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Afetividade – Sofrimento

quinta-feira 12 de setembro de 2024, por Cardoso de Castro

  

Na interação dos conceitos de afetividade e passividade, podemos distinguir uma determinação recíproca de afetividade pela passividade e de passividade pela afetividade. Se a afetividade constitui “a efetiva realização fenomenológica” desta estrutura ontológica que é a passividade, ou seja, define a sua experiência constitutiva, inversamente a passividade fornece a estrutura desta experiência, determina-a como uma relação consigo mesmo em unidade e interioridade radicais. Desta dupla determinação, da afetividade através da forma de uma relação imediata e inteiramente interior consigo mesmo e desta forma através do conteúdo concreto de uma experiência efetiva, - na passividade como paixão ou afetividade e na afetividade como passividade - emerge o caráter fenomenológico último da essência, sua auto-paixão ou, como o Michel Henry   chama, seu “sofrimento”. Vivenciar-se em absoluta passividade consigo mesmo, sentir-se sem poder escapar a esse sentimento, ou seja, permanecer consigo mesmo, nada mais é do que relacionar-se consigo mesmo “dentro de um ‘sofrimento’ e como este ‘sofrimento’”. O “sofrimento” aparece como o conteúdo concreto desta experiência constitutiva da afetividade que define a “paixão”, determina a eficácia desta experiência, é o seu princípio interno de realização, ou seja, a sua essência mesmo. “O sofrimento...”, diz Michel Henry, “é a essência da afetividade”. Que o sofrimento é a essência da afetividade, a essência da essência da manifestação, portanto, isso significa que nele se realiza o devir desta essência, o devir do fundamento de tudo o que é e é manifesto, ou seja, do ser em sua revelação. O sofrimento é o fundamento do fundamento, nele a gênese absoluta do Absoluto se realiza e deve ser mostrada. Isto é o que devemos esforçar-nos por perceber nele pela simples consideração do seu conceito e pela compreensão do seu conteúdo concreto. Procuremos penetrar no que Michel Henry chama de “a espessura do sentimento” onde o ser do absoluto se forma como essa afecção essencial do eu em si que o define e onde emerge idêntico a ele.

O sofrimento é a realização da afetividade, “nele, diz-nos o filósofo,... nasce... (o) verdadeiro ser” do sentimento. Mas a afetividade refere-se ao ato puro e simples de sentir-se. É este ato puro e simples que se realiza no sofrimento. Não há nada mais na auto-afeição do que essa afeição. A afetividade é afetiva por completo e é apenas afetiva. O que ela coloca é o que ela recebe. O que ela coloca e recebe é o próprio modo como ela a coloca e a recebe, na identidade da forma e do conteúdo. O que então é realizado nesta auto-afeição perfeita? A plenitude de um ato que constitui imediatamente reedição. O ato puro e simples que constitui a afetividade e que se realiza no sofrimento é um ato plenário. Ele afirma sua própria realidade. O que o sentir-se consegue no sofrimento é a identidade essencial do sentimento, a relação do mesmo com o mesmo. O sofrimento é o ato do idêntico, a realização desse ato puro e pleno que foi reconhecido como constitutivo da experiência da afetividade e que aqui é concebido na sua origem. Para expressar esse ato do mesmo realizado em si e por si, Michel Henry põe em jogo uma noção que parece pertencer ao horizonte do pensamento monista, a noção de superação. Tal noção só pode ser usada aqui marcada com o sinal do seu oposto: não superação. No sentimento de si que o sofrimento alcança, o si vai além de si mesmo de tal forma que o que vai além é a ausência de ir além, é a identidade do si consigo mesmo. “A ausência de ir além”, diz Michel Henry, “está em sentir o que vai além, sua identidade consigo mesmo”. A noção de superação que implica no seu conteúdo as ideias de relação, de movimento, de espaço, designa aqui uma operação cuja estrutura é a imanência-unidade, e que como tal não desenvolve nenhum campo, nenhum movimento, nenhuma distância. Está aí, porém, para significar a eficácia de uma relação sem divisão, a realidade de uma operação inteiramente interior, exprime o ato do Um e do idêntico na vibração interna da sua vida, é isto quer dizer precisamente o seu surgimento em si.

Mas o que surge assim, em e para si, numa pura afeição de si, numa experiência de si que o une inexoravelmente a si mesmo, é o Si como tal. No sofrimento se formam o ser e a realidade do Si, que também é o Si do ser. O sofrimento realiza o devir original do Si, constitui sua essência original, o fundamento de sua obra fundadora absoluta. No sofrimento o Si acontece em si, para si e por si: o sofrimento é o ato original do Si. No Si mesmo, escreve Michel Henry, “realiza-se o movimento sem movimento no qual ele recebe, como conteúdo substancial e pesado, o que é, apreende-o, alcança-o, experimenta a sua própria profusão… Com a passividade original do ser em relação a si mesmo, tal como se realiza no sofrimento, realiza-se a transcendência do Si em direção ao que lhe é idêntico, como superação da imanência que é, a obtenção pelo Si da sua própria era e, de forma idêntica, a superação na identidade do sentimento em relação ao seu próprio conteúdo, a sua emergência em si mesmo na profusão da sua riqueza interior, o devir do seu ser efetivo e da sua consistência. A realização do sentimento na “sua riqueza interior” e a emergência do Si em si constituem apenas um e o mesmo acontecimento ontológico que aqui se dá no seu fundamento interno. “A interpretação da essência da individualidade como afetividade”, diz Henry, “recebe seu significado ontológico final e torna-se possível com a interpretação da afetividade como encontrando sua essência no ‘sofrimento’”.


Ver online : Michel Henry


DUFOUR-KOWALSKA, G. Michel Henry, un philosophe de la vie et de la praxis. Paris: Vrin, 1980.