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Fernandes (SH:43-49) – conhecer/explicar e compreender/criar

domingo 10 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Quando se trata de ensaio-e-erro, conhecimento ou explicação, que considero um trio indissociável, supõe-se ordinariamente que seria um círculo vicioso ou uma petição de princípio, pressupor ou incluir explicitamente, no conteúdo daquilo que se vai usar para explicar (o explicam, premissas, etc.) justamente aquilo mesmo que se pretende explicar (o objeto da explicação, o explicandum). Grifei a palavra “explicitamente”, porque tal suposição é falsa. Algum tipo de consideração semelhante deveria valer também para definições, usadas como “regras de eliminação de termos”, mas deixemos essas coisas ao pragmatismo científico — sendo a Ciência, no caso, principalmente a Lógica. No método hipotético-dedutivo-experimental (Sir Karl Popper   gostava de chamá-lo de método de ensaio-e-erro, ou de conjecturas e refutações) — e haveria outro método de “conhecer”? —, vale oficialmente uma mistura de Lógica com uma política pragmática qualquer de tomadas de decisões sobre o verdadeiro e o falso, e que no fundo não passa de uma política de decisões sobre o falso e o falso.

De acordo com a Lógica, não deveria haver aumento de “conteúdo” na passagem das premissas para a conclusão. (“Conteúdo” é um termo execrado pelos que, além de lógicos, são nominalistas radicais; no fundo, cientificistas; mais fundo ainda, “fundamentalistas religiosos”, frequentemente terroristas culturais.) [43] Sendo assim, aquilo que se explica já deveria estar contido, implicitamente, naquilo que se usa para explicar, consistindo a utilidade das explicações em que revelariam o que teria estado escondido, ou “embutido” nas premissas, assim como se abre uma luneta fechada, revelando algo análogo ao “conteúdo informativo” de pseudotautologias, como 2 = 1 + 1. Na verdade, a “lógica” de tudo isso não é lá muito... “lógica” (Capítulo 2, adiante), mas a lição que nos interessa agora é muito simples: em geral, não se tira um coelho de uma cartola vazia, a não ser por criação ex nihil. Dito assim, o apelo prestidigitador aos espetáculos de mágica disfarça a ponderosa linhagem dessa tese venerável: seu pedigree é platônico. Isso, na minha visão das coisas, diz tudo sobre sua altíssima semelhança com a Verdade.

A primeira parte da tese (não se tira um coelho de uma cartola vazia) é a menos difícil de ser compreendida, pois foi sobejamente elaborada e difundida na Filosofia por Kant   e os kantianos e, na Ciência de hoje em dia, pela síntese neodarwinista. Já a segunda parte (a não ser por criação a partir do nada) inclui uma ideia que já era escandalosa na antiguidade clássica, ao ser apresentada aos gregos pelos representantes das tradições judaico-cristãs (nesse ponto não faço distinção entre as tradições que, posteriormente, foram consideradas heréticas ou heterodoxas). Entendo que, a partir do nada, a criação do que quer que seja não pode ter o que quer que seja a ver com a ideia (“decaída”) de tempo. (Excluo as ideias mais amigas de temporalidade cíclica, por não passarem de “imagens móveis da eternidade”.) A partir do nada, a criação do que quer que seja implica a criação do próprio tempo. Há, de fato, um sentido, sutilíssimo, em que pretendo resgatar a noção de criação a partir não do nada, mas da compreensão dos simulacros da Existência. Mas este sentido tampouco tem a ver com o tempo.

Pois muito mal. É por essas e outras razões que a tese em questão não tem semelhança somente com a verdade, mas também com falsidades. Tem, por exemplo, levado a Mente, o Pensamento e a Linguagem (o Instrumento) a ver nela alguma semelhança com várias espécies de falsidade, dentre elas o chamado “argumento do conhecimento criador” (só se conhece aquilo que se cria, [44] verum factum, etc.). Ora, afirmo que o chamado “argumento do conhecimento criador” é um contra-senso. E tamanho é o contra-senso, na minha visão dessas coisas, que não vejo porque ser delicado no tratamento deste assunto. Desincumbo-me dele logo aqui, de maneira o mais curta e grossa possível. Em primeiro lugar, só há verdadeira criação ex nihil: qualquer outra coisa é contrafação, ou melhor, transformação ou artesanato, não criação. Logo, o “verum factum” só podería significar algo como “só conheço o que transformo” ou “artefaço”, jamais “só conheço o que crio”. Em segundo lugar, ainda que se tome “criação” no sentido vulgar, ou seja, no sentido de “transformação”, seu uso no suposto “argumento” (do “conhecimento criador”) trai variadas confusões, das quais só me darei ao trabalho de indicar as principais. Uma delas é a confusão entre “teoria” e “prática”; outra, mais grave, a confusão entre conhecer e criar. Vamos tratar dessas duas, e basta.

Há um sentido vulgar de “experiência” (aqui, sempre com “e” minúsculo), que, apesar de confuso ao extremo, é moeda corrente e até mesmo tido em alta conta por epistemólogos, como se correspondesse a uma noção fundamental (para cientificistas, entenda-se “útil”). Trata-se de um sentido intimamente relacionado ao de “conhecer” (sobretudo no sentido de “apreensão cognitiva”), “explicar”, etc. O próprio Kant fez desse sentido de “experiência” a chave mestra de (quase) todos os seus argumentos. “Experiência de”, assim como “consciência de”, nas acepções que estou considerando vulgares, são expressões ambíguas. Envolvem o “de” em dois sentidos. Remetem, por um lado, ao objeto, como em “experiência (consciência, conhecimento) de x”, “experiência (consciência, conhecimento) de y”; por outro lado, remetem ao sujeito, como em “minha experiência (consciência, meu conhecimento)”, “sua experiência (consciência, seu conhecimento)”. Vou chamar o primeiro sentido do “de” de sentido “objetivo”; o segundo, de sentido “subjetivo” ou “genitivo”. Ora, tal “experiência de”, “consciência de”, “explicação de”, ou... “conhecimento de”, só poderíam ter, seja com seus objetos, seja com suas origens (“sujeitos”), relações metodológico-burocráticas e utilitaristas, em geral tratadas superficialmente, mesmo pela Filosofia, como as relações de “fonte”, “origem” ou, inversamente, [45] “comprovação” ou “teste”. (Na verdade, nem mesmo aquilo que eu chamo de autêntica Experiência Criadora tem tais relações com o conhecimento.)

Mas ainda é cedo, suponho, nessa longa noite do Espírito na qual de uma maneira ou de outra ainda sobrevivemos, e que se chamou de “Iluminismo”. Por exemplo, ainda se confunde as distinções, tanto as do tipo knowledge by description e knowledge by acquaintance, knowing that e knowing how, quanto as do tipo conhecer e explicar, com a distinção capital entre tudo isso tomado junto e... criar ou, como veremos, compreender. Na verdade, nenhuma daquelas primeiras distinções tem o que quer que seja a ver com criação/compreensão. Todas elas apenas distinguem, dentro da esfera do conhecer/explicar, entre o foco diminuto da atenção intencionalmente consciente do Instrumento (piloto manual), seja lá o que isso for, e o processamento inconsciente de informações no “piloto automático”, também do Instrumento (hábito, ou treinamento).

Na lousa da sala de aula de um dos maiores gên ios da Ciência do século que passou, Richard Feyman, estavam escritas, pouco antes de sua morte, em 1988, as seguintes pérolas de “sabedoria” pedagógica, que, a meu ver, dizem muito mais respeito ao funcionamento da Mente do que, seja ao impossível “conhecimento criador”, seja à Presença de Espírito: “What I cannot create, I do not understand... Know how to solve every problem that has been solved”. (HAWKING, 2001, 83). Por ironia (não intencional, suponho), os termos se aproximam do que seria correto: só que... criar e conhecer são duas coisas radicalmente distintas e que compõem uma “dualidade irredutível” de arcanas fronteiras coincidentes, como dois lados de uma moeda inteira. Tanto os objetos “antecipados”, “imaginados”, “projetados”, ou simplesmente postos dentro de cartolas, quanto aqueles que delas são retirados, são objetos produzidos não por alguma criação, mas pelos mecanismos — nada criativos, diga-se de passagem — da Mente, do Pensamento e da Linguagem. O que eu quero dizer é que, do ponto de vista epistemológico, os objetos postos ex ante são todos, por sua vez, também retirados de outras cartolas, numa regressão infinita. [46]

A origem do conhecimento simplesmente não é tematizável pela Mente, pelo Pensamento ou pela Linguagem. Pudera! O conhecimento simplesmente não pode ter “origem”, muito menos num... artesanato, que é o que vulgarmente se entende por “criação” ou “criatividade”. Mas se estivéssemos realmente falando de “criar” (!!!), então estaríamos falando daquilo que já os gregos sabiam que é “impensável”, ou seja, estaríamos falando da criação a partir do nada, fora do tempo e do espaço, sem antecedentes, sem cartolas e coelhos anteriores, sem pré-concepções, sem premeditação, enfim, estaríamos falando de uma contradição em termos, que seria um “começo absoluto” aquilo que, na Física, se chama de “singularidade” e que Santo Agostinho   viu tão bem, quando concluiu que o próprio tempo tinha que ter sido criado junto com o Universo. “Criação”, ou é uma noção intemporal, portanto nada tendo a ver com “conhecimento”, ou teria uma acepção vulgar, com alguma coisa vulgar a ver com a noção vulgar de “conhecimento”, que corresponde a mero artesanato.

Essa distinção que faço entre explicações, que pertencem à ordem do conhecimento, e compreensões, que pertencem à ordem, absolutamente distinta, das criações ou das Experiências Criadoras, consiste em que as primeiras sempre têm pressupostos, sejam premissas, seja a intencionalidade, seja a reatividade inconsciente que processa informações, ao passo que as segundas são puramente espontâneas, não pressupondo coisa alguma... nem mesmo o “criador” ou o “compreendedor”, por mais paradoxal que está afirmação possa parecer, por enquanto. E basta, quanto ao absurdo “conhecimento criador”. Voltemos ao trabalho sério.

A noção de “coisa” há de ser compreendida, em nossa reforma da Ontologia, juntamente com as noções de “tempo” e “espaço”. Entenda-se este propósito, prima facie, ou como o de, na ordem do conhecimento, não havermos de usar, explicitamente (mas sim, de alguma maneira implícita, preferencialmente evitando os próprios termos que usarmos para descrever aquilo que vai ser objeto de explicação, o que seria por demais acintoso) as noções de “coisa”, “tempo” e “espaço” para explicar o que são as coisas, o tempo e o espaço, ou como o propósito de, na ordem da compreensão, não [47] havermos de pressupor o que quer que seja. O leitor verá como faremos isso, que ele certamente tem por ora como simplesmente impossível.

Na verdade, todo este livro fica de pé ou desmorona, dependendo de se é ou não possível usar a Mente, o Pensamento e a Linguagem para compreender a Mente, o Pensamento e a Linguagem. Mas deixando, só por enquanto, essa questão de lado, ou seja, a questão de se podemos ou não, por um lado meramente explicar, por outro compreender, a Mente, o Pensamento e a Linguagem, usando a Mente, o Pensamento e a Linguagem, ou ainda a questão de se este é um livro de meditação, como ideia oriental, ou simplesmente (?!) um livro de Filosofia, como ideia ocidental, retomo o trabalho, que, seja como for, já está começado, desde as primeiras linhas, e lhe digo que, de qualquer maneira, seria um erro categorial considerar a experiência como uma “coisa”, mas não porque a “categoria” correta seja a de “processo”... (“categorias” são conceitos superiores, frequentemente “transcendentais”, e usados para organizar os vastos espaços dos esquemas conceptuais, desbravados pelo pensamento...), pois experiências, eventos ou mudanças, elas mesmas, não mudam. Não, como se costuma pensar, porque experiências, batalhas, sinfonias ou processos, ao contrário de “coisas”, não estejam contidos por inteiro em cada “agora”, pois também estão! De qualquer modo, vem-se tornando cada vez mais comum atribuir “partes temporais” e “espaciais” não só às próprias “ci isas”, mas também aos próprios “processos”, tirando-os, desse modo, do tempo e do espaço.

Pois, que diabos podería ser uma mudança que muda? O que acabaremos por compreender é que não há exatamente o que se pensa que são “coisas”, e também o que se pensa serem “sujeitos de (ou a) mudanças”, de modo que tudo que há está contido em cada instante, já que o tempo não passa (quanto tempo levaria para passar?!). Ainda que a palavra “estrutura”, que consta do título deste Capítulo, possa designar um “grupo de transformações”, o grupo de que se trata há de ser aquele, não outro, há de ter aquela qualidade, não outra. De modo que está imóvel, é imutável, eterno, como se habitasse aquele paraíso filosófico que, para alguns, é o próprio [48] Inferno, e que eu gosto de chamar de “Platônia”, à maneira do físico Julian Barbour (2000).


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