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Fernandes (SH:66-68) – Há coisas que não existem!

quarta-feira 24 de abril de 2024, por Cardoso de Castro

  

Sendo minha concepção de “identidade” independente da noção de “critério de identidade”, então significados, proposições ou intenções passam a existir pelo simples pensamento que os reidentifica, não importando que racionalizações ex post a mente produza a título de “justificativa”, seja para a existência, seja para a inexistência. (Contudo, aqueles que pensam que sabem tudo costumam dar grande importância a justificativas, aborrecendo a gente, que sabe que só carece de justificativa, seja epistemológica, seja ética, o que está diante de um juiz, de dedo em riste apontando para o nosso nariz, e que é justamente esse juiz que está... nu, ou seja, seu papelão é justamente o que está sendo aqui desconstruído.)

Apresentada dessa maneira, ainda que por alto, minha concepção de “existência”, apresso-me a advertir o leitor de pelo menos duas coisas. Primeiro, para mim há (es gibt, il y a, there are) coisas que não existem! Segundo, terei o desplante de usar o pensamento e a linguagem para pensá-las, escrever sobre elas, referir-me a elas, etc., à vontade. Desafio assim a todos (sobretudo a “todos” os pós-modernos) a que me atirem a primeira pedra, contra-argumentando ad hominem, que eu estaria usando o próprio pensamento para compreender completamente o pensamento, ou a própria linguagem para compreender completamente a linguagem. Se me atirarem essa pedra, tomarão como possível o que, como veremos adiante, é impossível: a auto-referência. Além disso, a “auto-referência” que tomariam como possível não seria “auto”-referência, mas, como ainda veremos, seria a estrita subordinação da Autoridade Epistemológica à Autoridade Ontológica, por meio, se quiserem, de paradoxos performativos. (Trata-se de duas Autoridades poderosíssimas, embora dentro do próprio campo filosófico, como se os filósofos, de uma tendência ou outra, precisassem usar a estratégia de dividir para reinar...)

Afinal, no sentido mais óbvio, “não existe” aquilo que não for tomado pela mente como podendo ser tomado como objeto outra vez, ou seja, não existe aquilo que de algum modo só aparece... “uma única vez”. Ou ainda: não existe aquilo que tem o poder de verdadeiramente surpreender a mente. Existir é “mentir”, porque depende daquilo que mente ou — perdoe-me! — “é” mente; Ser é... — desculpe! — não mentir, porque “é” ser “não-mente”. Eis um jogo de palavras que merece perdão... e ponderação. Não existe aquilo sobre o que a mente não tem o poder de transformar em “memória” ou fazer repetir-se.

Mas há uma razão para que todas essas coisas não possam existir, segundo minha concepção de “existir” : elas não podem é antes de tudo ser tomadas como uma unidade, a fortiori, como objeto. E o Ser, como já deve estar se tornando evidente, é uma delas. O que existe, embora possa ser um “objeto intensional” (com s), jamais poderia ser o que se chama de “objeto intencional” (com c), pois está sempre além das aparências nas quais transpareceria ou se revelaria. (O leitor pode associar — meramente associar! —, sem muito risco, as noções de tipo [type], conteúdo, conotação, significado, intensão [com s], etc., por um lado, e as noções de indivíduo, instância, exemplo [token], forma, denotação, significante, extensão, etc., por outro lado. Não tenho tempo para fazer essas distinções todas! Tomemos tudo isso grosso modo, sem as filigranas escolásticas da Filosofia da Lógica... Já intenção [com c] e intencionalidade, são palavras mais conhecidas.) Mas o que importa é que, por isso, o que existe não “aparece” como “aquilo que existe”, e só transparece, como realidade, na transparência perfeita da própria aparência, que não pode ser tomada como objeto, e por isso está sendo aqui chamada de “Aparição”, se à inconsciência da mente acrescentarmos a consciência da Experiência. Seja como for, simplesmente não há candidatos a figurar depois do “de”, da expressão paradigmática da ideia de “intencionalidade”, ou seja, “consciência de”. Não poderia haver intencionalidade, pelo menos no sentido de que ela seria uma “visada” do objeto, pois o ponto cego não pode “visar” coisa alguma. Aquilo que a suposta intencionalidade da mente (não <la Consciência, ou da Experiência consciente) “intencionaria” só poderia fazer parte, não de um “estar aí” (dasein), mas de um “estar.aí”, lá fora, fora do Ser, mantido (pelo pensamento) à distância do Ser (fortsein, aufsein), assim como se mantém à distância do leitor *eu próprio reflexo num espelho perfeitamente opaco. O que é opaco reflete. E a opacidade infinita do Não-Ser, que nada compreende Ou “ absorve”, mas a tudo reflete, como um espelho perfeito, que é responsável pela supostamente incompreensível qualificação de “ex nihil”, que, à revelia dos gregos, costumamos acrescentar à criação. A ideia da “criação” implica, não o tempo, mas a ideia de um contraste entre Ser e Não-Ser. O Não-Ser, repito, caracteriza-se pela opacidade, que é o oposto da transparência, que caracteriza o próprio Ser, que, por sua vez, é Consciência.


Ver online : Sergio L. C. Fernandes


FERNANDES, Sérgio L. de C.. Ser Humano. Um ensaio em antropologia filosófica. Rio de Janeiro: Editora Mukharajj, 2005