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Verbo de Deus [MHPC]

quarta-feira 11 de setembro de 2024

  

Segundo a teologia cristã (nos interrogaremos mais adiante, de um ponto de vista filosófico, sobre sua verossimilhança ou sua legitimidade), a natureza do Cristo é dupla, humana e divina ao mesmo tempo. Na medida que o Cristo é a Encarnação do Verbo de Deus, é este Verbo, e assim Deus ele mesmo, que habita nele. Mas parece que a carne na qual o Verbo se encarnou é semelhante à nossa, enquanto o Cristo é um homem como nós. Revestindo nossa condição assumiu ao mesmo tempo a finitude. Esta finitude é precisamente aquela da carne. Ela se deixa reconhecer por múltiplos sinais. Os mais notável é um conjunto de necessidades que atestam que nenhuma carne não basta a si mesma. Lhe é necessário se alimentar sem cessar, cuidar-se de si mesma, se proteger de diversas maneiras tanto contra os perigos que a ameaçam do exterior como contra o perigo interior que não cessa: a saber todas estas necessidades que exigem imperativamente serem satisfeitas. De sorte que toda carne é condenada a entreter a vida que nela está e que reclama sem descanso as condições de sua sobrevivência.

É esta vida em realidade que é finita, tanto incapaz de se dar a ela mesma a vida que de se manter nela por seu próprios meios. Eis porque a carne cuja vida é finita apresenta duas séries de caracteres correlativos. Por um lado, as impressões das quais ela é constituída são tonalidades afetivas negativas, tais como o mal-estar da necessidade, a insatisfação, o desejo, as múltiplas formas e nuances da dor e do sofrimento da qual ela é a sede. Em todas estas tonalidades, seu teor penível ou desagradável exprime a carência fundamental que afeta a carne enquanto é incapaz de se bastar a ela mesma. Desta primeira série de caracteres resulta, por outro lado, um segundo traço próprio a toda carne, seu dinamismo. Precisamente porque qualquer das necessidades que marcam nossa condição carnal não pode permanecer sem resposta, porque se manifestam com uma insistência cuja pressão não tarda a se tornar insuportável, então nascem em nossa carne ela mesma diversos movimentos pelos quais ela se esforça em transformar seu mal-estar em um desejo provisoriamente preenchido. É assim que a dominação que exerce sobre nós o sistema de nossas necessidades corresponde o conjunto das atividades necessárias a sua saciedade. Quaisquer que sejam os desvios e as perversões, as inversões que ela vai sofrer na história, o que se denomina "a economia" retira sua motivação em nossa condição encarnada. Se este trabalho, como diz Marx (que através de sua obra o designa como um trabalho "subjetivo, individual e vivo"), viesse a se interromper um único dia, a humanidade desapareceria.

Esta finitude da condição encarnada, com suas prescrições, seus ritmos que esquadrinham a existência cotidiana e lhe conferem sua temporalidade própria, o Cristo a viveu como cada um de nós. Durante um longo período de sua vida, ele trabalhou. E quando em sua vida pública e a fim de se consagrar inteiramente a sua missão, se desencarregou sobre seus discípulos e sobre aqueles que o acolhiam tarefas que se denominam impropriamente materiais (enquanto compostas de impressões e motivações totalmente subjetivas), continuou a conhecer a fome, a sede, a fadiga, a tristeza e as lágrimas antes de sofrer as torturas e os ultrajes de sua Paixão.

Se a natureza do Cristo é dupla, pode-se pensar que sua palavra é também dupla. Não que seja marcada pela duplicidade, à maneira de uma palavra humana submetida às intrigas do mundo, exercitada na simulação e na mentira. Dupla, a palavra do Cristo o é outro sentido, tão preciso quanto radical: nela, trata-se ora da palavra de um homem e ora daquela de Deus. A análise das palavras do Cristo não é obrigada desde então a se demandar a respeito de cada uma delas: quem fala? O homem-Jesus, aquele que não tem onde posar sua cabeça e que pede a Samaritana para beber? Ou bem o Verbo de Deus ele mesmo, que é a Palavra de um Deus eterno e que diz de suas próprias palavras: "O céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão" (Lc   21,33)?

Esta dissociação essencial entre a palavra de um homem e aquela de Deus deve ser feito objeto de um exame rigoroso. Em toda palavra não convém distinguir a maneira pela qual ela fala, a palavra considerada nela mesma enquanto palavra falante, em seu Dizer e em sua maneira d dizer — e, por outro lado, o que ela fala assim como o que nisto diz, seu conteúdo?

No caso da palavra humana, é a natureza da linguagem humana em geral que deve ser elucidada. No século XX, sua análise se tornou um dos temas maiores da reflexão, dando lugar a numerosas concepções, complementares ou opostas, agrupadas no entanto em uma vasta "filosofia da linguagem" cujos pressupostos diversos — fenomenológicos, analíticos ou psicoanalíticos — não vêm romper uma última unidade. Esta consiste precisamente em considera a linguagem no ato de sua palavra como diferente daquilo que se fala, de seu "conteúdo". Assim é fácil separar em toda palavra de homem a natureza da linguagem posta em ação e, a princípio, os objetos que designa em qualifica. A linguagem considerada nela mesma não é idêntica, se digo, à maneira de Spinoza, "o cão late" ou "o conceito de cão não late"? Porque uma tal separação entre o Dizer da linguagem e o que diz intervém em toda palavra humana, é o que se deve ter em conta.

Mas uma outra nota, mais importante ainda, se nos impõe. As diversas concepções da linguagem não se apresentam um segundo traço comum, puramente negativo este? Elas concernem todas as linguagens dos homens. Na medida onde, para se dirigir a estes últimos, o Cristo utilizou a linguagem que lhes é própria, então a maneira pela qual lhes falou manifesta as propriedades da linguagem humana, aquelas que estudam as análises da linguagem que falamos.

Se supomos agora que o Verbo de Deus fala uma outra linguagem, diferente no princípio da linguagem humana, somos obrigados a reconhecer que sua Palavra escapa ao conjunto das concepções da linguagem que acaba de se tratar. Porque ela visa unilateralmente a linguagem dos homens, a filosofia da linguagem apresentaria uma lacuna gritante, ela não saberia nada da palavra que, em fim de contas, só importa — a Palavra de Deus, quer dizer a maneira pela qual Deus nos fala. Não trataria somente de uma simples lacuna, mas de uma ocultação tão desastrosa quanto definitiva. A Palavra de Deus não permaneceria incompreendida, teria-se dela perdido até a ideia.

As palavras do Cristo, muitas delas em todo caso, nos alcançaram. Elas estão contidas nas "Logia", que são coleções cuja origem é indubitável. O Evangelho apócrifo dito de Tomé, encontrado no Egito em uma biblioteca gnóstica, consiste em uma simples enumeração de palavras de Jesus. Coleções deste gênero circularam desde os primeiros tempos. Nada impede de se pensar que certas proposições que relatam foram anotadas Cristo ainda vivo, por auditores, discípulos, mesmo por um secretário dedicado. O Evangelho de Tomé parece ter sido redigido no meio do século II, disto não aporta menos a prova da antiguidade das Logia, grande número de seus enunciados se encontram nos Evangelhos de Mateus, de Marcos e de Lucas. Os evangelistas aí evidentemente se supriram (sem que seja possível subestimar por conseguinte a importância decisiva da predicação oral dos apóstolos) a fim de construir um ensinamento destinado a transmitir a Revelação divina contida nas palavras do Cristo.