um som em voz. Mas para chegar a uma definição final da voz, Aristóteles refere-se primeiramente à natureza interpretativa da voz: "A natureza transforma o ar que respiramos para duas finalidades -assim como ela usa a língua para gustar e para falar —, onde o gustar é uma necessidade obrigatória (anankaîon) e por isso é mais difundido, sendo, no entanto que o interpretar (hermêneía) tem por finalidade o bem e a perfeição (peri toû eû)".

A voz, naturalmente, não é apenas interpretativa mas também alusiva, semântica como o vemos na seguinte sentença: "pois nem todos os ruídos emitidos por um animal são vozes; pode-se produzir um som com a língua, como quando tossimos; é o elemento animado que deve realizar a vibração e deve haver uma ligação com a faculdade imaginativa, pois a voz é, de qualquer forma, um som alusivo".

Portanto, Aristóteles apresenta quatro fatores determinantes para a voz, como diferenciação do som: a) a causa do som deve ser um ser animado; b) o som produzido deve ser a interpretação de um fenômeno (hermêneía tinós); c) o som deve estar ligado à fantasia, à imaginação; d) finalmente, o som não deve ser apenas interpretativo mas, também, alusivo (sêmantikos psóphos).

Deixemos de lado o fator imaginativo. Tenhamos presente que um som de um animal se torna voz, quando este interpreta (hermêneúein) algo e assim se refere (sêmaínein) a algo. A voz tem assim, simultaneamente, um significado hermenêutico e semântico como, por exemplo, quando ele interpreta algo doloroso ou agradável e transmite isto com uma voz. Também aqui é verdadeiro o que dissemos a respeito das características dos padrões animais, ou seja, que a natureza hermenêutica ou interpretativa das vozes é inata nos animais, e não é o resultado de um processo individual de ensino ou aprendizado. Como as vozes dos animais se tornam elementos de fala, de "logos", no ser humano?

Dissemos que, para o animal, a interpretação inata dos fenômenos é essencial; é por isso que ele vive, desde o seu nascimento, num mundo ou numa ordem firmemente estabelecida, e as vozes que emite, interpretando fenômenos, lhe são inatos especificamente.

O homem, entretanto, não dispõe de um sistema inato de interpretação dos fenômenos, nem consequentemente da faculdade de aludir inequívoca e diretamente a fenômenos. Essa carência é uma característica de definição da diferença essencial entre a origem das vozes animais e os da fala humana. Posto que a fala humana não está fixada a padrões interpretativos ou alusivos estabelecidos, o próprio homem deve procurar e formar os elementos interpretativos e alusivos dos seus sons. Esta é a base do caráter histórico da linguagem humana; a linguagem acontece com o tornar-se e o desenvolvimento do homem, com a sua história.

Qual é a origem da interpretação humana de fenômenos através da qual sons vocais atingem significado humano e surge a linguagem? Pode o homem alcançar um "ser-em-si", um reconhecimento da "verdadeira" natureza das coisas e portanto falar "verdadeiramente", isto é, reveladoramente, e não "falsamente", isto é, obscura ou veladamente?

Ao contrário do que é comum na nossa era racionalista, a resposta à questão sobre a existência de um "ser-em-si", uma objetividade dos fenômenos (através do qual uma língua pode ser correta ou falsa) não é dada em primeiro lugar pela filosofia mas, pelo saudável bom senso. Pois a experiência diária mostra que as pessoas inteligentes conseguem lidar com as coisas ou "chegar ao seu âmago", enquanto que as não-inteligentes, justamente por não poderem ver senão as aparências das coisas, não atingem seu alvo. "Aparência" e "ser" não são idênticos. Como e por quais meios podemos experimentar, na origem, o "ser-em-si" das coisas, a fim de conhecer a premissa para a linguagem como interpretação e alusão? Em geral a objetividade é buscada na "eventualidade" abstrata e isolada das coisas, isto é, na sua alegada "disponibilidade" presente. Em outras palavras: geralmente encaramos as coisas independentemente das nossas ações ou das nossas tentativas de "lidar" com elas, de forma que o "ser-em-si" de algo pareça prevalecer sobre nossas ações, já que precisamos conhecer primeiro o "ser-em-si", se quisermos basear-nos nisso e conseguir lidar com as coisas.

No entanto, somente na ação humana e através dela é que o "ser-em-si" das coisas se nos revela. Na nossa tentativa de "lidar com elas", aprendemos que não podemos agir como bem quisermos, mas apenas como o exige a natureza das coisas. A essência das coisas se torna aparente com base nas nossas repetidas e parcialmente infrutíferas tentativas, isto é, através do "tornar-se" do homem, através de sua história.

O reconhecimento de que é na ação, e na prática, e através dela que o aspecto objetivo das coisas se revela, não é o resultado de teorias pragmáticas modernas ou histórico-dialéticas, nem tão pouco, como se poderia presumir, de interpretações existencialistas modernas da objetividade; esse reconhecimento já existia no pensamento grego — um fato que muitas vezes esquecemos.

No Cratilo, Platão se refere à relação originária entre fatos, objetos, coisas — ou à revelação da sua objetividade, seu "realismo" — è a prática humana, a ação humana. Toda ação contém seu próprio "como", determinado pela natureza das coisas. Mais uma vez, no entanto, essa "natureza" se revela somente na ação e através dela e não independentemente dela. Pois quando "chegamos ao âmago" das coisas, justamente com essa descoberta, encontramos o que denominamos sua forma — o que os gregos chamavam de eídos. No Cratilo, diz Platão: "Quando decidimos cortar algo, devemos cortá-lo como o quisermos e com o que o quisermos? Será que se somente cortarmos cada coisa de acordo com a sua natureza e com os meios apropriados, realmente realizaremos o corte, obtendo vantagem e executando a tarefa corretamente? Mas se agirmos contra a natureza, falharemos e não executaremos nada".

Aqui o significado originário de eídos (ideia) se torna evidente, e isto antes de qualquer interpretação intelectualista do termo como um fator puramente lógico. Através do trato com as coisas o homem experimenta sua objetividade e alcança uma "introspeção" sobre cuja base ele define os fenômenos. O processo da ação demonstra ser um "meio" para alcançar o fim. Talvez também seja essa a razão porque os gregos usavam o termo prâgma para "coisa", objeto - prática, ação, fazer, desempenhar: o feito. A forma substantiva prâgma expressa a relação originária entre objeto, fato e o revelar-se do seu "ser-em-si", sua objetividade, na prática e através dela.

Com respeito ao problema da linguagem, pode-se dizer agora: a linguagem humana é a combinação de sinais audíveis, interpretativos e alusivos de origem histórico-evolutiva. Justamente aqui a fala se distingue das vozes animais, cujos significados são estabelecidos desde o início, de acordo com a espécie dos animais.


Ver online : Ernesto Grassi