Página inicial > Henry, Michel > EU - EUs [MHSV]

EU - EUs [MHSV]

quarta-feira 11 de setembro de 2024

  

A tese do homem “Filho de Deus” recebe então uma dupla significação, negativa e positiva. Negativamente, ela impede que se compreenda o homem como um ser natural, como fazem dele o senso comum e as ciências. Mas ela impede também que se compreenda, do ponto de vista transcendental, como um ser cujo mundo constituiria o horizonte de todas as suas experiências, o modo de aparecer comum a cada uma delas. E pois a afirmação maciça pronunciada por Cristo sobre si mesmo que deve ser retomada a respeito do homem e de sua verdadeira essência: “EU não sou do mundo” (João 17,14). Tal como Cristo, EU homem não sou do mundo, no sentido fenomenológico radical de que o aparecer de que é feita minha carne fenomenológica, que constitui minha verdadeira essência, não é o aparecer do mundo. E isso não por efeito de qualquer credo pressuposto, filosófico ou teológico, mas porque o mundo não tem carne, porque no “fora de si” do mundo não são possíveis nenhuma carne nem nenhum viver – os quais não se edificam jamais, aliás, senão no estreitamento patético e acósmico da Vida. MHSV VI

Após ter lembrado esquematicamente o que a interpretação do homem como Filho de Deus deixa de lado, convém aprofundar sua significação positiva. A esta se soma, aliás, uma questão inevitável: se o homem traz em si a essência divina da Vida, ele não é o próprio Deus ou o Cristo? Em que o homem difere deles? Trata-se, no caso, de levar a análise do nascimento transcendental do Filho da Vida suficientemente longe para que os caracteres transcendentais que definem a essência verdadeira do homem sejam fundados e ao mesmo tempo compreensíveis em sua inteligibilidade. Vimos que, na autogeração da Vida absoluta, se encontra engendrada uma [149] Ipseidade essencial cuja efetividade fenomenológica é um Si singular – o do Arqui-Filho coengendrado na vida, portanto, como seu autocumprimento e, assim, como idêntico a este. É de modo análogo, para dizer a verdade, que o homem verdadeiro pensado pelo cristianismo sob o título de “Filho de Deus”, aquele a que chamaremos de agora em diante o Si transcendental vivente, se encontra engendrado na Vida. Na medida em que, no automovimento pelo qual a vida não cessa de vir a si e de se experimentar a si mesma, se edifica uma Ipseidade e, assim, um Si, na medida em que experimentar-se a si mesmo é ser efetivamente um Si, é ser necessariamente este Si, então o Si engendrado neste automovimento da Vida é efetivamente, também ele, um Si, é necessariamente este ou aquele Si, um Si singular e por essência diferente de todo e qualquer outro. EU mesmo sou este Si singular engendrado no autoengendramento da Vida absoluta, e não sou senão isso. A vida se autoengendra como EU mesmo. Se com Mestre Eckhart   – e com o cristianismo – se fala da Vida de Deus, dir-se-á: “Deus se engendra como EU mesmo”.((Maître Eckhart, Traités et Sermons. Trad. M. de Gandillac  . Paris, Aubier, 1942, p. 146.)) A geração deste Si singular que EU próprio sou, EU transcendental vivente, na autogeração da Vida absoluta, é isso meu nascimento transcendental, aquele que faz de mim o homem verdadeiro, o homem transcendental cristão. MHSV VI

Na medida, todavia, em que esse nascimento transcendental se cumpre a partir da Vida, no processo de vinda a si desta Vida, então o Si singular que EU sou não advém a si senão na vinda a si da Vida absoluta e a traz em si como seu pressuposto nunca abolido, como sua condição. Assim, a Vida atravessa cada um dos que ela engendra, de tal modo que não há nada nele que não seja vivente, nada tampouco que não contenha em si esta essência eterna da Vida. A Vida me engendra como a si mesma. Se com Eckhart – e com o cristianismo – se fala da Vida de Deus, dir-se-á: “Deus me engendra como a si mesmo”.((Ibidem.)) Mas estava precisamente aí a condição do Arqui-Filho coengendrado [150] na autogeração de Deus, de modo que sua geração era a autogeração do próprio Deus, de modo que ele era Deus. Aqui se repete nossa pergunta: EU, este Si transcendental vivente que sou, sou Cristo? MHSV VI

Ora, esta condição da vida e de tudo o que traz em si esta essência da vida não resulta de uma afirmação especulativa. É uma condição fenomenológica. Como tal, ela pode ler-se em cada uma das modalidades efetivas da vida. Uma alegria pode perfeitamente ser explicada por um acontecimento do mundo ou ser relacionada a ele; ela mesma pode, ademais, reportar-se a qualquer objeto ou causa exterior a ela, causa ou objeto que se destacam na tela do mundo. Mas a própria alegria não se ilumina na luz de nenhum mundo. Considerada em si mesma em sua afetividade pura e como o puro viver de alegria em que se esgota sua realidade, esta alegria não é senão uma modalidade patética da vida, um modo como a vida se experimenta. E isso vale para toda e qualquer modalidade da vida, desde a mais simples impressão.((A impressão só está situada no mundo ou no corpo objetivo em virtude de uma ilusão denunciada por Descartes  ; cf. Principes, I, 67: “Que amiúde mesmo nós nos enganamos julgando que sentimos dor em alguma parte de nosso corpo”.)) Se, porém, cada modalidade da vida considerada na imanência de seu viver traz em si a essência absoluta da vida, não sendo jamais nada além de um modo desta, de sua autofenomenalização patética e inextática, então a possibilidade de uma dissociação entre esse filho da vida que, EU transcendental vivente, sou EU mesmo por um lado, o Arqui-Filho por outro lado, e enfim a essência fenomenológica desta Vida absoluta, ou seja, Deus mesmo, implica um problema. MHSV VI

EU, ao contrário, EU transcendental vivente, extraio também minha essência da autoafecção. Enquanto EU, EU me afeto a mim mesmo, sou EU mesmo o afetado e o que o afeta, EU mesmo o “sujeito” desta afecção e seu conteúdo. EU me experimento a mim mesmo, e isso constantemente, enquanto esse fato de me experimentar a mim mesmo constitui meu EU. Mas EU não me pus a mim mesmo nesta condição de me experimentar a mim mesmo. EU sou EU mesmo, mas EU não sou EU mesmo por nada deste “ser EU mesmo”, EU me experimento a mim mesmo sem ser a fonte desta experiência. Sou dado a mim mesmo sem que esta doação decorra de mim de nenhum modo. EU me afeto e, assim, EU me autoafeto, sou EU, dizemos nós, que sou afetado e EU o sou por mim no sentido de que o conteúdo que me afeta sou ainda EU – e não algo diferente, o sentido, o tato, o querer, o desejar, o pensamento, etc. Mas esta autoafecção que define minha essência não é um feito meu. E assim EU não me afeto absolutamente, mas, para dizê-lo com rigor, EU sou e [153] me encontro autoafetado. Aqui se descobre para nós o sentido fraco do conceito de autoafecção, aquele que convém à compreensão da essência do homem, não à de Deus. MHSV VI

Como se relacionam um com o outro o sentido fraco e o sentido forte do conceito de autoafecção? Como o primeiro remete necessariamente ao segundo de modo que se funde nele? Nisso que o Si singular que EU sou não se experimenta a si mesmo senão no interior do movimento pelo qual a Vida se lança em si e frui de si no processo eterno de sua autoafecção absoluta. O Si singular se autoafeta, ele é a identidade entre o afetante e o afetado, mas ele próprio não pôs esta identidade. O Si só se autoafeta na medida em que a Vida absoluta se autoafeta nele. É ela, em sua autodoação, que o dá a ele mesmo. É ela, em sua autorrevelação, que o revela a ele mesmo. E ela, em seu estreitamento patético, que lhe permite estreitar-se pateticamente e ser um Si. MHSV VI

Assim se esclarece a passividade desse Si singular que EU sou, passividade que o determina de alto a baixo. Passivo, ele não o é somente com respeito a si mesmo e a cada uma das modalidades de sua vida, à maneira como cada sofrimento é passivo com relação a si e só é possível a este título, não tendo seu teor afetivo senão desta passividade cujo teor fenomenológico puro é a afetividade como tal. Passivo, o Si o é antes de tudo com respeito ao processo eterno de autoafecção da Vida que o engendra e não cessa de engendrá-lo. É esta passividade do Si singular na Vida que o põe no acusativo e faz dele um me e não um EU, esse Si que não é passivo com relação a si senão porque ele o é antes de tudo com relação à Vida e à sua autoafecção absoluta. MHSV VI

Mostra-se então esta evidência decisiva: se consideramos um vivente, no caso este Si transcendental que EU sou, não é simplesmente a partir da essência da Vida e porque ele traz em si esta essência que podemos compreendê-lo. Somente a análise desta essência da Vida, na medida em que implica a Ipseidade de um primeiro Si, permite captar como e porque está aberto nela, na Ipseidade deste Primeiro Si, um lugar para qualquer vivente concebível – na medida em que ele próprio só é possível como um Si. É assim que o Arqui-Filho precede todos os Filhos, não numa anterioridade factual que fosse objeto de uma simples constatação. Muito pelo contrário, o Arqui-Filho precede todos os Filhos como a essência preexistente e preestabelecida, sem a qual e fora da qual não poderia edificar-se algo como um Filho, isto é, como um Si vivente – como esse EU transcendental que sou. E de fato, se mergulhamos pelo pensamento na vida de um desses EUS transcendentais nascidos na Vida, é claro que ele tampouco tem, nem nunca teve, a capacidade de se impulsionar e de se estabelecer na Vida – e de tornar a si mesmo vivente –, nem, muito menos, nenhum desses EUS teria tido a força, a supor que a Vida tenha corrido nele como um caudal indeterminado, de reunir esta Vida a si e, assim a reunindo, edificar nela esta [157] Ipseidade a partir da qual somente ele é ele mesmo possível como Si, como este EU transcendental que EU sou. MHSV VI

Voltemos então à palavra mais extraordinária, a mais “louca” de Cristo, a fim de percebê-la agora em sua verdade apodictica – uma verdade tal, que quem quer que a compreenda não pode evitar afirmá-la. Esta palavra: “Antes que Abraão existisse, EU sou”. Ela significa que nenhum EU vivente transcendental é possível se não o é numa Ipseidade que ele pressupõe, longe de poder criá-la – e igualmente de ter criado sua própria vida –, Ipseidade cogerada na autoafecção da Vida absoluta e cuja efetividade fenomenológica é precisamente o Arqui-Filho. Primogênito na Vida e Primeiro Vivente, o Arqui-Filho detém a Ipseidade essencial em que a autoafecção da vida chega à efetividade. Mas é somente nesta Ipseidade e a partir dela que qualquer outro Si e, assim, qualquer EU transcendental como o nosso será possível. Assim, o Arqui-Filho detém em sua Ipseidade a condição de todos os outros filhos. Nenhum filho, nenhum EU transcendental vivente nascido na vida, nasceria desta vida se está não se tivesse previamente feito Ipseidade transcendental no Arqui-Filho. Assim, este precede necessariamente a qualquer Filho imaginável, ele é “o primogênito entre muitos irmãos” (Romanos 8,28-30). E isso porque é somente em sua Ipseidade e no Si originário que lhe pertence que a vida chega a cada vivente fazendo dele um EU – não chegando a ele senão a fazer dele um EU, este EU transcendental que EU mesmo sou. “Antes que Abraão existisse [mas isso quer dizer precisamente: antes de todo e qualquer EU transcendental, seja o de Abraão ou o de Davi], EU sou.” MHSV VI

Que um vivente não chegue à vida senão enquanto EU vivente e, assim, com a condição única de que nesta vida já se tenha edificado a Ipseidade originária da qual ele terá a possibilidade de ser, ele mesmo, um Si e um EU, aí estão que implicam as afirmações fundamentais do cristianismo concernentes ao homem: “Filho de Deus”, ele só pode sê-lo enquanto “Filho no Filho”. E esta tese decisiva que convém aprofundar. [158] MHSV VI

A afirmação segundo a qual o homem não chega à sua condição de EU transcendental vivo, isto é, de Filho da Vida, senão na medida em que, autogerando-se a si mesmo, esta Vida gerou em si a Ipseidade originária do Primeiro Vivente – essa afirmação que confere ao cristianismo sua fisionomia muito particular entre os outros monoteísmos é formulada de diversas maneiras. Trata-se ora de um pensamento subjacente a proposições cuja intenção explícita leva a outra parte, como no caso de preces ou de instruções espirituais cujo fim é a transformação da vida do fiel em vista de sua santificação e, em última instância, de sua participação na vida divina. Ou, ao contrário, a tese é enunciada de forma brutal, numa dessas declarações estupefacientes nas quais se constrói, no entanto, o que chamamos o núcleo essencial do cristianismo. A compreensão do nascimento transcendental do homem como sua geração no Primeiro Vivente, e não somente na Vida, é tão importante que, ali mesmo onde permanece velada sob um discurso edificante, o sentido deste não se descobre senão em referência à geração do Arqui-Filho. Esta aparece como condição de toda modificação que venha a afetar a história ou o destino de um EU transcendental vivo. MHSV VII

Se se considera o estilo da Epístola aos Efésios (1,3-6), que se propõe como um texto tipicamente religioso e destinado a crentes, e que ao mesmo tempo é oração a Deus e exortação ao fiel, não se pode desconhecer a temática inerente a esta espécie de ação de graças. Esta se dirige ao Pai, que deu aos homens o dom de sua condição de EU vivente, e isso no Cristo, tendo-os “eleito nele”, nesse Filho [161] Primogênito. Assim, o Arqui-Filho aparece como o lugar onde se dá o dom da Vida ao vivente, de modo que, carregado de ipseidade e buscando nesta a efetividade fenomenológica da Vida que ele transmite, esse dom determina a priori todo vivente fazendo dele um EU. A ipseidade de um Si e de um EU não é o que o dom comunica como algo que de certo modo lhe seria ainda exterior, mas pertence à doação como tal. Não sendo nunca a doação da vida algo diferente de uma autodoação, ela só pode cumprir-se na forma desta, na Ipseidade original que habita toda autodoação concebível. Não se trata somente do dom de Deus, não se trata somente do lugar onde ele se dá: trata-se da copertença originária e da interioridade recíproca da Ipseidade e da Vida o que desvela e exalta o estilo lírico de Paulo: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que nos abençoou com toda sorte de bênçãos espirituais, nos céus, em Cristo. Nele nos escolheu antes da fundação do mundo […]. Ele nos predestinou para sermos seus filhos adotivos por Jesus Cristo […] para louvor e glória da sua graça com a qual ele nos agraciou no Amado. Nele fomos feitos herdeiros…” (grifo nosso). “Herdeiros” quer dizer herdeiros da Vida, desta Vida que é a plenitude da graça e de todas as bênçãos: fora dela, não há nada, nela se tem a infinita fruição de si, a magnificência do viver. Herdeiros da Vida, nós não o somos, todavia, senão no Arqui-Filho; é nele e por ele somente que nós próprios nos tornamos filhos, os “filhos” adotivos da Vida, tornados filhos em sua Ipseidade essencial e por ela. MHSV VII

Outros textos de Paulo, mais breves mas não menos incisivos, designam sem equívoco a Cristo como a condição transcendental de todo EU possível, o próprio EU compreendido como EU transcendental vivente, isto é, portador da essência da Vida e podendo por isso mesmo definir-se, na linguagem fulgurante do Apóstolo dos incircuncidados, como “Templo de Deus”. Que Cristo funda a condição em que cada homem é Templo de Deus é o que é dito sem equívoco: “Quanto ao fundamento, ninguém pode pôr outro diverso do que foi posto: Jesus Cristo […]. Não sabeis que sois Templo [162] de Deus e que o espírito de Deus habita em vós […]. Porque o Templo de Deus é santo e esse Templo sois vós” (1 Coríntios 3, respectivamente, 11 e 16-17). MHSV VII

É mais brevemente ainda que, na Epístola aos Efésios, nosso nascimento transcendental é referido a Cristo como nascimento conjunto de um EU e de um vivente, de um EU que encerra em si a Vida e, assim, é “Templo” ou, ainda, “Habitação de Deus”. “Nele sois coedificados para serdes habitação de Deus, no Espírito” (ibidem, 2,22). E deste modo que, tendo sido “criados em Cristo Jesus” (ibidem, 2,10), tendo seu Si de sua Ipseidade, encontrando seu fundamento nele e não sendo possíveis sem ele, esses EUS transcendentais são ditos “coerdeiros” (ibidem, 3,6). Eles não recebem em partilha a herança da Vida enquanto Filhos de Deus senão na medida em que têm esta herança do Arqui-Filho e de sua Ipseidade essencial, disso que, do ponto de vista sacramental, será designado como sua carne. Essa imbricação, no nascimento transcendental dos EUS transcendentais, da herança de Cristo na de Deus, imbricação onde se lê “a insondável riqueza de Cristo” (ibidem, 3,8), tal é segundo o Apóstolo a economia do mistério oculto desde a origem dos séculos (ibidem, 3,61). MHSV VII

Ora, esta relação constitui precisamente o tema oculto da parábola de João. Nesta, com efeito, Cristo não intervém apenas como pastor das ovelhas, ele é ainda a porta do redil onde elas estão: “EU sou a porta” (João 10,9). Se Cristo é a porta do redil onde estão as ovelhas, é porque o acesso a todo EU transcendental concebível reside na Ipseidade original em que somente algo como um Si e como um EU é possível. Ora, tal proposição, que situa o acesso ao EU numa Ipseidade mais antiga que ele, faz tremer todo olhar capaz de perceber nisso suas implicações abissais – na medida precisamente em que ela tem em vista todo EU transcendental, tanto o meu quanto o de outro homem, para não falar aqui senão dos filhos. MHSV VII

No que concerne a meu próprio EU, a proposição quer dizer que EU não tenho acesso a mim mesmo e, assim, que não posso ser EU mesmo senão passando pela porta do redil. EU não sou EU mesmo e não posso sê-lo senão através da Ipseidade original da Vida. Essa é a carne patética desta Ipseidade em que a Vida se junta a si mesma, é ela que me une a mim mesmo de modo que EU seja e possa ser esse EU que sou. Não posso pois unir-me a mim mesmo senão através de Cristo, na medida em que ele juntou a ela mesma a Vida eterna, fazendo-se nela o primeiro Si. A relação consigo que faz de todo EU um EU é o que o torna possível. E, em linguagem filosófica, sua condição transcendental. E enquanto ele tem sua possibilidade dessa relação de si consigo que o próprio EU é um EU transcendental. Cristo, porta do redil onde pastam as ovelhas, onde os EUS transcendentais são EUS transcendentais, Cristo é sua condição transcendental. Jamais nenhum EU transcendental seria dado a ele mesmo, jamais ele chegaria a si de modo que pudesse, nesse chegar constantemente a si, ser um Si se a Ipseidade fenomenológica original do Primeiro Si da Vida não lhe fornecesse a substância de sua própria ipseidade. Assim, não há Si, isto é, relação consigo, senão na primeira relação consigo da Vida e no Si [165] dessa primeira relação. Não é possível nenhum si que não tenha como sua substância fenomenológica, como sua carne, a substância fenomenológica e a carne do Arqui-Filho. MHSV VII

Tal é o sentido da parábola segundo a qual Cristo é a porta do redil onde pastam as ovelhas. Cristo não é, antes de tudo, o intermediário entre o homem e Deus. Cristo é antes de tudo o intermediário entre cada EU e ele mesmo, essa relação consigo que permite a cada EU ser um EU. Essa relação não é uma relação abstrata, redutível a uma conceptualização formal. Ela tem, como dissemos, uma concretude fenomenológica, uma carne. Se a relação consigo em que se edifica todo EU concebível é a Ipseidade original do Arqui-Filho que junta cada EU a ele mesmo, tal relação é ao mesmo tempo a relva onde pastam as ovelhas, a relva que as nutre e assegura seu crescimento. Pois todo EU que se relaciona consigo se incrementa de si mesmo, se infla de seu próprio conteúdo. Este incremento de si em todo EU possível, esta autoafecção em que ele toca a si em cada ponto de seu ser, é precisamente sua carne, sua carne fenomenológica, sua carne vivente. Em minha carne vivente sou dado a mim mesmo e, assim, EU sou um EU, EU sou EU mesmo. Mas não fui EU quem me deu a mim mesmo, não sou EU que me junto a mim mesmo. EU não sou a porta, a porta que me abre para mim. Não sou a pastagem, a pastagem com que cresce minha carne. Em minha carne, fui dado a mim mesmo, mas não sou minha própria carne. Minha carne, minha carne viva é a de Cristo. Assim fala Aquele cuja palavra João relata: “EU sou a porta. Se alguém entrar por mim […] entrará e sairá e encontrará pastagem…” (João 10,9). MHSV VII

Ora, a porta do redil que, no dizer da estranha parábola, dá acesso ao lugar onde pastam as ovelhas, fundando assim a Ipseidade transcendental em que cada EU, relacionando-se consigo e incre-mentando-se de si, encontra a possibilidade de ser um EU, esta porta, como lemos, dá acesso ao conjunto dos EUS transcendentais viventes – não a um só deles, àquele que EU próprio sou. Cristo não está em mim somente como a força que, esmagando-me contra [166] mim, faz sem cessar de mim um EU. Cada EU só advém a si mesmo deste modo, na potência formidável deste estreitamento em que ele se autoafeta de modo contínuo. Por isso a porta se abre para todos os viventes. Dar acesso a cada um deles só é possível através de Cristo. E é preciso compreender com todo o rigor o que tal proposição significa. Se o acesso a todo EU concebível pressupõe sua vinda a si mesmo, valendo-se de uma Ipseidade prévia que não procede dele, mas da qual ele procede, então, com efeito, ter acesso a esse EU quer dizer tomar a via desta vinda prévia de que ele resulta – transpor a porta, atravessar a parede incandescente desta Ipseidade original em que arde o fogo da Vida. Não é possível chegar até alguém, atingi-lo, senão através de Cristo. Através da Ipseidade original que o relaciona consigo mesmo, fazendo dele um Si – esse alguém, esse “EU” que ele é. Não é possível tocar uma carne senão através de uma Carne original, que em sua Ipseidade essencial dá a essa carne o sentir-se a si mesma e experimentar-se a si mesma, lhe dá o ser uma carne. É impossível tocar esta carne sem tocar a outra carne que fez dela uma carne. E impossível ferir alguém sem ferir a Cristo. E é Cristo quem o diz: “O que fazeis ao menor dentre vossos irmãos, é a mim que o fazeis” (Mateus 25,35). MHSV VII

Não se trata de metáfora. A palavra não quer dizer: o que fazeis a um de vossos irmãos é como se vós o fizésseis a mim. No cristianismo, não há metáforas, nada que seja da ordem do “como se”. E isso porque ao cristianismo só importa a realidade, não o imaginário ou símbolos. Um “EU” não é como se fosse um “EU”. Este EU que EU sou não é como se fosse o meu EU. Nesse caso, ele poderia muito bem ser como se fosse o de outro, outro EU. Essas derivas imaginárias pertencem às representações febris da doença, notadamente da doença da vida em que cada um se volta contra si e já não quer ser aquele que ele é, identificando-se em caso de necessidade, para fazê-lo, com outro. Longe de porem em causa o irremediável de um EU ancorado para sempre em si mesmo, as derivas imaginárias o pressupõem. Mas o EU não está ancorado em si mesmo para sempre senão pela [167] força da Ipseidade essencial que, dando-o a ele mesmo e ligando-o a ele mesmo em seu estreitamento patético, fez dele esse EU que ele é para sempre. Antes pois que este EU fosse, a Ipseidade original do Arqui-Filho o lançou em si mesmo. Sem esta Ipseidade que o precede, nenhum EU jamais seria. EU, portanto, se tenho que ver comigo, tenho antes de tudo que ver com Cristo. E, se tenho que ver com outro, tenho antes de tudo que ver com Cristo nele. E tudo o que EU lhe faço, faço-o antes de tudo a Cristo. A significação dessas implicações que sustêm a ética cristã aparecerá mais tarde. MHSV VII

Extraordinária é, pois, a hipótese formulada pela parábola, a de atingir um EU qualquer, o meu ou o de outro, sem passar pela Ipseidade essencial de que esse EU tem sua possibilidade. O que tal possibilidade põe em causa, é preciso vê-lo bem, não é nada menos que o conjunto das intuições fundamentais do cristianismo, as que concernem à autogeração da vida como geração de uma Ipseidade original, a única em que todo EU transcendental vivente se edifica, por sua vez, enquanto Filho de Deus e “Filho no Filho”. Haverá algum vivente que passe sem a vida, um EU sem a Ipseidade original de um Si nele? MHSV VII

O texto joanino conhece então suas maiores tensões, a cólera de Cristo rebenta, semelhante à que Rubens pintou no quadro de Bruxelas quando, saltando nas nuvens, tendo o relâmpago na mão e brandindo-o sobre o mundo, ele está prestes a aniquilá-lo: “Aquele que não entra pela porta do redil, mas nele penetra por outra parte, é ladrão e assaltante” (João 10,1). Tem-se então a declaração estupefaciente: “Todos os que vieram antes de mim são ladrões e assaltantes” (João 10,8). Ninguém veio antes de Cristo. “No princípio era o Verbo”; “Antes que Abraão existisse, EU sou”; “Davi lhe chama Senhor”. Ora, essas não são, relembremos, simples afirmações. Trata-se de proposições fenomenológicas de validez apodíctica e de que nós dissemos que qualquer pessoa que perceba o estado de coisas que elas visam é obrigado a afirmá-las. Ninguém veio antes de Cristo quer dizer que ninguém podia vir antes dele, e isso porque nenhum EU é possível a não ser na Ipseidade que engendra [168] a Vida absoluta experimentando-se a si mesma em sua autoafecção original. Pois não há autoafecção que não traga em si uma ipseidade como aquilo que sem o qual ela jamais se cumpriria. Do mesmo modo os EUS, os que têm acesso a si mesmos e se apossam de seu ser próprio, ou ainda os que têm acesso aos outros e estão em relação com eles – esses, todos esses não fazem em nenhum momento a economia da ipseidade que os dá a eles mesmos, permitindo-lhes assim ser EUS. O que quer que diga e o que quer que faça, todo EU já faz uso em si de uma ipseidade em poder da qual ele não entra de modo algum; ele já se apropriou do que não lhe pertence: é um ladrão e um criminoso. Ladrões e criminosos são aqueles, são todos aqueles que não dobraram o joelho diante do que neles os deu a eles mesmos, que entraram no redil ou apascentam as ovelhas sem passar sob o Arco triunfal, escalando a paliçada de maneira vergonhosa, na noite de sua cegueira. Em que condições se produz e pode produzir-se tal roubo, em que noite? Que espécie de cegueira o acompanha e o torna possível, aí está o que estará em questão. Por ora, nesse ponto a que a análise fenomenológica nos conduziu, importa medir que formidável pensamento sobre o indivíduo o cristianismo traz em si, ainda que, e sobretudo, do ponto de vista filosófico esse aporte ainda permaneça largamente inexplorado. MHSV VII

Convém, pois, aqui, fazer explodir essa pretensa unidade do princípio que individualiza. Unidade impossível se se trata de um princípio fenomenológico que remete como tal à essência da fenomenalidade e da verdade. Mais precisamente, à antinomia maior segundo a qual a fenomenalidade se cinde segundo os dois modos de fenomenalização que são a verdade do mundo e a Verdade da Vida. O que individualiza qualquer coisa como o Indivíduo que cada um de nós é, em sua diferença com respeito a todo e qualquer outro – cada EU e cada ego transcendental para sempre distinto e insubstituível –, não se encontra em lugar nenhum do mundo. A individualidade do Indivíduo não tem nada que ver com a de um [175] ente, a qual, aliás, não existe, não resultando nunca de outra coisa além da projeção antropomórfica do que encontra sua condição na essência única da individualidade. E assim é precisamente porque, afinal de contas, o princípio que individualiza é tão único quanto o que ele conduz, a cada vez, à condição que é a sua. Não há individualidade do ente, mas somente uma designação exterior espaciotemporal que torna possível uma eventual determinação paramétrica ulterior. Só há individualidade do Indivíduo. A individualidade do Indivíduo só existe como sua ipseidade. Só há Ipseidade na vida. A Ipseidade não se encontra na vida como a relva no campo ou a pedra no caminho. A Ipseidade pertence à essência da Vida e à sua fenomenalidade própria. Ela nasce no processo de fenomenalização da vida, o processo de sua autoafecção patética, e como o modo mesmo segundo o qual esta se cumpre. A Ipseidade é a do Arqui-Filho transcendental e só existe nele, como o que engendra necessariamente nela a vida que se engendra a si mesma. A Ipseidade está com a vida desde seu primeiro passo; ela pertence ao primeiro nascimento. Ela se encontra neste Arquinascimento, torna-o possível, não é inteligível senão em sua fenomenologia. A Ipseidade é o Logos da Vida, esse em que e como a Vida se revela revelando-se a si. A Ipseidade está no princípio e vem antes de todo e qualquer EU transcendental, antes de todo e qualquer Indivíduo. Antes de Abraão. Mas todo e qualquer Indivíduo procede desta Ipseidade e só é possível nela. Nesta Ipseidade de antes do mundo. Nesta Ipseidade tão antiga como a vida, eterna como ela. Se por homem entendemos, como se faz habitualmente, o indivíduo empírico, esse cuja individualidade decorre das categorias do mundo, do espaço, do tempo, da causalidade, em suma, se o homem é este ser do mundo inteligível na verdade do mundo, então é preciso resignar-se: este homem não é uma Ipseidade, ele não traz em si nenhum Si, nenhum “EU”. O indivíduo empírico não é um Indivíduo e não pode sê-lo. Um homem que não é um Indivíduo e que não é um Si não é um homem. O homem do mundo é apenas uma ilusão de ótica. O “homem” não existe. [176] MHSV VII

A falência de toda e qualquer concepção mundana do homem dá novamente às teses à primeira vista desconcertantes dessa fenomenologia radical da vida que é o cristianismo sua profundidade abissal. Homem que seja de fato um homem, que possa ser um homem – homem que seja um Indivíduo, um Si e um EU –, só há, com efeito, em Cristo, a saber, na Ipseidade original, coengendrada pela Vida em seu autoengendramento. Esta inteligência do homem como Filho da Vida no Arqui-Filho e na Ipseidade original desta Vida faz caduca e até um pouco ridícula a concepção de homem da ideologia objetivista moderna, seja a do senso comum ou a do cientificismo, sendo o primeiro, aliás, largamente pervertido pelo segundo. MHSV VII

O nascimento transcendental do vivente recebe aqui de modo completamente explícito sua determinação precisa: ser um Vivente na Vida, sem dúvida e somente por ela. A vida dá um lugar a todo vivente concebível. Assim, ela contém a priori, em sua essência, a multidão indefinida de todos os que ela pode chamar à vida. “Na casa de meu Pai há muitas moradas” (João 14,2). Mas cada uma dessas moradas é semelhante ao redil onde pastam as ovelhas. Para cada uma não há de início senão o Arco da Arqui-Ipseidade. A Vida ipseidada na Arqui-Ipseidade do Arqui-Filho prepara o lugar de modo que um lugar está pronto para cada vivente concebível enquanto EU vivente – enquanto chegando a si mesmo na Ipseidade desse EU; e isso porque vive uma Vida chegada a si na Ipseidade original do Primeiro Vivente. “… Pois vou preparar-vos um lugar, e quando […] vos tiver preparado o lugar, virei novamente e vos levarei comigo, a fim de que, onde EU estiver, estejais vós também” (João 14,2). Assim, não há lugar para um vivente na vida sem que esta esteja previamente edificada em si como uma Ipseidade em que só o vivente que vive dessa vida ipseidada é, por isso mesmo, possível como um EU vivente. Ao fim e ao cabo, não há lugar em parte alguma senão para tal EU. MHSV VII

Como o EU é o Caminho quando esse Caminho que conduz à Vida é a própria vida, sua autorrevelação – eis a questão. Com esta precisão, ou antes, esta lembrança: este EU que é o Caminho não é um EU transcendental qualquer, um EU qualquer entre nós. Este EU é o do Arqui-Filho, e é somente ele que é o Caminho. Deste Caminho que é o Arqui-Filho, qual é a essência, e a que conduz ele? Sua essência é a Ipseidade transcendental original gerada pela Vida em sua autogeração. Assim, ele é o Caminho que conduz a vida a ela mesma, tanto o estreitamento do Pai consigo quanto seu estreitamento com o Filho e o estreitamento deste Filho com seu Pai. Elucidamos esta relação de interioridade recíproca, mas não é dela que se trata aqui. [180] MHSV VII

Manifestamente, a palavra que comentamos se dirige aos homens. É a eles que Cristo diz: “EU sou o Caminho”. É para eles que ele é este Caminho, o Caminho que os conduz à Vida, e é o que nós compreendemos. Pois a Vida não vem a eles, não vem a eles para fazer deles viventes, senão enquanto ela se fez Ipseidade no Arqui-Filho. Não é uma vida selvagem, anônima, inconsciente, vida que precisamente não existe, e não poderia existir dessa forma, que pode comunicar-se a um vivente qualquer. Mas somente esta vida que, por estreitar-se a si mesma em sua Ipseidade original, pode portanto dar-se como uma vida fenomenologicamente efetiva, uma vida que traz sua ipseidade a cada vivente, que poderá viver desta vida ipseidada como um EU vivo e deste modo somente. Assim, o Caminho que conduz os viventes à Vida é esta vida tornada vivente em sua Ipseidade original, a Vida do Arqui-Filho. E esta vida em sua Ipseidade original que é designada pela palavra: “EU”. MHSV VII

Do cruzamento das duas vias sob o Arco onde fulgura a Vida – a via que conduz da Vida ao vivente, e a que conduz o vivente à Vida – não resulta nenhuma reciprocidade entre estes dois termos, entre a Vida e o vivente. A reciprocidade só concerne à relação de interioridade da Vida absoluta e do Arqui-Filho, na medida em que a Ipseidade em que Deus se estreita eternamente é a do Arqui-Filho que se encontra gerado desse modo. Da Ipseidade da Vida absoluta ao EU de cada vivente, a relação não implica nenhuma reciprocidade desse tipo, o caminho não pode ser percorrido nos dois sentidos. Deus poderia muito bem viver eternamente em seu Filho e este em seu Pai sem que nenhum outro vivente jamais viesse à Vida. Ao passo que a vinda de qualquer outro vivente à Vida, o nascimento transcendental de um EU qualquer, implica, ao contrário, a Ipseidade e, assim, a geração do Arqui-Filho na Vida absoluta. MHSV VII

Essa dissimetria marca a distância infinita que separa Cristo dos outros homens. E esta distância, aliás, o que Cristo não cessa de lembrar-lhes, no fundo, em cada uma de suas palavras e, assim, ao longo de todos os Evangelhos. A dissimetria, todavia, não deixa reconhecer de início sua verdadeira significação. Cristo parece opor-se aos homens compreendidos como seres naturais. Assim, a [182] filiação natural que parece convir a eles e que os dispõe no tempo do mundo segundo a ordem das gerações – José filho de Eli, filho de Matat, filho de Amós… – é brutalmente recusada e rompida por Cristo no que lhe concerne, como longamente estabelecemos. “Antes… Abraão… EU.” Senhor de Davi. E enquanto Arqui-Filho engendrado antes da criação do mundo que Cristo, ao que parece, se separa radicalmente dos próprios homens, que eles “vêm ao mundo” e assim só aparecem nele. Mas quando, segundo o ensinamento do cristianismo, o homem é compreendido por sua vez enquanto Filho, sendo assim sua essência arrancada à verdade do mundo e retomada como a da Vida, a oposição entre Cristo e os homens já não pode repousar sobre o caráter natural destes últimos. Precisamente já não são seres naturais, já não pertencem ao mundo e já não se mostram nele. O homem natural é interditado no tempo mesmo em que sua condição de Filho é posta. E pois no plano da própria vida que se abre o abismo que separa Cristo dos homens, e é nesse plano que ele deve ser compreendido. E o que a análise do homem enquanto filho no Filho justamente estabeleceu. Algo como um EU vivente, um EU transcendental vivente, como nós o chamamos, só existe na Ipseidade original da Vida absoluta e por ela. “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui EU que vos escolhi” (João 15,16). Ou seja, o mesmo que, em sua Ia Epístola, João formula desta maneira: “Quanto a nós, amemos, porque ele nos amou primeiro” (4,19). Que a Vida só chegue a cada vivente através da Ipseidade original em que ela se dá a si mesma é o que o contexto põe não menos claramente: “… Que o Pai vos dá tudo […] em meu nome”. MHSV VII

A reversibilidade da Vida e de sua Ipseidade – do Pai e do Filho – em sua interioridade recíproca opõe-se pois radicalmente a irreversibilidade da relação do Arqui-Filho com todos os que tiverem dele e de sua Ipseidade original a possibilidade de seu Si e de seu EU. Esta irreversibilidade, todavia, não é um indício negativo. Antes, ela encerra em si um acontecimento extraordinário, a maravilha das maravilhas. Nesta Arqui-Ipseidade da Vida não só advém a [183] possibilidade de cada vivente enquanto EU transcendental vivente, mas ainda há o fato de que, graças a esta ipseidade em que ele se relaciona consigo mesmo, toca cada ponto de seu ser, se experimenta a si mesmo e frui de si, este vivente não é apenas um EU, mas este, este EU irredutível a qualquer outro, que experimenta o que ele experimenta e sentindo o que sente, à diferença de todo e qualquer outro. Não porque o que ele experimenta seja diferente do que todos os outros experimentam ou porque o que ele sente seja diferente do que todos os outros sentem, mas porque é ele que o experimenta e é ele que o sente. Ele, o irredutivelmente diferente no seio de uma só e mesma Vida, de uma só e mesma Ipseidade. E isso porque é tal a essência da Arqui-Ipseidade gerada na Vida absoluta, que, dando a todo aquele a que ela se dá o experimentar-se a si mesmo, ela faz dele, na efetividade fenomenológica deste experimentar-se a si mesmo, um Si absolutamente singular e diferente de todos os outros. MHSV VII

Assim, a geração do Arqui-Filho na autogeração da Vida absoluta se reproduz de certo modo em cada nascimento transcendental na medida em que esta, uma só e mesma Vida autoexperimentando-se em sua Ipseidade original e por ela, dá nascimento a tantos EUS irredutivelmente diferentes e novos – a Indivíduos que não são nada semelhantes entre si, nenhum dos quais foi precedido por um Indivíduo que lhe fosse comparável de algum modo, nenhum dos quais será seguido por outro que se avantaje a ele por pouco que seja e ponha em causa sua irredutibilidade e sua diferença com respeito a todos os outros – ele, que é este Si singular, para sempre diferente, para sempre novo. ((A compreensão da essência verdadeira do homem como Si transcendental radicalmente singular e irredutível a qualquer outro desqualifica o discurso cientificista sobre o homem, e, por exemplo, estas declarações de François Jacob: “Talvez também se chegue a produzir à vontade, em tantos exemplares como desejado, a cópia exata de um indivíduo, de um político, de um artista, de uma rainha de beleza, de um atleta, por exemplo. Nada impede que se apliquem desde agora aos seres humanos os processos de seleção utilizados para os cavalos de corrida, para os camundongos de laboratório ou para as vacas leiteiras” (La Logique du Vivant, op. cit., p. 344). A ideia de indivíduos idênticos parece tranquila se não se trata de “indivíduo” no sentido humano, de um Si transcendental, que por essência é único. O que vem na condição de se experimentar a si mesmo se encontra, com efeito, em razão de sua singularidade absoluta que pertence a todo experimentar-se a si fenomenologicamente efetivo, na condição de ser ele mesmo absolutamente singular. Dois indivíduos biológicos rigorosamente idênticos seriam, enquanto Sis transcendentais, radicalmente diferentes. Vê-se por este exemplo crucial como é pouco “científico” pretender definir o homem do ponto de vista da biologia, da química ou da física  , isto é, ignorando no princípio o que faz dele um homem, a saber, sua ipseidade. A individualidade que se confere do ponto de vista biológico ao indivíduo biológico é apenas a de uma coisa – uma individualidade “mundana”, totalmente estranha à ipseidade sem a qual não há nem Si, nem EU, nem homem.)) [184] MHSV VII

A interpretação do homem como “filho de Deus”, mais precisamente como “Filho no Filho”, é carregada de implicações múltiplas. Antes de buscar a elucidação destas, uma questão, todavia, parece não poder ser diferida. Se os homens são esses Filhos de Deus em Cristo, como explicar que tão pequeno número deles o saiba e recorde? Se eles trazem em si esta Vida divina e sua imensidão, porque não há outra Vida além daquela e por que os viventes não têm de ceder senão sob sua profusão, como compreender que eles sejam [186] tão infelizes? Porque, afinal de contas, não são as tribulações que vêm deste mundo o que os angustia. É consigo, na realidade, que eles estão tão descontentes. É sua própria incapacidade de realizar seus desejos e seus projetos, são suas hesitações, sua fraqueza, sua falta de coragem o que provoca no fundo deles mesmos o mal-estar que os acompanha ao longo de toda a sua lúgubre existência. Se eles não cessam de atribuir às circunstâncias ou aos outros a causa de seu fracasso, não o fazem senão para enganar-se a si mesmos e esquecer que tal causa está neles. Como diz Kierkegaard  , não é por não se ter tornado César que alguém se desespera, mas por esse EU que não se tornou César. Mas como desesperar esse EU se ele não é nada menos que a vinda a nós de Deus em Cristo? Tal desespero só é possível se, de um modo ou de outro, o homem esqueceu o esplendor de sua condição inicial, de sua condição de Filho de Deus – de sua condição de “Filho no Filho”. E esse esquecimento que é preciso tentar compreender. [187] MHSV VII

Falando de nós mesmos e acerca de tudo, portanto, constantemente dizemos “EU”, “me”. Os homens que fazem, assim, um uso espontâneo do pronome pessoal, intervenha ele no nominativo ou no acusativo, não se preocupam em saber por que se designam constantemente assim nem que saber lhes permite fazê-lo. E, no entanto, tal saber deve existir em algum lugar, porque se cada um ignorasse que é um EU e mais precisamente este eu-aqui, como poderia pensar-se e apresentar-se como tal? Em um sentido, este saber é tão comum, que parece quase ridículo falar dele. Porque você diz “EU” ao falar de si mesmo, e o que tem no espírito ao dizer isso e pensando em si mesmo? Por mais trivial que seja essa questão, não há ninguém, por assim dizer, que seja capaz de responder a ela. Essa é sem dúvida a razão por que ela é afastada com um dar de ombros. Quanto aos filósofos, eles não sabem mais. Suas observações a esse respeito, não se ouse dizer suas análises, parecem curtas e precárias, para não dizer irrisórias. O que chama atenção nos textos, no fundo, muito raros em que a questão do EU é tratada de frente é que, a cada vez, esse EU e o saber que se tem dele são pura e simplesmente pressupostos. Mas essa pressuposição é a tal ponto privada de fundamento, que chega a suceder que a existência desse EU seja negada; ou, ainda, é o saber que se tem dele e pois que ele tem de si mesmo que se encontra contestado, sendo reputado incerto e até puramente falacioso. Para dizer a verdade, com respeito a tudo o que concerne ao EU e aos problemas ligados a ele, a filosofia não sabe nada. E nós veremos por quê. MHSV VIII

Deste EU singular que EU sou, que cada um dos homens se vê ser, o único saber de que a humanidade dispõe não provém justamente [191] dela. Não é o homem que sabe que é um EU nem em geral o que é um EU, não é o homem que sabe o que faz dele um homem. Este saber, é a Vida que o detém, e somente ela. No plano do pensamento, é paradoxalmente o cristianismo que o traz. Velhas crenças religiosas de dois mil anos ou mais, para não dizer superstições, aí está a única coisa que pode instruir o homem sobre ele mesmo nos dias de hoje. Ao mesmo tempo, o sistema conceituai laborioso das filosofias, por um lado, e as investigações das ciências positivas, por outro, com suas metodologias complexas e elaboradas, só podem desviar o homem do que ele verdadeiramente é, a ponto de fazê-lo perder toda noção do que ele é e, ao mesmo tempo, toda confiança em si mesmo, toda e qualquer forma de certeza. A esta confiança e a esta certeza não sucederam senão o desassossego e o desespero. Quanto mais as ciências positivas se desenvolvem e se orgulham de seus progressos fulgurantes, quanto mais a filosofia fala alto e forte, com seus cortes epistemológicos, suas problemáticas revolucionárias e suas desconstruções de todos os tipos, menos o homem tem ideia do que ele é. E isso porque o que faz dele um homem, a saber, o fato de ser um EU, é precisamente o que se tornou totalmente ininteligível para os pensadores e para os cientistas de nosso tempo. MHSV VIII

Que o homem seja um EU e antes de tudo um si, mais precisamente este si e este EU que ele é à diferença e com exclusão de todo e qualquer outro, é o que a tese cristã do homem como Filho estabelece: Filho gerado na Vida fenomenológica absoluta que é a do próprio Deus. E porque o pensamento e a ciência modernos, notadamente a biologia, não sabem nada desta Vida transcendental – a única Vida que existe – que eles não sabem mais nada do EU do homem. As pessoas sabem que, a despeito dos saberes terroristas sob os quais elas são oprimidas e pelos quais se tenta desde a escola condicionar-lhes o espírito, continuam a dizer: EU, me. Mas elas já não sabem por que o dizem, e abaixariam os olhos se porventura um desses cientistas ou desses psicólogos informados lhes perguntasse por quê – hipótese pouco verossímil, aliás, por não terem estes últimos nenhuma ideia [192] disso. A possibilidade de dizer “EU”, “me”, ou, mais radicalmente, a possibilidade de que exista algo como um EU e como um me, um EU e um me vivo e que seja, a cada vez, este aqui ou aquele lá, o meu ou o teu, esta possibilidade só é inteligível na Vida fenomenológica absoluta em cuja Ipseidade se engendram todo e qualquer Si e todo e qualquer EU concebíveis. Esta é a tese do cristianismo sobre o homem: ele não é um homem senão enquanto é um EU, e ele não é um EU senão enquanto é um Filho, um Filho da Vida, isto é, de Deus. MHSV VIII

Mas o que temos de compreender agora já não é esta geração do EU na Vida de Deus. A questão é, antes, saber por que o homem perdeu a noção de sua essência verdadeira, por que, segundo a observação de Plotino  , os filhos já não sabem que são filhos. A origem dessa ignorância do homem a respeito de si mesmo se encontra numa ideologia perversa ou em alguma razão mais profunda de que essa mesma ideologia não seria senão uma expressão entre outras? Esta segunda hipótese, para dizer a verdade, é a correta. A ignorância do homem a respeito de sua verdadeira condição não provém de uma causa exterior ou passageira. Ela se enraíza antes no próprio processo em que a vida gera em si o EU de todo e qualquer vivente concebível. E no interior desse processo da vida que se faz Ipseidade, Si e EU que convém percebê-la e tornar a apreendê-la. Assim, a ocultação da condição de Filho coincide, de modo à primeira vista paradoxal, com a própria gênese desta condição. É no movimento desta gênese que se dissimula em que e por que cada um de nós é, a cada vez, esse EU que ele é. E no nascimento do EU que está a razão oculta pela qual esse EU não cessa de esquecer este nascimento, ou seja, precisamente sua condição de Filho. MHSV VIII

E pois esse processo de nascimento dos filhos que deve ser objeto de uma elucidação mais ampla. Nesta aparece uma dissociação admirável dos dois conceitos sob os quais o homem se define constantemente a si mesmo, o de EU e o de ego. EU e ego, com efeito, não são a mesma coisa, ainda que o pensamento clássico deslize de um para o outro na mais extrema confusão e sem sequer ver que [193] há, nesta dupla designação do Si, e por mais constante que seja, ao menos um problema. “EU” diz o Si gerado na Ipseidade original da Vida, mas o diz no acusativo. Que o Si singular se diga antes de tudo e deva dizer-se no acusativo traduz precisamente o fato de que ele é engendrado, não se tendo ele próprio trazido à condição que é a sua, não se experimentando a si mesmo como um Si e não tendo esta experiência de si senão na autoafecção eterna da Vida e de sua Ipseidade original. Porque este engendramento do EU na autoafecção da Vida é fenomenológico em sentido radical, a vinda do EU a si mesmo, que repousa sobre a vinda da Vida a si mesma, é vivida como tal, como no fundo passiva com respeito a esta vinda primitiva da Vida. Nós vimos que o EU é o que se autoafeta, mas, sendo-lhe imposta esta autoafecção pela Vida e não sendo nele senão a da Vida, seria preciso dizer de maneira mais exata que ele é constantemente autoafetado. E esse caráter de ser autoafetado do Si o que designa sua colocação no acusativo, no me. EU, afinal de contas, significa isto: em cada EU, sua ipseidade não procede dele, mas é ele que procede dela. MHSV VIII

E aqui que convém acompanhar mais profundamente o processo de nascimento transcendental do EU na Ipseidade da Vida absoluta, a fim de compreender como, por uma mutação tão decisiva quão despercebida, esta geração do EU se torna a de um ego. Na medida em que, com efeito, engendrado na autoafecção da Vida absoluta, o EU se experimenta a si mesmo passivamente sobre o fundo da Ipseidade original da Vida que o dá a ele mesmo e faz dele a cada instante o que ele é, este EU é, ao mesmo tempo, muito mais que o que se designa como um EU. Experimentando-se a si mesmo na Ipseidade da Vida, ele entra em posse de si mesmo e ao mesmo tempo de cada um dos poderes que o atravessam. Entrando em posse desses poderes, ele está em condição de exercê-los. É-lhe conferida uma nova capacidade, não menos extraordinária que aquela de ser um EU, pelo fato de que é sua simples consequência. É a capacidade do EU de estar em posse precisamente de si, de não constituir senão algo uno com ele e com [194] tudo o que ele traz em si e que lhe pertence como os múltiplos componentes de seu ser real. Entre esses componentes, há os poderes do corpo, por exemplo. O poder de pegar, de se mover, de tocar, de bater, de levantar, de operar seus membros do interior, de mexer os olhos, etc. Há também os poderes do espírito: o poder de formar ideias, imagens, o poder de querer, etc. Não há diferença de natureza entre todos esses poderes, pertencendo uns e outros ao EU porque ele é um EU. E nesta experiência patética que ele faz de cada um desses poderes que ele coincida com eles. E porque coincide com eles que ele está em condições de pô-los em ação e, assim, de agir. Agir, exercer cada um dos poderes que compõem seu ser só é possível a um EU que entrou em posse de cada um de seus poderes. Que entrou em posse de cada um deles na medida em que está antes de tudo em posse de si. Que entrou em posse de si graças à experiência patética que ele faz de si mesmo na Ipseidade original da Vida absoluta. Tudo isso se cumpriu na gênese transcendental do EU. E eis, no termo desta gênese, o EU posto em posse de si mesmo e de todas as suas capacidades. Na medida em que ele avança, pois, armado de todos os seus poderes e pondo-os à sua disposição, este EU que tomou posse de si mesmo e de tudo o que ele leva em si é um EU. MHSV VIII

Se “EU” quer dizer “EU Posso” – “EU Posso” exercer cada um dos poderes que encontro em mim, e isso porque, coincidindo com ele, situado no interior dele de certo modo, EU disponho dele, com efeito, e posso exercê-lo quando me aprouver e com tanta frequência quanto EU quiser –, impõe-se uma distinção essencial. Pois a relação do EU com cada um de seus poderes não pode permanecer na obscuridade e na indeterminação de uma identidade afirmada demasiado rápido. Duas espécies de poderes intervém aqui – poderes não apenas opostos, mas, na realidade, ao fim e ao cabo diferentes. Esses poderes, por um lado, a que chamamos pegar, mover-se, sentir, imaginar, querer, e que, com efeito, estão em posse de nós, à nossa disposição. Cada um deles, na medida em que EU o exerço, é vivido por este EU como seu. Trata-se de uma experiência incontestável que o faz dizer justamente EU pego, EU caminho, EU sinto, EU imagino, EU quero, EU não quero. Que cada um desses poderes esteja à disposição do EU, em posse dele, e isso na medida em que, coincidindo com eles, esse EU pode exercê-los quando e tão frequentemente quanto quiser, aí está aquilo com respeito ao qual esse EU não tem nenhum poder, o que lhe é concedido sem nenhuma participação dele. A cada um desses poderes que ele diz serem seus e como a própria condição de seu exercício, opõe-se assim de modo radical um não poder. Esse não poder é muito mais decisivo que o poder que ele torna possível. E a impotência absoluta do EU com relação ao fato de que se encontra em posse desse poder, em condições de exercê-lo. Em posse desse poder, em condições de exercê-lo, o EU só o está na medida em que esse poder lhe é dado. Esse poder só lhe é dado na medida em que o EU é dado a ele mesmo. O EU só é dado a ele mesmo na medida em que é um EU transcendental vivente dado a ele mesmo na autodoação da Vida absoluta. A autodoação da Vida é sua Ipseidade original na efetividade fenomenológica do Si singular do Primeiro Vivente. MHSV VIII

E o que dizem de modo abrupto os textos do Novo Testamento e precisamente o próprio Cristo, o Primeiro Si de que acabamos de falar: “… Sem mim, nada podeis fazer” (João 15,5). De significação [196] cegante é aqui o fato cte a possibilidade de todo poder concebível ser apresentada não como residente num poder maior, um poder infinito como, por exemplo, o de um Ser todo-poderoso – por oposição a poderes e forças limitados que seriam aqueles de que disporiam os homens, as criaturas finitas em geral. Essa espécie de hierarquia exterior e superficial, digna de uma teologia natural, deixa completamente de lado a intuição decisiva do cristianismo reafirmada em sua nudez por João. A fonte de todo poder consiste no Si do Arqui-Filho, isto é, na Ipseidade original da Vida absoluta. Pois é somente a vinda a ele mesmo de todo poder, qualquer que seja, o que lhe permite reunir-se consigo e agir – vinda a si que é a vinda do EU a si mesmo, que é a vinda da Vida a si mesma no Si do Arqui-Filho. MHSV VIII

Que todo poder de que ele dispõe seja dado ao ego no próprio processo pelo qual é engendrado como EU na Ipseidade do Arqui-Filho, aí está o que resulta não menos claramente da última polêmica com Pilatos. Diante de Cristo, que se cala obstinadamente, para levá-lo a falar e sem dúvida a se defender e se salvar, Pilatos brande sua ameaça: “Não sabes que tenho poder para te libertar e poder para te crucificar?”. A resposta é radical: “Não terias poder algum sobre mim, se não te fosse dado do alto” (João 19,10-11). Dessas réplicas fulgurantes, as teses decisivas do cristianismo emergem de novo. Toda e qualquer possibilidade de poder implica que este poder esteja em posse de si mesmo, dado a si mesmo – ali onde se cumpre toda autodoação: na Ipseidade original da Vida. A originalidade do cristianismo se descobre uma vez mais. Nele não há, como vimos, força obscura, nem poder anônimo, nem ação inconsciente. E isso porque força, poder, ação só se desdobram se dados previamente a si mesmos na autodoação da Vida absoluta. Aqui ainda o Apóstolo vai direto ao essencial: “É Deus quem opera em vós o querer e o operar segundo a sua vontade” (Filipenses 2,13). MHSV VIII

Encontramo-nos, portanto, no coração da teoria cristã do ego. Não há ego além do de um Filho, isto é, de um EU transcendental vivente gerado na Vida fenomenológica absoluta, experimentando-se [197] a si mesmo na experiência de si e, assim, na Ipseidade desta Vida. E somente porque tal EU existe que um ego por sua vez, é possível experimentando-se a si mesmo na experiência de si desse EU. O ego não é o duplo do EU, sua cópia conforme – nem, menos ainda, outra maneira de designá-lo. O que o ego acrescenta ao EU de que é o ego é que, dado a ele mesmo na experiência de si desse EU, ele entra, como vimos, em posse de seu ser próprio, bem como de diversos poderes que o constituem, de modo que está em condições de exercê-los – quando e sempre que quiser. Ser capaz de desdobrar um de seus poderes quando se queira e tão frequentemente quanto se queira é ser livre para fazê-lo. O EU dado a ele mesmo na Ipseidade da Vida e por ela somente tornou-se o centro, a fonte, a sede de uma multiplicidade de poderes e, assim, de uma multidão de atos que ele cumpre quando lhe apraz. De passivo ele tornou-se ativo. Quando nada dependia dele porque sua própria condição, sua condição de EU transcendental vivente, não dependia dele, eis que agora tudo depende dele, porque ele é um feixe de poderes e dispõe desses poderes livremente e sem reserva. Pois é isto que significa “poder”: não a designação exterior de um simples poder particular, mas o fato de estar em posse dele como de uma potencialidade que reside em você e de depender de você que ela passe a ato a cada momento. E é isto também que significa ser “livre”: estar em condições de desdobrar a qualquer momento esse feixe de poderes que constitui seu ser próprio. Esse EU gerado passivamente na vida, mas tornado nesta geração no centro de uma multidão de poderes que ele exerce livremente, tornado antes de tudo aquele que pode exercê-los, esse EU Posso fundamental descrito de modo genial por Maine de Biran   – é o ego. MHSV VIII

A condição do ego compreendido concretamente como centro de iniciativa e de ação parece paradoxal. Por um lado, o ego pôr em ação cada um de seus poderes é um fato incontestável. E mais que um fato: uma possibilidade permanente que não lhe é dada a cada momento senão porque ele se identifica com ela, porque ele não é nada além da doação a si desta possibilidade. Assim, esta possibilidade [198] lhe pertence como seu próprio ser. E, porque essa possibilidade é a de desdobrar cada um de seus poderes, ele é livre para fazê-lo. Toda liberdade repousa sobre um poder prévio e não é mais que o pô-la em ação. Porque o ego se encontra em posse desse poder, ele é livre. Mas estar em posse desse poder, aí está sua condição de ego dado a ele mesmo em seu EU. É por ser um EU que o ego é um ego, e é por ser um ego que o ego é livre. Assim, não há nenhum ego que não seja livre. As teses que negam a liberdade do ego o tratam como a um ente do mundo submetido às suas leis. O homem, portanto, não é senão produto de múltiplos determinismos que compõem a trama do universo objetivo. Somente o ego não é nada do mundo, sua Ipseidade não pertence senão à Vida. Nada do que se mostra no mundo, nada que deriva de sua aparência e de suas leis poderia ter a menor relação com o que faz do ego um ego, agir sobre ele ou determiná-lo de algum modo. É o modo de doação do ego a ele mesmo, e assim a maneira como ele está em posse de cada um de seus poderes e os exerce, que torna caduco o conjunto de discursos proferidos a respeito dele – e hoje mais que nunca. ((Acrescentemos que as teorias que negam a liberdade do ego transferindo para a esfera que é a sua, e que elas ignoram totalmente, regulações ou sistemas conceptuais tomados dos fenômenos do mundo não cometem apenas um erro teórico: este é secretamente motivado. É o abismo que a liberdade abre diante do homem que é recusado: o abismo da possibilidade que é a do erro. Construindo à custa da experiência um sistema da necessidade absoluta, a má-fé de Spinoza   se esforçava por oferecer ao homem uma salvação mais segura.)) MHSV VIII

A primeira causa do esquecimento pelo homem de sua condição de Filho é, pois, a ilusão transcendental do ego. Ora, esta primeira causa nos remete imediatamente à segunda. A ilusão transcendental do ego não é totalmente ilusória, com efeito. Ela comporta uma parte de “realidade” e de “verdade” cuja medida é preciso conhecer, porque é simplesmente essencial. O dom pelo qual a Vida, dando-se a si, dá o ego a ele mesmo, esse dom é uno. Dado a si, o ego está realmente em posse de si mesmo e de cada um de seus poderes, em condições de exercê-los: ele é realmente livre. Fazendo dele um vivente, a Vida não fez dele um pseudovivente. Ela não toma de volta com uma das mãos o que deu com a outra. “Se conhecesses o dom de Deus!” (João 4,10): esta palavra de Cristo quer dizer que este dom é o da Vida – o dom extraordinário em que aquele que por si mesmo não seria nada e em particular não seria nenhum si mesmo, esse, ao contrário, vem a si na vida, surge na experiência irremissível e na embriaguez de si e, assim, como um vivente e como um Si. E, ao mesmo tempo, como aquele que, mergulhando em si mesmo através da transparência da vida, dispõe de cada um dos poderes dispostos nele por esta. EU Posso – o pôr em ação efetivo de cada [201] um de meus poderes – é o contrário de uma ilusão. Igualmente o é o “EU sou” que nasce desse “EU Posso”. Assim, a efetividade desse “EU Posso”/“EU sou” vem recobrir o fato de que esse “EU posso” vivente, esse “EU sou” vivente, só advém pela obra, que não cessa, da Vida nele. Assim, a positividade de uma experiência irrecusável mascara constantemente o que a torna possível. “EU” – EU me superponho constantemente à minha condição de Filho, sem a qual, no entanto, não haveria “EU” nem poder de espécie alguma. MHSV VIII

Mas outra consequência se enlaça imediatamente a esta. A dissimulação da Vida invisível no ego, quando ela se une a ele mesmo, abre enormemente o espaço do mundo e o deixa livre diante dele e para ele. Quanto mais oculta está a Vida no ego, mais aberto, mais disponível [202] o mundo. ? ego se lança nele, ou antes, projeta-se para tudo o que se mostra neste mundo, para todas as coisas, de qualquer ordem que sejam, tornadas subitamente o objeto único de sua preocupação. Esquecido de seu EU, o ego se preocupa com o mundo. Assim se cria uma situação extraordinária em que, uma vez perdida de vista sua condição de Filho, o ego já não tem interesse em nada além do que está fora dele. Tudo o que se mostra, todo o império do visível, aí está o que tem valor a seus olhos, o que merece esforço e perseverança. Não é desejável senão aquilo a que só se tem acesso no “lá fora” do mundo, e o desejo de se apoderar do que é cobiçado deve seguir este caminho único, o que conduz para fora dele – aos “bens deste mundo”. MHSV VIII

Essa correlação entre o afastamento da Preocupação e a definição do homem como Filho se exprime na oposição estabelecida pelo cristianismo entre dois homens. De um lado, o homem do mundo que só se preocupa com o mundo e que só o pode fazer, todavia, sobre o fundo de sua essência previamente concebida como “ser no mundo”. Do outro lado, o homem que não é do mundo porque, Filho da Vida, se encontra originariamente determinado em si mesmo pelo acosmismo desta. A oposição entre esses dois homens não reside antes de tudo numa diferença de comportamento, mas nas estruturas fenomenológicas a que eles se referem. Não são os fatos e os gestos de alguns o que os leva a odiar os que se comportam diferentemente. E sua própria natureza – a pertença ao mundo na Preocupação – o que o faz levantar-se contra os Filhos da Vida, os quais pedem à Vida e somente a ela os princípios tanto de seus atos como do que sentem e experimentam. “… Mas o mundo os odiou, porque não são do mundo, como EU não sou do mundo” João 17,14). MHSV VIII

Uma vez mais, as representações tradicionais do “EU” e do “si” são invertidas. Que o ego seja incapaz de pensar em si, e notadamente de se lembrar de si, aí está o que parecerá paradoxal se é verdade que pensar em si e lembrar-se de si ocupa a maior parte do tempo da maioria das pessoas. Mas que ego se apresenta a seu pensamento, de quem se lembram eles? Deste indivíduo empírico nascido em tal lugar, em tal momento, e que se debruça sobre seu espelho para contar suas rugas, lembrando-se do tempo em que seu rosto era liso. Mas tal indivíduo só existe na medida em que é percebido como um EU, e ele só é percebido como um EU com a condição de uma Ipseidade que não se mostra nunca no mundo, não advindo senão na vida invisível e como efetuação fenomenológica desta. MHSV VIII

Que na relação consigo constitutiva da Ipseidade que habita secretamente cada homem e cada mulher visíveis não haja, desta vez, pensamento nem memória, aí está o que desarticula, com efeito, as concepções clássicas que fundam na memória a possibilidade do EU. Representa-se, com efeito, a vida do EU como uma sucessão de “vividos” que não cessam de passar. A possibilidade do EU aparece então como a da manutenção de sua identidade através da mudança contínua de seus estados. É precisamente à memória que é confiada a tarefa de reunificar esses estados dispersos, e isso apreendendo-os como os de um único e mesmo EU cuja unidade e possibilidade se encontram desse modo salvaguardadas. Infelizmente, toda tentativa de fundar a possibilidade do EU na memória se volta imediatamente contra si mesma. Porque se trata de nosso EU vivente e, assim, da possibilidade da vida nele, toda intrusão de uma memória que afaste [211] esta vida de si mesma para permitir-lhe ver na distância do passado já destrói a essência desta vida, sua autoafecção: o fato de que, esmagada contra si, ela se experimenta a si mesma em sua imediatez patética sem jamais separar-se de si nem poder fazê-lo. Longe de reunir a vida em sua “unidade consigo” que não é outra senão sua Ipseidade, a memória exibe a distância onde nenhuma vida é possível, mas somente o que já não é. Uma vida dada pela memória seria uma vida no passado. Mas uma vida no passado é um contrassenso fenomenológico, algo que exclui o próprio fato do “viver”. MHSV VIII

O esquecimento de si da Vida com seu corolário: o esquecimento de si do Si gerado na autogeração dela, aí está, pois, o que explica afinal de contas o esquecimento pelo homem de sua condição de Filho. Desse modo, o esquecimento pelo homem de sua condição de Filho não é [212] um argumento contra esta, mas consequência sua e, assim, sua prova. Mas o esquecimento pelo homem de sua condição de Filho não oferece apenas a prova dela: explica ainda o fato não menos extraordinário de que, apesar do exercício constante pelo ego de seu poder, exercício que o faz dizer “EU Posso”, “EU” –, este ego não esquece sua condição de ego menos constantemente do que esqueceu sua condição de Filho. Aqui se descobre uma sequência teórica mais que essencial. Precisamente porque o homem esqueceu sua condição de Filho, é sua própria condição de ego que lhe escapa. E, com efeito, uma vez oculta a Ipseidade em que todo EU e todo ego é gerado, então é a condição desse EU ou desse ego que é abolida: o ego já não é possível. Já não sendo possível, o ego já não é mais que um fantasma, uma ilusão. Desta dissolução resulta um dos traços mais característicos do pensamento moderno: um questionamento extremamente grave do próprio homem, sua desvalorização, sua redução ao que subsiste dele quando já não se sabe mais nada do que lhe permite ser um homem, a saber, um ego e um EU. Seria preciso seguir passo a passo as modalidades dessa morte teórica do homem através das múltiplas “críticas do sujeito” praticadas de Kant   a Heidegger   e, num plano mais superficial, pelo marxismo, pelo estruturalismo, pelo freudismo, pelas diversas ciências humanas, sem falar do cientificismo próprio de nossa época; mas esse não é o nosso propósito. Este é no máximo compreender o princípio desse desastre, não contar sua história. MHSV VIII

Mais profundo ainda que o esquecimento da relação do ego consigo mesmo é o que habita sua relação com a Vida. Em sua relação consigo, com efeito, o ego pode esquecer o Si verdadeiro que o instala nele mesmo – fora do mundo, independentemente de todo e qualquer pensamento, de toda e qualquer lembrança, de toda e qualquer preocupação. Na noite dessa ausência de pensamento, o ego não é menos dado a ele mesmo, experimentando-se pateticamente no EU Posso que se exerce constantemente. Assim ele permanece imerso em si mesmo involuntariamente, quando só se preocupa com o mundo. Completamente diferente, parece, é a relação que o une já não [213] a ele mesmo, mas à Vida. Se o ego só advém a si mesmo na vinda a si da Vida absoluta e no processo de sua autogeração eterna, este processo não se cumpriu desde sempre, a Vida não veio a si em sua Ipseidade de antes do mundo, se nesta um ego qualquer deve poder, ele próprio, vir a si? A Vida absoluta não precede a todo vivente como sua pressuposição insuperável, como um “já” a que ele jamais poderá voltar, como um passado a que ele não poderá retornar – um passado absoluto? A esta antecedência da Vida com respeito a todo e qualquer vivente e, do mesmo modo, à antecedência do Primeiro Si com respeito a todo e qualquer Si particular corresponde o esquecimento mais radical. O esquecimento já não diz respeito aqui ao que se é sem o saber, mas ao que adveio antes que se seja – ao sistema da fruição autárquica constituído pela interioridade recíproca do pai e do Filho, ali onde não há ainda nenhum EU nem nenhum ego tal como o nosso. O já absoluto da fruição autárquica da Vida, aí está o Imemorial, o Arqui-Antigo que se furta a todo e qualquer pensamento – o sempre já esquecido, o que se encontra num Arqui-Esquecimento. MHSV VIII


Quando, porém, nos esforçamos por compreender o ser de Cristo a partir da união nele de duas naturezas contraditórias – uma humana, a outra divina; uma temporal, a outra eterna –, convém afastar ao menos dois preconceitos maciços que impedem para sempre a inteligência do cristianismo. Pressupõe-se, por um lado, que há uma natureza própria e preexistente do homem que intervém a título de elemento coconstitutivo na natureza de Cristo, a qual se explica, por outro lado e conjuntamente, por sua origem divina. Esquece-se de que, segundo seu dizer explícito, Cristo procede daquele que o enviou e unicamente dele. Gerado na autogeração da Vida absoluta e tendo dela sua essência, não há nada nele que não seja esta Vida. A Ipseidade em que Cristo se experimenta, isto é, sua subjetividade, é a Ipseidade em que a Vida fenomenológica absoluta se experimenta a si mesma, ou seja, a subjetividade desta vida. E é por essa razão que lhe é consubstanciai e contemporâneo, tendo vindo no princípio, Arqui-Filho coengendrado no autoengendramento do próprio Deus e, assim, ao mesmo tempo que ele. Esquece-se de que, para intervir ainda que fosse a título de elemento coconstituinte na natureza de Cristo, o homem chega realmente tarde demais. Pois está aqui a aporia: pretender explicar Cristo a partir de uma natureza humana que não existia quando Cristo foi engendrado em seu autoengendramento da Vida, de modo que sua essência foi cumprida em sua total independência com respeito a essa pretensa natureza humana e bem antes que tenha visto a luz [143] do dia algo como um homem. “Antes que Abraão existisse, EU sou.” Se nos voltamos enfim para o texto do Evangelho, e considerando-o até de modo anedótico tal como se faz mais habitualmente, como não observar que Cristo nunca falou de si mesmo como de um homem ou ainda que ele nunca falou aos outros homens como se fosse mais um entre eles? MHSV VI

Designaremos doravante pelo termo Indivíduo, escrevendo a palavra com maiúscula, a essência verdadeira do que a linguagem corrente designa por esse nome. Esta essência verdadeira é ser um EU transcendental vivente, é a essência verdadeira do homem. A extrema originalidade do pensamento cristão sobre o Indivíduo é ter ligado de início esse conceito do Indivíduo ao da Vida. O que constitui a profundidade sem limite de tal pensamento é que a relação assim estabelecida entre Indivíduo e Vida não é precisamente uma relação no sentido corrente desta noção, a saber, alguma ligação entre dois termos separados e suscetíveis, cada um, de existir sem o outro. Mas tampouco é uma relação “dialética” no sentido em que o pensamento moderno a entende, a saber, uma relação [169] entre dois termos tal, que um precisamente não pode existir sem o outro – não podendo essa existência, tanto a de um como a do outro, vir senão de sua posição conjunta, de sua síntese. A relação dialética deixa indeterminada a essência fenomenológica em que esta relação se produz; ou, antes, ela interpreta sub-repticiamente esta essência de modo fenomenológico como sendo a verdade do mundo. É nesta verdade que se mostram tanto a relação como os termos entre os quais ela se estabelece. MHSV VII

Até onde vai a conexão originária essencial entre a Ipseidade e a Vida é o que a parábola de João em que Cristo declara ser a porta do redil das ovelhas dá a entender. Por um lado, é verdade, a Ipseidade nasce na vida; é lançando-se em si mesma que a vida gera essa Ipseidade em que, estreitando-se a si mesma, ela advêm para si. Uma inversão extraordinária se produz, no entanto, quando, identificando-se com a porta que dá acesso às ovelhas, Cristo se apresenta, ao contrário, como aquele que dá à vida o nutrir-se, o nutrir-se de si, o crescer e incrementar-se de si e, assim, ser vivente: “EU sou a porta: Se alguém entrar por mim […] entrará e sairá e encontrará pastagem…”. E é então que se produz a inversão: Cristo já não como engendrado na vida, mas como aquele que a dá. Já não como o Filho – o Primeiro, certamente, o Arqui-Filho. Já não como um vivente – o Primeiro, certamente, o Primeiro Vivente. Já não como um vivente que pressupõe sempre a vida e só é possível a partir dela, mas como Aquele que, mais alto aqui, de certa maneira, que a vida, tem poder sobre ela, poder de dá-la e, assim, de engendrá-la. Esta geração já não como transmissão da Vida ao Vivente, mas de algum modo do Vivente à Vida, é formulada incontestavelmente e é, depois de Cristo ter-se designado como a porta, a palavra mais surpreendente da parábola: “EU vim para que tenham a vida” (João 10,10). [177] MHSV VII

A parábola conduz aqui para além de si mesma. Ela permite entender a palavra que fala sem parábola, antes de toda e qualquer parábola, aquela que tem e reúne em si as tautologias decisivas do [178] cristianismo: “EU sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (João 14,6). A identidade dos quatro termos é posta aqui: EU = o Caminho = a Verdade = a Vida. Quanto à última identidade, Verdade = Vida, nós a estabelecemos longamente. E a tese fundamental de uma fenomenologia da vida. Segundo esta fenomenologia, a fenomenalidade se fenomenaliza originariamente numa autoafecção patética que define a única autorrevelação concebível, autorrevelação em que consiste a essência da vida. A Vida, portanto – e não, antes de tudo, a abertura de um mundo no ek-stase do “lá fora” –, constitui a Verdade original, a fenomenalidade original. A Verdade = a Vida. MHSV VII

O segundo termo da sequência tautológica – o Caminho – pode ser relacionado quer aos termos 3 e 4 e à identidade estabelecida entre eles, quer ao primeiro termo: EU. Relacionada ao termo 3 – a Verdade –, o Caminho exprime pois uma tese geral da fenomenologia, a saber, que o caminho de acesso a uma coisa qualquer consiste na manifestação dessa coisa. De maneira geral, é a fenomenalidade de um fenômeno o que constitui o caminho de acesso a esse fenômeno. Esta tese decisiva da fenomenologia permanece, no entanto, totalmente indeterminada enquanto não se sabe em que consiste a fenomenalidade, mais exatamente o modo como ela se fenomenaliza. Para dizer a verdade, a investigação sobre o modo como se fenomenaliza a fenomenalidade deveria constituir o próprio tema da fenomenologia, sua primeira tarefa e a mais essencial. Com respeito a esta tarefa, ainda quando acreditasse consagrar-se a ela, a fenomenologia falhou gravemente. Enganada pelo pressuposto que comanda a filosofia ocidental e não fazendo, por isso mesmo, senão retomá-la a ela, e notadamente ao pensamento clássico, a fenomenologia interpreta a fenomenalidade do fenômeno como a do mundo. Dizer pois que o Caminho é a Verdade é dizer que tudo aquilo a que podemos ter acesso se mostra a nós no mundo, numa manifestação que é a própria Verdade do mundo. Quando a verdade é interpretada de modo revolucionário pelo cristianismo como a Vida (trata-se, bem entendido, de uma revolução metatemporal, meta-histórica), então [179] o Caminho que conduz, que franqueia um acesso, é precisamente a Vida. E a Vida que é o Caminho. Caminho totalmente diferente do caminho do mundo e que conduz a algo totalmente diferente do que se manifesta no mundo. A que conduz o Caminho, quando ele é a Vida? Conduz à Vida. Este Caminho não é senão a própria Vida, na medida em que a Vida se autorrevela nessa autoafecção que constitui sua própria fenomenalidade, sua substância fenomenológica, sua carne, a carne de tudo o que é vivo. MHSV VII

E agora, relacionando o segundo termo ao primeiro, a palavra diz: “EU sou o Caminho”. EU = o Caminho. Esta identidade fundamental só tem sentido se estiver relacionada às duas outras tautologias que compõem a palavra – ou seja, com duas condições. A primeira é que o Caminho seja constituído pela Verdade, o que ele é seguramente, segundo a tese mais geral da fenomenologia. Mas a segunda condição, a última tautologia, é decisiva: que a Verdade seja constituída pela Vida. Pois, se ela fosse constituída pelo mundo tanto segundo a filosofia tradicional como, aliás, segundo a crença popular, então o mundo é que constituiria o caminho, o caminho de acesso a tudo o que se pode mostrar a nós. Sucede porém que, se fosse esse o caso, não haveria para nós nem Vida nem EU (nenhuma verdade tampouco, aliás, nenhum mundo, mas não é aqui o lugar de estabelecê-lo). MHSV VII

O Arqui-Filho, no entanto, não é somente o Caminho que conduz os viventes à Vida. Ele não é este caminho, para dizer a verdade, senão na medida em que é e foi o Caminho em outro sentido, ainda mais original. Antes de conduzir os viventes à Vida, ele conduziu a Vida até os viventes. É somente porque ele conduziu a Vida até os viventes que, fazendo-o, os conduziu até a Vida. Como Cristo conduziu a Vida até os viventes, de modo que pôde pronunciar a palavra mais louca e a mais extraordinária, aquela em que de certo modo ele se situa antes da Vida: “EU vim para que tenham a vida”? Ele conduziu a Vida aos viventes conduzindo-a primeiro em si até ela mesma, e isso em sua Ipseidade e por sua Ipseidade essencial; e depois fazendo dom desta ipseidade a cada vivente de modo que nela cada um deles seja possível como um Si vivente. A geração do Arqui-Filho na autogeração da Vida absoluta torna possível a geração de todo e qualquer vivente concebível. E desse modo que Cristo é o Caminho, porque, tendo conduzido a Vida até cada vivente, ele é ao mesmo tempo aquele que conduz cada vivente à Vida. [181] MHSV VII

Que, em sua Arqui-Ipseidade, o Arqui-Filho transmita a Vida a todo e qualquer vivente possível – possível na medida em que não é somente um vivente, mas um Si, este Si que não é semelhante a nenhum outro, que existe como algo absolutamente novo, que nada precedeu nem substituirá – é o que explica o lugar muito [185] particular que Cristo ocupa no Novo Testamento. Lugar, para dizer a verdade, que ele se dá a si mesmo em detrimento, se não com desprezo, de todo o restante. Pois, para quem o escuta com distanciamento suficiente, parece que a Palavra de Cristo não se limita de modo algum a um ensinamento moral. Preceitos e obras prescritas não parecem valer por si mesmos, definir, em todo o caso, o essencial. Uma finalidade os ultrapassa em direção ao que importa. A questão da ética: que fazer?, a resposta é desconcertante: “Disseram-lhe então: ‘Que faremos para trabalhar nas obras de Deus?’ Respondeu-lhes Jesus: ‘A obra de Deus é que creiais naquele que ele enviou’” (João 6,28-29). Mas a questão ricocheteia imediatamente. Crer naquele que ele enviou é crer que aquele que fala é precisamente o enviado, que Jesus é o Messias, o Cristo. “Que sinal realizas, para que […] creiamos em ti? Que obra fazes?” (ibidem 30). Quando a distribuição por Moisés do maná foi afastada como puramente simbólica, a obra, o milagre recebem então seu verdadeiro nome: a doação da vida em sua carne fenomenológica, o “pão de vida”. Trata-se enfim de saber o que é este pão: ‘“Senhor, dá-nos sempre deste pão!’ Jesus lhes disse: ‘EU sou…”’ (ibidem 34-35). Enfim, a razão do egocentrismo sem medida nem nuança que invade o Novo Testamento está clara. E porque a Vida se dá a cada um na Ipseidade do Arqui-Filho que, com efeito, não importa senão Aquele, ninguém mais. Novamente, o comentário do Apóstolo atinge o alvo: “Pois não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo” (1 Coríntios 2,2). MHSV VII

EU” quer dizer “EU Posso”. A proposição “EU Posso” não traz nenhuma propriedade particular à essência do EU: define-a. A análise fenomenológica permite certamente reconhecer num EU certo número de poderes concretos tal como nós fizemos, poderes que, portanto, é possível repertoriar e colocar sob diversas rubricas, tais como “poderes do corpo” ou “poderes do espírito”. Mas o EU não consiste absolutamente numa soma de poderes desse gênero. Qualquer que seja sua importância na medida em que cada um deles abre um campo de experiências novo – experiências que são inicialmente experiências puramente interiores, as de exercer esses poderes, experiências espirituais portanto –, cada um desses poderes só é um poder se o homem dispuser dele. E é precisamente isto o que caracteriza o ego e o define: estar de posse de tais poderes, dispor deles. [195] MHSV VIII

E essa ilusão transcendental do ego que Paulo atinge no coração: “Que possuis que não tenhas recebido? E se recebeste, porque haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido?” (1 Coríntios 4,7). Que se trata aqui propriamente de uma ilusão, é o que a Epístola aos Gálatas diz não menos claramente: “Se alguém pensa ser alguma coisa, não sendo nada, engana a si mesmo” (6,3). A denúncia da ilusão transcendental do ego pronunciada com toda a lucidez por Paulo assume na boca de Cristo, na parábola de João que comentamos, uma forma infinitamente mais violenta: “Mentirosos! Ladrões”.((Cf. supra, cap. 7.)) Porque não é uma mentira particular, alguma deformação [200] pontual dos fatos o que é aqui desmascarado. É sua própria condição o que o ego desnatura na própria palavra pela qual a enuncia. “Ego” quer dizer de algum modo que é a si mesmo que o ego deve fazer o que faz, e antes de tudo ser o que é. Essa implicação é tão imediata que se produz bem antes de o ego sonhar em formulá-la, desde que ele se experimenta como esse EU Posso de que falamos. Quem é, com efeito, que erguendo um peso não pensa que é ele que o ergue; ou que empunhando um objeto não pensa que é por efeito de sua própria força que o empunha? Mentiroso! Como poderia ele exercer esse poder se a Vida não o tivesse dado a ele mesmo e ao mesmo tempo todas as suas capacidades? Mentiroso e, portanto, ladrão também! Porque atribuir-se o que não lhe pertence, aí está propriamente um roubo. E, quando o roubo concerne não a um objeto particular, mas à própria natureza do poder que age, o roubo é permanente. MHSV VIII

Para dizer a verdade, ainda que ele concentre neles seu interesse, fazendo deles o objeto constante de sua cobiça, os bens deste mundo não são considerados em si mesmos e por si mesmos pelo ego, mas somente com relação a ele. E em sua relação com o ego que eles despertam seu interesse, é para ele que eles se tornam “bens” e valores. No mundo, não há valor. Não é, portanto, afinal de contas, com as coisas deste mundo que o ego se preocupa, mas consigo mesmo. O que ele quer não é a riqueza considerada em si mesma, mas tornar-se rico; não é o poder, mas ele próprio tornar-se poderoso. Não a consideração ou o prestígio, mas ele próprio ser considerado, revestido desse prestígio. Mais ainda, é enquanto ego que o ego se preocupa com tudo isso, isto é, a cada vez, consigo mesmo. Isso enquanto Ego quer dizer: esse EU Posso fundamental que possui como tal capacidade de se propulsar para todos esses bens, de adquiri-los e, no limite, de identificar-se com eles e fruir deles. MHSV VIII