Fernandes (FC:10-12) – o sábio “é”

Stone, no seu livro extraordinário — politicamente correto, mas filosoficamente míope, tão revelador da dimensão política do julgamento de Sócrates1, propõe três motivos para o paradoxo de que o filósofo, professor a vida inteira, tenha sempre negado este fato2: se a sabedoria (ele prefere “virtude”, ou “conhecimento”) pudesse ser ensinada, seria abalada a doutrina de que “cabe ao governante dar ordens e cabe aos governados obedecer”3; se pudesse ser ensinada, seria abalada a doutrina de que é absoluta; e, finalmente, se pudesse ser ensinada, as desastrosas carreiras de seus discípulos mais amados e famosos poderiam incriminar pessoalmente Sócrates. Seria preciso que figuras trágicas como Crítias, Alcebíades e Cármides fossem condenados, não pela sabedoria que lhes teria sido ensinada por Sócrates, mas pelo destino, ou seja, pelo caráter, Ethos4. Era preciso, portanto, que esses discípulos não soubessem o que faziam.

Ora, Stone não se deu conta de que só um sábio poderia reconhecer outro sábio. Os ignorantes julgam, estão sujeitos à ilusão de que conhecem o bem e o mal. O sábio, por definição está além do bem e do mal, absolutamente indiferente ao moralismo das estereotipias. Mas se só um sábio pode reconhecer outro sábio, não podemos reconhecer o sábio em Sócrates, e Sócrates não pode reconhecer a si mesmo como tal. Mesmo que pudesse fazê-lo, não teria nisso nenhum interesse. Além disso, é justamente no caso do sábio que aparece com nitidez um dos maiores problemas da Ética: pode um ladrão ser o autor de teses corretas sobre a honestidade? Pela tradição que distingue o que se diz do que se faz, as teses devem ser avaliadas pelos seus “méritos intrínsecos”, de modo que argumentar ad hominem, a favor ou contra elas, é falacioso; por outro lado, também tradicionalmente se condena aquele que parece desmentir-se com os próprios atos (“Façam o que eu digo, não o que eu faço.”). Ainda que consideremos que nossas ações mudas também “falam” por si mesmas e, portanto, podem “desdizer” o que afirmamos, toda linguagem, verbal ou não, é interpretável. Logo, os hermeneutas que respondam: distinguem-se ou não, por um lado, a interpretação e, por outro, a própria vida? E, se elas se distinguem, como é que se relacionam? Supondo que o que [10] Sócrates faz desfaz o que ele diz, não teríamos que admitir, simetricamente, que o que ele diz reconstitui o sentido do que ele faz?

O Sábio não existe, se “existir”, como veremos no Segundo Capítulo, é “estar fora do ser”. O sábio é. Do ponto de vista da exterioridade, ou da exterioridade do ponto de vista, ele ocuparia o lugar vazio, o lugar do vazio, o “lugar nenhum” (Não é este o lugar do herói?). Ele é “ninguém em particular”, por isso pode existir como “qualquer um”. Mais precisamente, ele é o que em cada um de nós é o “ninguém em particular” de cada um de nós. Por isso, o Mestre é todo aquele, tudo aquilo, ou toda situação que nos reflete, que faz “cair em si”. E o espelho perfeito só pode ser o vazio. Na medida em que ali, no Mestre, ou no Sábio, somos levados a ver “alguém”, no sentido de uma persona, o reflexo não será perfeito, não “cairemos” em nós mesmos, mas, talvez, na dialética: então teremos a Filosofia, como apenas amizade à Sabedoria.

Com efeito, é a Filosofia que pode ser ensinada, não a Sabedoria. Mas a amizade à Sabedoria só poderá ser fiel ao Ser (como Odisseu, fiel à Penélope), se compreendermos que a elaboração conceptual, o treinamento em rigor argumentativo, e a erudição são como o carro, que não deve ser colocado adiante dos bois. Se o discípulo é desperto para a amizade fiel, o resto pode tornar-se, naturalmente, necessário, e o carro pode vir a ser puxado pelo boi. Mas é uma ilusão acreditar que o aprendizado das infidelidades, nossas “ligações perigosas”, ou o que se chama, vulgarmente, de “educação”, por si só, despertará em alguém a fidelidade ao Ser. Quando o carro é colocado à frente dos bois, a Filosofia se torna um passatempo acadêmico, ou uma atividade profissional.5

Os motivos de Sócrates não poderiam ser, portanto, descobertos pelas conjecturas de Stone. Em primeiro lugar, porque a ideia de que o que fazemos tem “um verdadeiro motivo” é, em si, enganadora.6 Em segundo lugar, porque Sócrates não pode ser professor de Sabedoria; e, se o fosse de Filosofia, não poderia ensinar a fidelidade que anima essa amizade. Há coisas que não se cultivam: elas é que nos visitam. Vêm e vão-se, não se sabendo de onde, nem para onde. O Espírito sopra onde quer. E a Filosofia não tem, como as religiões, uma dimensão “profética”, na qual a gnose pudesse [11] “precipitar-se” em Escrituras. Sendo assim, em Filosofia, o que pode ser ensinado é como sermos infiéis. O ensinar alguma coisa como se a acrescentássemos a alguém, é uma infidelidade ao Ser, sempre em nome da amizade. Examinemos, contudo, a maneira que Stone tem de intrigar Sócrates, pois pode ser muito instrutiva a respeito do que é, ou não é a Filosofia.

A primeira intriga de Stone pretende fazer o que tantos fazem, irresponsavelmente: situar a Filosofia na história. Stone é erudito. Comparou no original as fontes primárias do “Sócrates” xenofôntico, platônico, aristofânico e aristotélico6. Ele tem razão quando compara sua busca do “Sócrates histórico” com a atual literatura especulativa, polêmica e erudita sobre o “Jesus histórico”.


  1. STONE, 1988; refs. à trad. bras., STONE, I.F. 1993: O Julgamento de Sócrates. Comp. das Letras. 

  2. Op.cit.,76-78. 

  3. XENOFONTE, Memoráveis. 3.8.10-11 apud STONE 1993 

  4. STONE, 1993, 77-78. 

  5. A respeito do carro de boi, remeto o leitor à simbologia das dez etapas da iluminação, evocadas pelas imagens do Pastoreio do Boi 

  6. Sua pesquisa começou em 1971 e o livro levou quase duas décadas sendo escrito

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