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Fenomenologia de Cristo [MHSV]
quarta-feira 11 de setembro de 2024
Não são declarações ocasionais, nem sequer erros de copistas. E uma razão de ordem apodíctica que prescreve a priori que o caminho que conduz a Cristo só pode ser a repetição de seu Arquinascimento transcendental no seio do Pai, a saber, o processo de autogeração da Vida que o gerou em sua condição de Primeiro Vivente. Pois, se a vida não se tivesse lançado em si para se autoexperimentar em seu fruir de si, jamais a Ipseidade essencial que ela gera desse modo em sua autogeração, assim como tampouco o Si singular que lhe pertence por princípio, teria advindo à vida. Mas enfim Cristo não veio realmente a este mundo para salvá-lo, fazendo-o conhecer a Deus? A esta pergunta só uma FENOMENOLOGIA DE CRISTO pode responder. [99] MHSV IV
A FENOMENOLOGIA DE CRISTO concerne à questão do aparecimento de Cristo. Como este se revestiu de múltiplos aspectos, a própria questão recebe múltiplas formulações, não podendo limitar-se a um de seus aparecimentos, como, por exemplo, o primeiro; deve ter diante dos olhos todas as outras também. A FENOMENOLOGIA DE CRISTO encontra então interrogações deste gênero: onde nasceu Cristo? Quem eram seus pais? Donde vinham? Cristo tinha irmãos? Etc. Acham-se nos Evangelhos diversas informações a este respeito e, para dizer a verdade, muito mais do que simples indicações. A genealogia de Jesus constitui o longo prólogo do Evangelho de Mateus: “Livro de origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão: Abraão gerou Isaac, Isaac gerou Jacó, Jacó gerou Judá e seus irmãos […] Eleazar gerou Matã, Matã gerou Jacó, Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus chamado Cristo” (1,1-16). Esta genealogia de Jesus é retomada por Lucas : “Ao iniciar o ministério, Jesus tinha mais ou menos trinta anos e era, conforme se supunha, filho de José, filho de Eli, filho de Matat […], filho de Enós, filho de Set, filho de Adão, filho de Deus (3,23-38). MHSV V
A FENOMENOLOGIA DE CRISTO que se trata de elucidar aqui e da qual achamos em João uma exposição inigualável, essa fenomenologia se elabora como se segue. Não se dando nenhum Pai verdadeiro (a Vida) a ver no mundo, a vinda de Cristo a este mundo – segundo a tese que se diz ser a do cristianismo – tem por fim tornar o Pai verdadeiro manifesto aos homens, e assim salvá-los – a eles, que esqueceram este Pai verdadeiro e a verdadeira Vida, vivendo somente em função do mundo e das coisas deste mundo, interes-sando-se apenas por elas e esperando apenas delas sua salvação. A significação religiosa do cristianismo, a de propor aos homens uma salvação, é pois tomada numa fenomenologia porque se trata de tornar o Pai manifesto no mundo, e assim aos homens – mundo que é em si mesmo uma forma de manifestação. E nesta demanda fenomenológica precisa que João expõe o conteúdo dogmático do cristianismo, donde a significação radical de seu Evangelho, e isso tanto para a filosofia quanto para a religião. MHSV V
A FENOMENOLOGIA DE CRISTO que acabamos de esboçar fornece elementos de uma resposta: na verdade do mundo, Cristo não é senão um homem entre outros e nada pode distingui-lo deles. Na verdade do mundo, a pretensão de Cristo de ser algo diferente de um homem é incompreensível e absurda, é uma blasfêmia que será tratada como tal. Na verdade do mundo, a condição de Cristo, se ele é Cristo, decorre de um anonimato que nada nunca permitirá suspender. E isso porque só há acesso a Cristo na vida e na verdade que lhe é própria. Ainda é preciso lembrar que Cristo não está na vida do mesmo modo como as coisas estão no mundo. Não só Cristo não está separado da vida em que ele permanece enquanto ela permanece nele, mas desta copertença original da Vida e do Primeiro Vivente há uma razão essencial que foi dada, a saber: a geração do Filho copertence à autogeração da Vida como aquilo em que esta autogeração se cumpre: como Ipseidade essencial em que somente, [126] estreitando-se a si mesma, a Vida se torna a Vida. Assim, não há outro modo de ir ao Filho senão no movimento deste autoestreitamento da Vida, assim como não há outro modo para a vida de se estreitar senão nesta Ipseidade essencial do Primeiro Vivente – nenhum outro modo de se revelar a si senão no Verbo. MHSV V
A FENOMENOLOGIA DE CRISTO, a fenomenologia que responde à questão de saber onde e como Cristo se revela não enquanto homem que nada difere de outro homem, mas na condição de Cristo e de Verbo, remete precisamente a esta condição, à Arquigeração [129] do Verbo na autogeração da Vida absoluta. É no processo de autorrevelação da vida e como esta autorrevelação que o Verbo se revela, e somente deste modo. Mas esta revelação do Verbo como autorrevelação de Deus é também aquilo a que chamamos interioridade fenomenológica por essência, não sendo nada além do modo segundo o qual a fenomenalidade se fenomenaliza originariamente – enquanto esta fenomenalidade original que é a Vida. MHSV V
Diante do sistema autárquico constituído pela interioridade fenomenológica recíproca da Vida fenomenológica absoluta e de seu Verbo, sistema do qual nada do que lhe pertence jamais se separa, nada do que lhe é exterior jamais penetra, não é o próprio ensinamento do cristianismo que subitamente se torna problema? O que ensina ele além da vinda de Cristo ao mundo para salvar os homens? Mas a FENOMENOLOGIA DE CRISTO estabeleceu que Cristo não pode mostrar-se aos homens no mundo, e que está aí, ademais, a razão por que, a despeito de seus atos e de suas palavras extraordinárias, eles não creem nele. MHSV V
Mas, se o homem é Filho, e por isso mesmo Filho de Deus, se ele nasceu da Vida fenomenológica e tem dela sua essência, então tudo o que foi dito da heterogeneidade fenomenológica e por conseguinte ontológica do Arqui-Filho transcendental com respeito ao mundo e à sua verdade, e que foi dito pelo próprio Arqui-Filho – essas proposições singulares em que, ao mesmo tempo que à aparência do mundo, é dada sua permissão a tudo o que decorre desta aparência, ao tempo do mundo, a seu espaço, à causalidade que aí sucede e ao conjunto de leis que se diz serem da natureza –, todas essas proposições, dizemos nós, concernem ao próprio homem e o prendem na rede das tautologias fundamentais que elas instituem. Esta extensão ao homem das teses radicais afirmadas por Cristo a respeito de si mesmo, nós a tínhamos percebido desde a análise transcendental de sua condição de Arqui-Filho. É esta extensão paradoxal ao homem da condição extraordinária do Arqui-Filho nascido antes do mundo e antes dos séculos o que convém aprofundar. Antes de tentarmos esta análise do que resulta para o homem compreendido como Filho de Deus da condição do Arqui-Filho, abramos um parêntese que valerá como um acréscimo à FENOMENOLOGIA DE CRISTO. MHSV VI