Grassi – O caráter básico da formação humana. Uma investigação arcaica

2. O caráter básico da formação humana. Uma investigação arcaica

Vimos que a diferença fundamental na estrutura do conceito de “formação”, no homem e no animal, é o fato do animalestar “formado” nos seus modos de comportamento — ele vive sempre na tensão que as diversas molduras colocam para o seu comportamento. Mas como o homem precisa procurar esta moldura e o significado de sinais importantes, ele se vê diante de perguntas, dúvidas e tentativas “fantásticas” para fazer frente ao desafio da interpretação.

Aos padrões organizadores e unificadores, sob os quais ele consegue apreender uma variedade de fenômenos, ele chama de “ideias” (no sentido grego do termo, eídos, que significa figura, imagem). A compreensão das “ideias”, consequentemente, foi chamada pelos gregos de “theoria”, ou seja “vista” ou “visão”. Por exemplo, as múltiplas manifestações do fenômeno do calor só podem ser determinadas e assim “esclarecidas” se as compilarmos na unidade de uma “ideia” que é o objeto de uma teoria — por exemplo: o calor como movimento de átomos. A fim de ser convincente, é necessário que a teoria compreenda e esclareça toda a gama dos fenômenos examinados; do contrário, será considerada insuficiente.

O processo de interpretação inclui um segundo fator essencial: a experiência, que não deve ser encarada apenas do ponto de vista das ciências naturais. Fazer experiências significa questionar um fenômeno visando examinar a validade de uma teoria. A função de toda experiência é verificar se, numa teoria existente, algo não foi formalizado ou não esclarecido — isto é, se algo não foi apreendido no seu padrão unificador. Se este for o caso, surge então a necessidade de uma nova teoria ou de uma nova interpretação dos fenômenos, até que a experiência venha confirmar o caráter compreensivo da teoria.

A experiência não se encontra no começo do processo que a define e não pode, portanto, ser o ponto de partida para a nossa “formação”. Quando através de uma experiência, “visando algo”, se questiona a natureza, uma ação humana ou um texto — ou seja, a teoria —, o padrão que serve de base às perguntas é determinado pelo caráter e modo (método = Hodós, meio) com que se faz a experiência. Como Leonardo o formulou: a teoria é, em cada ciência, o guia para a pesquisa a ser realizada. O processo de comparação, desenvolvido durante a experiência, entre a variedade de fenômenos e a teoria unificante, constitui o processo concreto de interpretação. É um processo de “comparação e seleção” (légein), que é de caráter dialógico e representa o ato de “intelligere”, “intus legere”, de “inteligência”.

Raramente temos noção, ainda, do significado original do termo “inteligência”. A inteligência não é um presente misterioso, mas uma atividade que pode ser examinada com exatidão. Ela consiste na faculdade de “ler” fenômenos internos e externos. Os termos latinos “intelligere” e “intellectus” significam esta atividade, esta escolha e seleção internas, cuja finalidade é a unidade global. Devemos ter consciência da relação interna entre teoria, método e experiência, e não podemos isolar nenhum desses fatores: eles formam a unidade, de cuja realização provém a “formação” do nosso mundo humano. Individualmente, o ser humano vive sob a constante necessidade da interpretação, pois ele se defronta sempre com casos singulares. Essa necessidade é o requisito indispensável a toda “formação”, a toda cultura, no seu sentido mais amplo, pois a palavra “cultura”, que contém o “colere” latino, significa, originalmente, o cultivo de terras e o ato de fazer florescer o mundo humano. Ao passo que o animal está “ajustado” aos padrões de seu comportamento, o homem está abandonado à constante inoportunidade de suas próprias ações e precisa, primeiramente, procurar os padrões que lhe dizem respeito — ao que ele chama de “ideias”.

Também devemos salientar que, ao contrário do que geralmente se acredita, não existe um método preestabelecido para cada ciência. Dependendo de como uma ciência concebe o seu objeto, ela mesma determinará seu método, um meio, para o seu esclarecimento. Um exemplo: cada uma das diversas concepções do fenômeno “vida” determinará um método diferente para a biologia. Se a “vida” for vista sob o ponto de vista estritamente mecânico, os métodos usados serão puramente quantitativos.

Como não existem métodos estabelecidos a priori, e como o padrão de cada ser humano precisa ser confirmado através da experiência, é inútil tentar “formar” o ser humano através de padrões já estabelecidos. Tais padrões incorporam conhecimentos baseados em processos prévios de interpretação que, de certa forma, sempre aparecem “post festum”. A disponibilidade “de objeto” dos resultados de um processo de interpretação já concluído nunca pode ser a base da formação; é ao processo, do qual se originam os padrões, que se deve sempre dar destaque, pois somente estes são o fundamento da formação de nosso mundo. Este “do qual” é o fator decisivo da formação, e deve ser a base para o ensinamento e o aprendizado. Aprendizado, neste sentido, não trata primordialmente da aquisição de “conhecimento” mas da faculdade de processar, corretamente, a interpretação.

Este processo, que é uma unidade indissolúvel de esquematização (theoria), método e experiência, não ocorre apenas no que diz respeito às ciências naturais mas, também, às do homem. O filólogo, por exemplo, interpreta, isto é, procura o sentido (lat. interpretatio = procurar o sentido) de um texto tentando confirmar, através da experiência, os esquemas em cujas bases ele se defronta com o texto. A experiência do filólogo consiste em procurar ver se todos os termos e frases, toda a estrutura de um documento, podem ser adaptados significativamente aos esquemas por ele traçados, de forma que nada fique por ser explicado. Poder-se-ia argumentar: o filólogo não realiza realmente experiências, pois ele tem diante de si um texto “pronto”, enquanto uma experiência no campo das ciências naturais pressupõe uma mudança ou uma reorganização do fenômeno pelo autor da experiência. Sem nos aprofundarmos no problema das experiências, devemos salientar que o fisiologista francês Claude Bernard (1813-1870), que se dedicava às ciências naturais, em sua “Introdução ao Estudo da Medicina Experimental”, demonstrou que a essência da experiência de forma alguma consiste em intervenções ativas do autor da mesma.

Durante a Renascença, e até Bacon, os naturalistas eram cognominados “interpretes” – intérpretes da natureza. No entanto, facilmente se esquece que o processo de interpretar já era, há muito, comum às humanidades, antes mesmo de se tornar método das modernas ciências naturais. Esta é mais uma prova de que não é tanto a comunicação do conhecimento, mas o desenvolvimento da faculdade de interpretar que constitui o requisito à “formação”. No diálogo interpretativo, com textos tradicionais, retomamos as nossas relações com a comunidade humana do passado, um relacionamento no qual, e somente através do qual, somos capazes de encontrar nossa identidade, como entidade histórica. Assim, também, a nitidez de uma tradição nunca é auto-evidente como tal; também ela pode tomar forma graças à nossa “atual” capacidade mental de interpretação.

Os humanistas haviam retomado o reconhecimento, comum na Antiguidade, de que a essência do homem é baseada no “logos” – a faculdade de “selecionar”, de “colecionar”. Expressamo-lo pela definição da inteligência, como sendo a característica específica do homem “racional”. Este conceito contém um fator importante: o “amor ao logos”, filologia que, sob este aspecto, já não mais se manifesta isoladamente, mas como ciência humana geral, como “studia huminitatis”. Neste sentido também o “naturalista” deve ser considerado um filólogo. O principal material das humanidades são “textos” no sentido mais amplo da palavra — isto é, obras escritas, figurativas ou musicais. Esta “documenta” deve ser questionada pelas humanidades para revelar o que anunciam nas suas respectivas linguagens. Esta também é a razão programática pela qual, no decorrer das nossas discussões, sempre voltamos a desenvolver investigações com base na interpretação de textos da Antiguidade. Isto não se pode conseguir através da mera comunicação de informações sobre tais obras, mas apenas pela atualização das suas forças originalmente efetivas; assim uma nova realidade é trazida à luz. Se nos contentássemos, simplesmente, em colecionar todos os possíveis dados históricos e gerais, relacionados com uma determinada obra, a pretensa interpretação se dissolveria numa história geral, não elucidativa de cultura e ideias.

A interpretação é o resultado de um projeto hipotético, que é examinado no que se refere ao esclarecimento e envolvimento de todos os aspectos e elementos; este processo constitui a essência do ato da inteligência e é a única razão para o aprendizado. Considerando que o homem é um seraberto ao mundo” e não dispõe de padrões já existentes, sua formação adquire caráter existencial. Existir significa suportar o caráter problemático das relações do homem consigo mesmo e com o mundo, sem desviar-se da decisão que lhe é continuamente exigida. Não é uma decisão puramente retórica; ela representa um risco constante que traz consigo tanto a possibilidade de acertar quanto a de falhar. Nosso ser, portanto, nunca pode ser colocado ao mesmo nível das “coisas do mundo”, nossa existência nunca pode ser considerada como um “objeto”, pois ela se revela como um processo de interpretação que está sempre em curso.

A “formação” obriga-nos a examinar nosso ser e, ao mesmo tempo, a decidir sobre ele. As múltiplas camadas de significado do ser, que se manifestam no curso da nossa experiência, permitem-nos elucidar, através da análise e da realização desse processo, e assim formar nosso “estar-aí” (= Da-sein = existência).

Aquele que existe é obrigado a formular a pergunta sobre o ser daquilo que é, pois qualquer tipo de interpretação de uma atitude pressupõe a resposta a essa pergunta e determina a incerteza da relação-do-ser, da existência humana, do seu aqui e agora, do seu “estar-aí”. A verdadeira decisão só pode ser tomada quando o elemento do risco surge do reconhecimento de que todas as nossas atitudes são questionáveis. Somos indivíduos para nós mesmos apenas através da intensidade da problemática diversificada do ser. “Formar-nos” significa sair do anonimato da indecisão, sair da indiferença do “eles dizem” e “eles fazem” para o constante risco da nossa própria existência consciente, para atingir decisões cada vez mais lúcidas, a “formação” é o processo pelo qual saímos da nossa própria situação histórica concreta a fim de entrarmos numa relação com ela. Nossa faculdade “formativa” torna-se gradualmente nítida no curso da nossa busca de “formarmo-nos”, nas nossas decisões e através delas, pois é a decisão que dá ao homem seu significado histórico. A autenticidade da existência, no entanto, não é apenas o resultado da obrigação de correr um ou outro risco, como alguns existencialistas acreditam, mas é correr o risco de reconhecer aquilo que nos pressiona e nos guia como apelo (arché) irresistível. Somente através da aceitação desse apelo e através do reconhecimento dessa vocação, elevamo-nos acima de circunstâncias mutáveis e tornamos real a história “arcaica”. Sob este aspecto, o destino humano, segundo a tarefa que lhe é proposta, corresponde tanto à obrigação de manter a unidade da personalidade quanto ao esforço interminável de ligar o futuro ao passado. Só então nossas ações deixarão de estar sujeitas ao acaso, deixarão de ser subjetivas e arbitrárias; elas encontrarão seu lugar certo numa ordem de coisas que possui um centro real de gravidade. Se, dessa forma, conseguimos moldar temporalidades difusas num todo significativo, em história verdadeira, seremos então capazes de reconhecer nosso ser como “autônomo” — e é exatamente desta forma que a natureza problemática do nosso ser se torna séria. A relação exclusiva com alguma unidade a ser projetada, com algum padrão a ser esboçado, a fim de decidir nossa existência interpretativa — como o é hoje, por exemplo, a aspiração geral do existencialismo — pode levar a um formalismo abstrato. Persistir apenas na natureza “problemática” da existência significa parar no meio do caminho; não é o “último” pois ela indica padrões mais remotos que se nos impõem.

Geralmente falamos de transcendência como de uma estrutura fundamental da humanidade no que diz respeito ao encontro, pelo homem, de todos os fenômenos como elementos de incerteza, de decisão e de risco. A proposição de que o homem encontra-se a si mesmo no ato de transcendência consumada por ele mesmo significa basicamente que, no ato de transcender, o homem sobrepuja a si e aos seus problemas imediatos, e assim estabelece relações consigo e com o mundo. A transcendência funda-se na necessidade de dar forma a qualquer material que lhe seja revelado, para fazê-lo adaptar-se a um esquema, a uma imagem. A elucidação desse motivo “arcaico” será nosso objetivo principal. O “diálogo interno”, através do qual nos tornamos nós mesmos, representa a tentativa, dentro da história, de esclarecer e de tornar reais os valores daquilo que está sempre presente, daquilo que sempre nos diz respeito. A “formação” torna-se como que a pedra de toque, a transição, o meio para superar a relatividade dos fatos históricos e para atingir aquela realidade completa que, por si só, torna possível a perspectiva histórica. A teoria da “formação” torna-se aqui a teoria da estrutura dos acontecimentos humanos à luz da origem do nosso vir-a-ser. É uma investigação arcaica, se relacionar-se com os padrões (archai) básicos da auto-realização humana.

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