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Grassi : A insuficiência essencial da linguagem.
quarta-feira 23 de março de 2022, por
5. A insuficiência essencial da linguagem. O silêncio e o fundamento pictórico da linguagem
Mas, afinal, é a linguagem semântica algo originário?
Toda língua, cujas raízes se encontrem diretamente no primitivo, é puramente semântica; ela não demonstra: ela refere-se ou indica — como a linguagem dos mitos, das religiões, do evangelho (da pregação), das síbilas, dos profetas, dos poetas. "O poeta não consegue fazer poesia antes de ser possuído, de estar fora de si e da razão ter cessado de habitá-lo. Pois enquanto se apegar a essa faculdade, nenhum homem é capaz de fazer poesia ou de pronunciar oráculos.. . É por isso que o deus, depois de privá-los da razão, usa os poetas, os pronunciadores de oráculos e os adivinhos divinos como seus servos, para que nós, ouvintes, tenhamos a certeza de que não são eles que dizem o que é tão valioso, pois estão destituídos da razão, mas que é o próprio deus quem o diz, e que apenas nos fala através deles."
Assim, a própria linguagem semântica tem sua origem numa "visão" imediata, imperativa, indicativa. A linguagem leva ao limitar da visão daquilo que se impõe; portanto, toda linguagem básica indicativa tem também um caráter teórico, pois "theorein" significa olhar, "theorós" é o observador nos Jogos Olímpicos. Aqui chegamos ao âmago da insuficiência da linguagem.
Uma tradição inteira vem chamando a atenção para a insuficiência da linguagem e para o fundamento visível que a ultrapassa. As seguintes sentenças nos foram transmitidas pelo sofista Górgias , relativas à insuficiência da linguagem: "Mesmo que o ser seja reconhecível, como descrevê-lo a outrem? Como se pode dizer com palavras o que se viu"! Ou ainda, como poderia algo tornar-se claro para alguém que somente o ouve, mas não o vê? Pois como a visão não percebe o som, assim a audição não ouve«cores, mas apenas sons, e o orador fala, mas* não em cores ou coisas".
Platão, a quem nos referimos frequentemente, diz em sua Epístola VII: "O essencial não pode, de forma alguma, ser posto em palavras como o podem outros conhecimentos".
Poder-se-ia dizer, talvez, que a peculiaridade dos princípios supremos leva ao fracasso da linguagem, e ao silêncio? De forma geral consideramos que a função da língua é a comunicação dos nossos pensamentos, das nossas experiências e das nossas paixões. Desde que nos esforcemos por comunicar ideias subjetivas válidas para todos, a linguagem é o elemento fundador de comunidades.
Através do que é expresso pela fala, poderemos concordar ou discordar das opiniões de outros. Mesmo diferenças mútuas somente são possíveis numa base comum, que é a premissa de cada discussão. Comunicando algo a alguém, ou a nós mesmos, a linguagem sempre adquire um caráter histórico; os outros (como nós mesmos) "passam a ser" através da nossa conversação. Este nosso "passar a ser" adquire o significado de "formar-nos", de "desdobrar-nos". O discurso, como um processo dialético é, em essência, um "acontecimento", uma história do homem.
O discurso faz com que nos esforcemos por atingir os primeiros princípios que nos levam a definir os fenômenos, a colocar ordem no caos de impressões e a fundar nosso mundo. Portanto, a fala é fundadora de mundo. Negá-lo equivale a renunciar à história, à comunidade e à mundanidade. Não é por acaso que, em comunidades religiosas que vivem em esferas extra-históricas e extra-temporais, prevaleça a regra do "silentium", não tanto como uma punição, isto é, domínio de impulsos humanos, como é erroneamente suposto, mas como uma rejeição sólida e firme do mundo histórico. Essa esfera compreende a tradição da teologia negativa; baseando-se na tradição cristã, Dioniso Areopagita diz, em Os Nomes de Deus que o original e o primitivo são "inexpressáveis em qualquer discurso" e mais: "e o ’logos’ (aqui no sentido do original, do divino) é a própria palavra que não pode mais ser expressa por qualquer palavra humana".
Desse mesmo reconhecimento provém, para Orígenes, a dificuldade da oração: "Quem poderia negar que é impossível para o homem seguir o rastro do divino?" Considerando que não podemos expressar o divino e o originário, e considerando que a verdadeira prece teria contido aquelas palavras divinas, o homem não pode rezar corretamente "... pois o que deveríamos verdadeiramente rezar, não o sabemos".
Digno de nota é que os credos de todas as religiões que tentam voltar-se para o originário, para o primitivo, acabam com a mesma renúncia à fala. Com referência à dificuldade da prece, diz, por exemplo, Orígenes: "a fim de dirigir-se a Deus na oração, é suficiente ter diante dos olhos o divino, o primitivo, o originário que não pode ser captado por palavras".
Muito mais tarde, também na Cristandade medieval, o silêncio como comprovação da insuficiência da linguagem adquire um significado importante. Para o Mestre Eckhart , o silêncio é uma condição primeira da existência, que participa da "eternidade", do "essencial" e que pertence ao fundamental. O silêncio não é o complemento negativo da palavra; ele é, em Deus, "simultaneamente" com a palavra, a origem das histórias sagrada e humana. "Deus criou todas as coisas através da palavra, através do silêncio." Assim, o silêncio é a causa primeira divina e dele nasce a palavra, o Filho de Deus. No silêncio repousa Deus; através da palavra ele age; e portanto o Filho, como a palavra de Deus, é a origem da história sagrada, da mesma forma como a palavra humana é a origem da história humana, profana. Assim a palavra nasce constantemente do silêncio para voltar novamente ao silêncio tão logo tenha sido proferida.
Embora o Mestre Eckhart saiba que a verdade originária é inexpressável, ele não abdica ante a insuficiência da linguagem; ele ronda o segredo com tentativas cada vez mais apaixonadas. Diante da plenitude do visível, a sua palavra aspira a tornar-se "transparente"; ele invoca um pressentimento que vem das profundezas. Este esforço tem por alvo uma relação entre o primordial e o inexpressável, que está entre o visível e o pictórico. A linguagem se baseia em algo que não é linguagem; é algo relacionado com o elemento pictórico original distinguido pelo seu caráter semântico, alusivo. O pictórico é simplesmente "visto"; para aquele que não pode vê-lo, este não poderá jamais ser "provado", não poderá ser "explicado". O silêncio aparece, portanto, como uma correspondência à "visão" originária.
A linguagem semântica, mítica, baseia-se em algo que deva manifestar-se antes de qualquer palavra? Os gregos chamavam "symbolon" a um objeto — por exemplo, duas partes de um anel — por meio do qual as pessoas reconheciam-se uma às outras como pertencentes a uma mesma comunidade de amigos ou parentes. "Symbállein" significa unir, ligar com base em algo comum. O primordial, cuja preocupação é comum a todos os homens, não confere um significado próprio somente aos sons, que formam as palavras, mas também aos sentimentos, ações e atitudes, pois cada um significa algo diferente e mais do que os elementos puramente físicos e mecânicos dos quais o primordial é constituído; eles adquirem um significado simbólico. Por conseguinte, as duas partes do anel tem outro significado além daquele que a sua realidade material constitui; elas representam uma união, uma afinidade e uma amizade que transcende a qualidade física das partes, e que estas nunca poderão alcançar.
Não deverá ser esquecido que o poder do símbolo também tem seu efeito ao nível da vida animal, pois no que se refere aos sentidos — como instrumentos da vida — forma e significado específicos a vida (por exemplo, significados positivos de expectativa, como o significado de nutrição ou sexual, ou negativos, como o medo) são atribuídos a causas mecânicas. Portanto, é a vida que confere aos fenômenos do ambiente o seu significado simbólico. No entanto, enquanto a vida dos sentidos está ancorada em símbolos bem estabelecidos e significativos (em símbolos e significados que são inatos à espécie), é característica específica da vida humana que o homem deva procurar os significados simbólicos dos fenômenos que são válidos para ele. O originário se manifesta na nossa necessidade de encontrar o caminho no mundo e leva-nos, passo a passo, a conhecimentos que terminam na "visão".
Isto se aplica principalmente ao poeta e à sua linguagem. Tudo quanto ele diz, pensa ou aponta (mesa, pão, água, a figura de uma mulher), está sempre além dos objetos, além do que foi realmente dito e adquire, portanto, significado simbólico.
Como é possível referir-se, através de sinais, sons, palavras, a algo que vai além do que foi experimentado, do que foi citado, do que foi pronunciado? O que é criado pela união simbólica, na qual e através da qual aprendemos a conhecer-nos e aos fenômenos? É sempre o originário, aquilo que diz respeito ao homem, o referente, que confere um significado a todas as coisas, o alusivo que precisamos reconhecer como uma realidade concreta da mais alta ordem. Nunca devemos degradá-lo ao nível do meramente "pensado", a um objeto abstrato de especulação intelectual, porque então estaríamos encobrindo o seu caráter perigoso, assombroso.
Ainda: na sua Analytica posteriora, Aristóteles distingue dois tipos de crença (pistis): aquela que nasce da demonstração, a quem cabe todos os primeiros conceitos. "Se conhecemos e acreditamos nos objetos através do conceito primeiro e imediato, então também conhecemos e cremos mais no primeiro do que no que depois daí resultará, pois conhecemos e acreditamos neste último justamente através daquele primeiro."
Uma tal concepção resulta para nós, seres racionalistas, na pretensão escandalosa de que, além da "pistis" do racional, exista uma "pistis" originária do não-racional, à qual é justamente o filósofo quem deve conduzir.
Ver online : Ernesto Grassi